
Não faltava o sussurro aviltado de um dos cinco filhos corroendo a noite buliçosa. Seu Flores imaginava as letras soltas se juntando preguiçosas como nas ondulações leves do mar traiçoeiro que convergem para a onda ruidosa. O texto seco e chulo, com poucas variações, que devia seguir no rumo do lugar comum: Já pensou! Um velho de mais de sessenta naquela situação. Mundo virado este! O bom velhinho, bomconheiro, imaginava tudo e ria com o cantinho da boca, muito tranqüilo e bem postado no alto de seus honrados sessenta e poucos anos.
Demorou pouco, o tempo já cronometrado por seu Flores – toda noite de natal era assim, como um velho filme riscado a rodar intermitente na parede sem cor da casa centenária – para que a filha mais velha, sempre ela, viesse segredar conselhos. Ela escolhia com cuidado as palavras, emolduradas por uma voz cansada, mas entranhada de carinho e respeito.
- Meu pai, preserve seu nome. O senhor não tem mais idade pra essas coisas...
Seu Flores ouvia paciente, segurando com força a mão nervosa da filha, meneando a cabeça assertivamente entre uma e outra respiração mais forte da professorinha que, ele sabia, mal amada, falando perto de seu ouvido para que ninguém mais ouvisse. Pensava, no meio do discurso aconselhador, na bituca repousada no fundo do bolso do paletó puído que ele deixou guardadinha para a madrugada alta, quando, afastado de todos e de todos os olhares, ele falava com Deus.

Essa vontade foi se agigantando desde a última semana de novembro, quando ouviu um lancinante e bêbado Carlos Gardel na vitrolinha rubra que mantinha acesa em seu quarto desarrumado. Um vinil gasto escarafunchando desejos empaludados. Agulha riscando afiada o cérebro.
É isso que dá, argumentou depois para si mesmo, um velho ter horas a fio e a fio para pensar na vida. Os desejos reclusos teimam fatalmente em dar as caras, de um jeito insolente, soberano, cobrando passos não dados, sugerindo loucuras rabiscadas, mas nunca corporificadas. Naquele exato instante, teve a completa certeza, sorveu um gole rejuvenescedor da invisível fonte da juventude.
- Que porra de velho, nada! – Decretou na hora.
E foi assim, depois dos conselhos sibilantes da professorinha malamada, que seu Flores abandonou a mão da filha, que ficou solta no ar como um balão à deriva, e se dirigiu solene para o meio da sala diante da pequena multidão familiar. E tartamudos, os parentes viram, ao som de um indigente jingle bell, os passos decididos daquilo que o velho maconheiro chamava de tango. Primeiro, sozinho, num balé algo sonolento, em câmera lenta, mudando o roteiro daquele filme natalino, arrastando o sapato preto na cerâmica de mau gosto. Depois, arrastando a neta desarmada em volteios alucinados, derrubando a porcelana antiga, quebrando taças de cristal, espalhando farofa, feito confete de carnaval, por todo o raio de sua pequena e incontida loucura.
Corte seco naquele velho filme. Com um sorriso largo, como há anos o rosto enrugado não via mais, o velho foi desacelerando seu tango, com a neta nos braços, até parar enfim em um lance acrobático, clássico, a réstia de sua piedosa loucura. Agradeceu a todos os espectadores, ainda em estado vegetativo, com um meneio gracioso e foi para o quintal com a alma lavada. Sentou debaixo da mangueira frondosa, pegou a bituca dentro do bolso, acendeu e começou seu diálogo com Deus. Pronto – pensou entre baforadas suaves – estava novamente pronto para a vida.
Ilustrações : The Last Tango - Juarez Machado e Tango Room - Juarez Machado