
Falar de
João Bosco é de uma responsabilidade tremenda. Eu, quando jovem, me perdia na encruzilhada rítmica do cantor e compositor mineiro que me turbilhonava ainda mais a cabeça com seus floreios vocais esquisitos que, soube depois, tinham sabor negro. Fazia músicas lindas, eternas, ele e o parceiro de guerra
Aldir Blanc. Lembro de escutar “Mestre Sala dos Mares” e “De Frente pro Crime”, na época ainda do velho vinil compacto, o único disco levado junto a uma vitrolinha portátil à base de pilhas para um sítio no interior do Ceará num fim de semana besta. Uma noite inteira ouvindo aqueles dois clássicos a luz de lampeões e embaixo de um céu opressivamente estrelado. Primeiro contato catártico com a poesia urbana e amorosa dos dois.
Virei fã de
Bosco e de
Aldir. Acompanhei a carreira dos caras e fiquei até um pouco enlutado quando, no fim da década de 80, os dois, por incompatibilidade de gênios, romperam a parceria. Um pra lá, o outro pra cá. 22 anos depois veio a notícia que os dois reataram, enterraram enfim as diferenças e resolveram fazer um bem necessário à música popular brasileira. Os primeiros lampejos de luz desse auspicioso retorno estão registrados no novo álbum de
João Bosco, de nome comprido, mas belo e definidor do seu conteúdo:
Não vou pro Céu, mas já não Vivo no Chão (2009).

Uma boa notícia em dose dupla. A outra é que
Bosco pôs no mundo um CD de inéditas depois de longos sete anos de gestação. A dupla ajuda a fazer de
Não Vou pro Céu... um dos grandes disco do artista mineiro, uma obra maiúscula e tão prenhe de elegância e sensibilidade que chega a emocionar. Meu pobre coração é bobo para tamanha carga de beleza que o álbum oferece. Uma beleza que parecia perdida na carreira do compositor, cujos últimos trabalho de estúdio,
Na esquina (2000) e
Malabaristas do Sinal Vermelho (2003), pelos menos a mim, não convenceram. Eram bons discos, mas não tão inspirados.
E agora, junto com
Blanc, a inspiração voltou. Intensa. Com o antigo parceiro, fez quatro biscoitos finos que estão no disco. Três deles recuperam o brilho e a harmonia dos tempos de “Bala com Bala”, “Gol Anulado”, “Linha de Passe” e tantas outras grandes canções. O samba lento “Navalha” mistura espiritualidade e paixão em uma letra e melodia felizes. “Ai, eu fui crucificado nos cravos do teu amor/Não me lembro de outra coisa que causasse tanta dor”, canta um
Bosco comedido e maduro.

“Navalha” nasce clássica assim como a delicadíssima “Mentiras de Verdade”, que cita frase de "Cansei de Ilusões" música de
Tito Madi com pequena mudança de letra e que traz ainda um belo diálogo entre violão e guitarra. A terceira é “Sonho de Caramujo”, por meio da qual entendemos um pouco o silêncio de sete anos de
Bosco. “Cumpri o astral de caramujo musical: eu gripo ou canto/ não vou pro céu mas já não vivo no chão eu moro dentro da casca do meu violão”. Menos inspirada, a intimista “Plural Singular”, não desmerece de qualquer jeito essa reunião.
Francisco Bosco, o filho do cara, é o parceiro mais corrente no disco. Bom poeta, Chico, como o pai lhe chama, é co-autor de outra grande composição do álbum, “Tanajura”. Aqui, o velho
Bosco volta com suas junções de expressões sonoras que parecem criar uma nova língua, uma herança assumidamente negra. “Se bole seu balaio/Me bate na moleira/Me abala feito raio/Seu bumbo de primeira”, canta ao som de uma percussão e violão monocórdicos que hipnotizam como um batuque. É da mesma lavra da sensacional “Jimbo no Trio”, parceria inusitada com
Nei Lopes, que fala sobre um tocador de trombone que bota todo mundo pra dançar com suas fusões rítmicas. “E o jazz e o samba e a milonga e o tango e o candombe/E a rumba e o mambo, tudo é lá do congo”, interpreta Bosco em composição moderna e suingada.

O que se vê no último
Bosco, por fim, é um homem amansado pelo tempo, sentado serenamente à sombra de seu imenso talento. Um artista que recupera o refinamento de outrora, refreando os floreios vocais que eram uma assinatura pessoal, explorando mais as linhas do sambajazz e buscando na simplicidade do arranjo o ponto de interseção com a harmonia melódica. A quase valsa “Desnortes”, dele e do filho Chico, e a linda “Pronto pra Próxima”( essa dividida com
Carlos Rennó) traduzem uma complexidade e elegância musical que ajudam a garantir a inscrição de
Não vou pro Céu... na lista dos melhores discos do MPB do ano. Eu diria mais, do alto de minha inquestionável rendição, é um dos grandes álbuns de música brasileira da década.
Cotação: 5
Vá pro céu:http://rapidshare.com/files/256679715/UQT2009_Joao_Bosco_-_Nao_Vou_Pro_Ceu.rar