terça-feira, 2 de outubro de 2012

Todas as mães do Menomena


Gosto de quem escreve certo por linhas tortas, dos corações inquietos que não se bastam do bem feito e quer este feito ainda melhorado. Dos que fazem do trabalho incansável experiência de aperfeiçoamento porque aqui, como no
O Menomena ainda com Brent Knopf: quatro discos lançados
amor, um passo pra frente, e firme, só melhora a gente e o mundo que nos cerca. Porque tem sempre algo a ser mexido, a ser refeito, não pra que chegue a ser perfeito, mas porque simplesmente é da gente, do ser humano, evoluir. Mais instigante ainda são aqueles que, mesmo depois de provarem que podem ser a nota dissonante, o espírito que desagrega para agregar algo positivo na sequência (que o diga o saudoso Chico Science), tentam a nota consoante mantendo o padrão de inquietude que os fizeram dignos de nota.  Menomena, banda de Portland, cidade do nordeste dos Estados Unidos, está incluída nesse rol dos eternos experimentadores, dos insatisfeitos de carteirinha. Depois de chamar a atenção da crítica com seu indie rock, post-rock ou seja lá que o valham, Justin Harris(voz, guitarra, sax) e Danny Seim(bateria) resolveram se tornar mais palatáveis. Moms(2012), o quinto álbum do grupo, é talvez aquele mais próximo do gosto comum, sem que com isso, pareça menos incomum. Tocam a linha do pop, escrevendo músicas com uma caligrafia mais legível, mas ainda benditamente torta.

Veja sessão acústica de "Heavy is as Heavy Does":


Harris e Seim fizeram o que considero o melhor disco do Menomena porque usaram sua criatividade e poder de fogo para ficar mais perto da maioria. Porque antes haviam os dois e Brent Knopf, uma das forças motrizes da banda, que saiu em 2010 para se dedicar ao bom grupo Ramona Falls. E com os três havia um projeto mais maduro que se iniciou com o cultuado, e muito legal,  Friends and Foe(2007), o primeiro que ouvi da galera, carregado dessa vontade de fazer música com uma dose de invenção que afastava sua obra dos ouvidos mais preguiçosos. Esse rock com gosto pelo experimental, por levadas menos óbvias se fez presente também em Mines(2010), álbum que manteve acesso a chama dos fãs pelo grupo. A saída de Knopf  ajudou na diminuição da febre, do ardor que movia a criação dos caras? Acredito que não. Porque parte da criatividade vista nos CDs anteriores se mantém intacta, apenas com a ansiedade um pouco mais domada, dominada. A dupla que continua a tocar o Menomena articulou no mais recente trabalho uma sonoridade mais solar e simples, ainda que algumas músicas vistam-se daquela estranheza e melancolia que a trupe sempre soube produziu.

Grupo mantem padrão com belos arranjos e orquestrações
Mas, fique atento, nada em Menomena é o que parece. O que, na primeira audição, reveste-se de simplicidade, na segunda, com os ouvidos mais atentos, mostra-se cheio de nuances, com as garras expostas. Existe um universo complexo por trás das canções, ainda que ele assuste menos, do grupo. Os arranjos muito bem trabalhados, as mudanças de andamento das composições, a surpresa que nos é reservada aqui e ali com a introdução de instrumentos pouco comuns ao gênero rock, tudo faz com que Moms torne-se um deleite para quem é ávido por música com conteúdo, feita de uma substância mais reativa e consistente. Como descobrir o ácido da fruta depois da sensação do doce. É assim, por exemplo, com a impressionante "Heavy is as Heavy Does", que começa levinha com seu piano manso, entorpecendo o ouvinte até a mudança lá na frente com o crescendo do coro que deságua em guitarras distorcidas, no talo. De uma beleza concreta. Da mesma linhagem "One Horse",  que fecha épica o disco com seus dez minutos de absoluta extravagância.  Aqui fica mais clara ainda a alternância melódica, com momentos atmosféricos dividindo o tempo com arranjo de cordas e a batera e guitarras fazendo a mais sublime diferença.

Ouça "Don't Mess with Latexas":


Esses caras sabem mesmo causar impressão. Além dos movimentos que dividem as canções, outra das características mais notáveis é o apreço que têm por arranjos instrumentais que pega o ouvinte de surpresa. Se em "One Horse", a orquestração das cordas eleva a voltagem da canção, reafirmando sua tensão melancólica, em "Plumage", que abre o álbum e que se sobressai como uma das mais pops do repertório, quem dá o ar da graça é um inesperado e animado sax. Em "Pique", que tem também um apelo popular, são os instrumentos de sopro que se apresentam, colorindo essa música com seu tom mais radiofônico. Todas essas, apesar da moldura simples, tem sempre um ou outro elemento, um toque, um barulhinho que denotam a riqueza dos arranjos. E isso fica mais claro ainda em gemas como a preciosa "Don't Mess with Latexas" e suas cordas libertárias e a ensimesmada "Tantalus", na qual a guitarra e bateria, um show a parte no álbum, fazem magnífico contraponto com um teclado mais gutural, desses que fazem a festa em filmes de suspense. A complexidade dos arranjos torna-se uma deliciosa brincadeira para quem ouve "Moms", para quem gosta de explorar ricas trilhas musicais que alternam clareiras e mata cerrada, num emaranhado de sons no qual vale a pena se perder e se achar.

A riqueza das referências e a dinâmica das melodias garantem grandes momentos ao álbum. Se não bastasse, a dupla Harris e Saim ainda se meteram a fazer um disco temático. Claro que a idéia não é nova, mas é, no mínimo, diferente na intenção. O título do disco, Moms, mães em inglês, não é de graça. Os dois músicos resolveram explorar audaciosamente nas letras desse trabalho, o relacionamento que tiveram com suas progenitoras. O vocalista foi criado por uma mãe solteira, enquanto o outro perdeu a sua quando ainda era jovem. É pano pra manga pra nenhum freudiano botar defeito. E o ouvinte vira espectador passivo e interessado desses testemunhais, dessa expurgação pública. Os recados são diretos, precisos, como em "Capsule", em que confessam cheios de autopiedade: "Agora eu estou evoluindo de uma criança nova para uma criança envelhecida/Você está amadurecendo de uma memória para um legado". Ou então, metaforizando sem piedade o passado familiar: "Todos os ramos pendurados em minha fudida árvore da família são pesados", cantam em "Heavy is as Heavy Does". Menomena é isso: entrega e mergulho. Moms é assim, um álbum para se curtir devagar, entendendo todos os seus significados, dores e beleza. Um discaço.

Cotação: 5

Vá direto ao ponto:

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sexta-feira, 28 de setembro de 2012

O quilombo do gringo de alma brasileira



O gringo Maga Bo: pesquisa dos ritmos afrobrasileiros
Tem Lia de Itamaracá com ciranda, Selma com seu côco tradicional, a embolada inventiva da dupla Peneira e Sonhador, o jongo mágico da Serrinha, o cacuriá da carismática Dona Tetê, a Chula, refinada pelo violonista Roberto Mendes, o frevo e maracatu de uma tonelada de fortes raízes pernambucanas, o zambê da loca potiguar, o siriri e o cururu trabalhados pela crueza encantadora da viola de cocho matogrossense, a catira do Goiás. Tem muito mais nesse Brasil multifacetado, que no passado desigual sempre guerreou contra a miséria fazendo música pro pé mexer, pra barriga esquecer a fome. Tantos ritmos que não caberiam, mesmo arrochados, nessa minha página fuleira. Som demais, uma riqueza restrita, infelizmente, na maioria das vezes, a guetos culturais, a casas de cultura e salvadores projetos oficiais. Herança africana, portuguesa, alemã devidamente moldada pela alma brasileira e que impressiona os gringos que pesquisam nossa passado musical. Um desses estrangeiros, o dj norte-americano de nome tupiniquim Maga Bo, que corre o mundo fisgando ritmos e batidas, mergulhou em algumas das sonoridades praticadas aqui. O resultado é Quilombo do Futuro(2012), um álbum com sotaque nacional, mas com um inegável tom multinacional.

Veja o clip de "No Balanço da Canoa":


Maga Bo é um desses muitos estrangeiros apaixonados pela eclética e complexa cultura brasileira. Clara rendição. Chegou em 1999 e, na virada do século, deixou-se ficar, presa de sua sede de arqueólogo de sons, seduzido pela música produzida nos quatro cantos do país. Entre uma discotecagem e outra, nos hiatos das festas em que trabalhava como DJ mundo afora, foi absorvendo batuques e transes, harmonias e ritmos, foi se preparando para fazer de Quilombo do Futuro uma obra sincera, verdadeira. Clara intenção. O norte-americano parece ter trabalhado com o propósito de fazer um disco com assinatura verde-amarela, como se tivesse sido idealizado por músicos do Brasil. Quem desconhece a origem do produtor é levado facilmente a achar que aquela obra é coisa nossa. Mérito de um artista que, sabiamente, manteve no repertório desenvolvido por ele, a essência, a alma e estrutura das sonoridades que explorou. E que soube ainda fazer parcerias certas nessa empreitada. O que se vê no álbum, principalmente, são os ecos de um país que se formou em terreiros, nos quilombos e nas senzalas, cultivando, mesmo sob a repressão policial e a intolerância dos brancos, as raízes africanas. Maga Bo tenta e consegue, muitas vezes, captar a magia da batucada afro brasileira.

A cor negra está por toda parte envolvendo a arte de Maga. Pra tocar tambor, pra falar do Brasil filho da mãe África, o artista cercou-se de uma pá de gente boa, aqueles que valorizam o batuque e o carrega no sangue. Outros magos como B Negão, que dá o ar de sua pegada na ótima"Tempos Insanos". Na missão, os dois convocam os deuses da percussão e da música eletrônica pra chamar pra roda, pra dança. Afrobeat, som afro brasileiro. O convite é irresistível e faz dessa faixa de abertura de Quilombo do Futuro uma síntese de grande parte que o ouvinte vai ouvir na sequência. "Pois se prepare então, se prepare que o pavio vai acender", avisam os dois. Aqui também está o engajamento, os toques politizados que fazem do CD um veículo para o protesto, para mensagens que vem do morro, das comunidades que vivem a margem da sociedade: "Espírito combatente, guerreiros do terceiro mundo. Sobrevivente no suor e na raça/(...)O povo com saúde e educação é uma ameaça". Os ecos da violência, as gírias e agonias da favela estão presentes ainda nos ferventes funks cariocas "O Neguinho", com a participação especial de Biguli, e "Piloto de Fuga", com sua letra direta: "Só piloto boladão tem que ter disposição/De Pajero ou de Corola a 120 por hora, nós capota mais não freia, estilho guerrilheiro".

Ouça "Tempos Insanos", com B Negão:

Os representantes do gênero funk carioca no repertório de Maga Bo não são exatamente o que de mais instigante traz o álbum. Refletem, contudo, uma opção inteligente do produtor norte-americano: a de investir nos ritmos nacionais sem abusar da eletrônica. Seus beats, completamente integrados a batucada, são utilizados com moderação, envernizando um som que já tem seu verniz e grandeza próprios. Talvez para não brigar com a sonoridade crua e a autenticidade dos ritmos afros. Nesse sentido, o bom ragga "Maga traz a Lenha", com o guianense Jahdan Blakkamoore no vocal, tem vibração roots e um casamento equilibrado de batuque e eletrônica. Melhor ainda são as canções que bebem direto na negra fonte do candomblé, quase pontos de macumba, como a deliciosa "Eu Vim de Longe" que abusa das palmas e atabaques para tocar a raiz africana. A participação de Rosângela Macedo com seu timbre aveludado agiganta a música. Cachoeira pura. Mesmo caminho da tribal "É da nossa Cor", homenagem a capoeira e a Mestre Camaleão, professor de Maga Bo nessa arte. É tecnobatuque, canto negro da cor do Brasil.

O DJ Maga Bo convidou músicos brasileiros para sua festa
De profunda cor brasileira também, o DJ vai até o Nordeste para pinçar um das mais bonitas canções de Quilombo do Futuro. "No Balanço da Canoa", que traz de volta Rosângela Macedo no vocal, é canto de lavadeira modernizado. Na linha do que já fez produtores brasileiros, como o talentoso pernambucano Dolores em sua eterna pesquisa dos ritmos populares tradicionais. Programação a reboque de zabumba, triângulo e tambores com letra regional. "É no balanço da canoa que eu tou peneirando/É no balanço da canoa que eu vou peneirar/Eu quero ver quem vem, eu quero ver chegar/ Eu quero ver quem brinca no meu arraiá", cantam as lavadeiras pós-modernas. Daquela região também vem a competente guitarra baiana(a mesma que marcou história no trio elétrico de Dodô e Osmar) de Robertinho Barreto, do coletivo Baiana System, que dá uma roupagem colorida à emocionante "Xororô". Tantos ritmos assim repaginados com eficiência ajudam a esquecer algumas derrapadas do álbum como os fracos sambões "Hurry Up" e "Immigrant Visa Part II", que resvalam para a típica tendência gringa de cair no samba de carteirinha, bem ao gosto dos turistas desavisados. No final das contas, e isso é admirável, o disco de Maga Bo rescende uma brasilidade traduzida com clareza e humildade, algo raro, para um olhar estrangeiro. Bom pra cabeça. Bom pro pé. Maga Bo tem alma brasileira, como seu bom álbum. Escute com atenção.

Cotação: 3

Visite o Quilombo do Futuro:

www.facebook.com/magabodj

quarta-feira, 26 de setembro de 2012

Walkmen chega ao céu


O quinteto de Washington encontrou seu ponto de equilíbrio
Ninguém tinha ouvido falar. Também por isso nenhuma expectativa foi criada. E toda aquela massa meio bêbada, aquele burburinho típico de festivais alternativos feito de tribos coloridas e discursos gritados, na tentativa de ultrapassar a firme parede sonora levantada no local, até não vibrou muito. Mas, o show do The Walkmen no Mada, 2004, em Natal, foi um achado precioso para mim. Os norte-americanos pareciam ali a encarnação perfeito do indie rock, aquele som que busca um diferencial mesmo usando referências do passado. Legal de ouvir, sinceros na busca da conquista dos ouvintes, os caras fizeram uma das melhores apresentações do ano daquele simpático e divertido festival potiguar. Depois disso passei a perseguir os caras, ainda que os perdesse aqui e ali em meio às atribulações da vida que nos empurra, às vezes, para longe daquilo que nos seduz. Ouvi naquele período o bacanéssimo Bows + Arrows (2004) e, tempo depois, fui arrastado pela beleza e maturidade de Lisbon(2010). Agora, Heaven(2012) chega para pontuar uma carreira construída de mansinho por canções inspiradas e uma coerência absurda, sublinhando o carisma que o grupo sempre espalhou por onde anda.

Veja clipe de "Heaven":



The Walkmen é um dos queridinhos daqueles que respiram o rock alternativo. Mereciam, já há algum tempo, pelo talento e contundência do repertório, estar de fora desse restrito circuito. Heaven é provavelmente a melhor chance que a banda tem para fincar sua bandeira em novos territórios. Nesse sétimo álbum (os caras estão há uma década na estrada), Hamilton Leithauser(voz), Peter Bauer(baixo), Paul Maroon(guitarra) e Matt Barrick(bateria) aproximam-se mais do pop e, seguindo o caminho já proposto no ótimo Lisbon, fazem um de seus trabalhos mais calmo e acessível. Isso é ruim? Não. O grupo não abdicou necessariamente de sua sonoridade sincera, enraizada num rock de garagem metido a besta e com irrequieta alma indie. Apenas refinaram essas características, caprichando ainda mais nas letras e nas melodias. É como se essa galera de Washington resolvesse entrar definitivamente nos trilhos do mainstream, como se quisessem agora tocar em mais ipods, entrar na lista das canções mais baixadas, porque, enfim, ser reconhecido é da natureza humana e faz um bem danado pra qualquer um.

Sétimo disco do grupo cativou crítica e público

O apelo pop de Heaven é desenhado em composições nas quais as guitarras estão mais mansas, baixo e bateria enveredam por caminhos que a maioria dos ouvidos já percorreram e a voz de Leithauser está assim, digamos, mais educada e afinada. Tudo com muita personalidade. E o disco já começa tocando a gente. "We Can't Be Beat", costurada quase toda em delicados voz e violão, é uma das aberturas mais encantadoras que já ouvi em um álbum de rock.  Uma linda balada que remete, pela força da sinuosa melodia, aqueles grupos vocais negros dos anos 50, 60 do século passado. Só faltou mesmo ali o coro arrebatador para reforçar essa impressão. A letra em tom nostálgico chama atenção para a grandeza daquilo que o tempo preserva: “Nossas crianças vão sempre ouvir histórias românticas sobre os tempos passados/Nossa era de ouro vai e vem/Nossos sonhos tortos sempre irão brilhar". É The Walkmen reafirmando aquilo que os move: o amor pela música consistente que doura eras e que faz do rock um gênero eterno. Revisionistas, os músicos da bandas criam assim, beijando a glória do passado, seus sons belos e contemporâneos.

Ouça "We Can't Be Beat":


 
"We Can't Be Beat" faz parte da lavra de grande baladas que contribuem para formar o grosso e  substancioso caldo orgânico que é Heaven. Inspiradas na mesma medida, "Southern Heart" e "Line by Line" são como impactantes pausas para respirar dentro de um disco que tem uma levada, no geral, mais ligeira. A onírica "No One Ever Sleeps", que fecha o trabalho, está incluída no segmento "desacelera". Tocante, romântica e inspirada, a canção nos projeta para uma outra época, para uma paisagem outonal. Não coincidentemente, a faixa conta com a participação de Robin Pecknold, da barroca e fantástica banda Fleet Foxes. A leveza e poesia dessas composições comprovam a facilidade do The Walkmen de fazer baladas matadoras. Elas contudo apenas preparam o espírito para o que o álbum tem de melhor, o rock de garagem sem arestas, gorduras e  encorpado por uma insuspeitada elegância. Algo que pode ser visto na emblemática "Heaven", escolhida para ser a primeira música de trabalho. Grudenta, de pegada forte e garageira tem tudo para virar um hit. Traz aquela energia típica de quem está começando a carreira. E Heaven tem essa cara de recomeço, de virada mesmo.

O "lado A" do disco é preenchido com esse energia, com músicas mais dançantes, respeitáveis riffs de guitarra, com refrões marcantes e boas doses de inspiração. Acompanhe a ótima sequência iniciada por "Nightingales" com melodia rascante e guitarras despretensiosas, num dos arranjos mais rocker e animado do CD. Repare aqui nos breaks com sininhos que reforçam o acerto sonoro da criação. Logo a seguir, a extremada "The Witch" traz um teclado marcante e uma instrumentação quase teatral. "Song for Leigh", com sua sonoridade simples, é envolvente e completamente harmonizada com o disco, como um bom vinho tinto e uma boa carne vermelha. "Love is Luck" é assim meio Beach Boys, meio anos 50, com seu saboroso jeitão rockabilly. Essa boa leva de músicas mais do que traduz essa grande fase do The Walkmen. Com Heaven, Leithauser e companhia chegam enfim ao equilíbrio e vitalidade de uma música que sempre esteve acima da média e se habilita agora, definitivamente, a fazer parte da coleção de álbuns de quem curte esse tal do roquenrou.

Cotação: 5

Sinta-se no céu:

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segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Descobridora de mares

A brasiliense Fernanda Cabral faz sua conexão com o mundo

Abraçar o palco, se entregar a arte, compactuar essa paixão com um público reativo, se aventurar. Não deve ser fácil vida de artista. Penso que há que se ter um brilho próprio, desses que faz faiscar os olhos, faz intumescer veias e poros na viagem da sintaxe perfeita entre alma e intenção. Há que se ter tensão, tesão. Quando a gente ouve pela primeira vez alguém cantar, a voz que entra pelos ouvidos da gente manda claras mensagens, faz conexões com aquela zona do cérebro que produz sensações de prazer. Tensão e tesão. E aí, tocado, você diz pra voz: muito prazer. Foi o que aconteceu quando entranhou em mim a voz doce e segura de Fernanda Cabral. Seu Praianos(2011), estréia em CD da artista, é um trabalho de fôlego por meio do qual essa moça tenta abarcar o mundo experimentando ritmos diferentes, um reggae aqui uma bossa acolá, sempre com uma reconfortante elegância e explícita disciplina vocal. Fernanda  tem classe e faz de seu debut uma espécie de intersecção de sua contemporaneidade com o passado que produziu, não faz muito tempo, uma MPB consistente e radical. E é assim com um pé lá e outro cá que a bela tenta traçar seu bem trilhado caminho.

Assista clip de "Roda Menino":


Ecos de Dorival Caymmi, de Johnny Alf, de uma Joyce, com seu timbre de voz que até lembra esta carioca, encantada pelo jazz e pelo refinamento, Fernanda Cabral entrincheira-se em vários momentos em uma MPB de qualidade, vigorosa. Vide "Valentia", um das canções mais bacanas do álbum com seu arranjo meio jazzístico e sua letra praiana a falar de pescadores, veleiros e iemanjá. Uma maravilha. Nessa mesma linha, "Monteiro Lobato" navega em uma bela harmonia e instrumental precioso, com destaque para o piano e sanfona, para cantar o telurismo que aquele escritor provoca na gente. Memórias de infância amplificadas pela voz afinada de Fernanda. Esse tom classudo que veste ricamente as músicas da artista beliscam em outros momentos o seu passado menina, brincante que era em terreiros paraibanos, onde a brasiliense viveu uma parte de sua vida. Do Nordeste vem o batuque, os chocalhos, a sanfoninha gostosa e a brisa do mar. Essa carga cultural herdada com sabedoria está em composições deliciosas e alegres. Caso de "Olhar", com zabumba, acordeão e saudade das ondas tudo em um só invólucro: "Veja que a vida se comparte. Eu vejo o vermelho da terra.(...)Percebo o amor que me invade/É tanta saudade do mar e de amar". Sedutor como um canto sereno de Sereia.

Fernanda mostra maturidade em sua promissora estréia
A bela "Praianos", em parceria com Chico César, é outra que estampa esse eco nordestino e repercute firme em nosso peito. E aí temos, além desses ares paraibanos, uma letra forte, colorida, plena de imagens poéticas. “A gente se persegue docemente, quase num flerte transoceânico, por falha humana ou acerto mecânico.” Troca de gentilezas, do verbo afiado, dessa moça e daquele músico parceiro, um grande poeta por enquanto meio que escanteado injustamente por nossa curta e abusada memória. Porque, não falei, Fernanda Cabral é compositora de pena firme, autora da maioria das músicas e letras presentes em seu primeiro álbum. Em algumas delas encontra boas companhias para agigantar as canções, como o já citado Chico Cesar e os colegas espanhóis, caso do produtor do disco, o pianista Cope Gutierrez, com quem fez a bem arranjada "Roda Menino". Isso porque a moça roda mundo. Fez a ponte Paraíba-Brasília-Madrid. Em terras espanholas começou verdadeiramente sua carreira musical. Cantou com artistas conhecidos naquele país, como Pedro Guerra e Carlos Nuñes. Feito a base lá é que veio, depois, caprichosamente tentar conquistar os ouvintes brasileiros. Praianos, aliás, já tocou em praias por aquelas bandas de lá.

Ouça a linda "Praianos":


Cruzar oceanos tem sido a vida da moça. E talvez tenha sido essas experiências transoceânicas que deram gás e inspiração para Fernanda Cabral fazer deste um trabalho universal. Como uma descobridora de mares, rompendo distâncias talvez com o intuito de ser abraçada docemente por todos. A cantora e compositora explora novas fronteiras, como sugere na letra de "Horizontes": "Ando em horizontes buscando teu olhar, atravesso rios que se secam, buscando teu olhar/Será que você sonhou com o mar, será que você se aventurou?". O mar de Fernanda é o da boa música, com a tradição imorredoura da MPB enfunando as velas, como um vento que sopra constante e faz com que ela seja bem recebida em qualquer porto, de Madri, Lisboa ou Rio ou nas praias de rios e beiras de lago. Basta ouvir as lindas "Estrelas" e "Silêncio" para sentir que essa moça vai longe. E sem medo de se arriscar. A aventura de Fernanda mundo afora permite, por exemplo, passeios por outras linguagens, por outros ritmos, como é o caso do ótimo reggaezinho "Sinal Verde", uma das mais legais e radiofônicas do álbum. Praianos chega, assim, como um cartão de visita dessa brasiliense de canto forte. Fernanda Cabral chega madura, preparando terreno para um salto que tem tudo para surpreender a todos nós. Que venha mais mares de Fernanda. Que venha Fernanda para conquistar todo mar.

Cotação: 3

Escute o disco na íntegra:

http://www.fernandacabral.com/cd-praianos/listen-praianos/