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A capa do disco: moderna como a obra da artista |
Um dia no passado, quando ainda tinha paciência de assistir
a cerimônia de entrega do Oscar nas longas madrugadas, brigando feroz
contra o sono, vi um frágil Akira
Kurosawa subindo naquele palco
cafona que os norte-americanos veneram. Iria receber uma estatueta pelo
conjunto da obra cinematográfica. Ou coisa parecida. Caminhando na contramão da
típica ansiedade daquela festa, parou, eivado de simpatia, encarou a multidão
encasacada e disse algo que minha curta memória fixou ainda que sem ser fiel a
literalidade das palavras. Algo do tipo: "Eu ainda tenho que aprender a
fazer filmes". Com 80 anos e algumas obras primas no currículo, aquela
avassaladora humildade do japonês me fez pensar que envelhecemos bem quando
encaramos o mundo sem soberba e com uma inesgotável vontade de aprender. A cada
hora desperta. A cada dia amanhecido. Tem uma moça no Brasil que faz música com
uma precoce maturidade e que me faz lembrar o mestre japonês. Pelo menos no
jeito de encarar a arte. Envelhecer fazendo música, acredito, exige a sabedoria
de ir aprendendo devagar e sempre, de deixar o som que se engendra na alma
amadurecer devagar. Assim parece envelhecer Tulipa Ruiz que lançou recentemente Tudo Tanto (2012). Um trabalho bem bacana, assim como as coisas que
fluem no seu tempo e espaço certos.
O clip delicioso de
"É" com todo o perfume de Tulipa
Ruiz:
Tulipa Ruiz, filha
de Luiz Chagas, guitarrista da
vanguardista e extinta banda Isca de
Polícia, foi inteligente o suficiente para driblar a agonia, para a maioria
dos artistas, do assustador segundo trabalho. O que a santista poderia fazer
depois de nos ter presenteado com um dos melhores discos de 2010, o ótimo Efêmera? Medo. Poderia ter repetido a fórmula
encantada da estréia, que destilou MPB de qualidade com uma sonoridade moderna,
consistente: Acomodação. Poderia ter trilhado o caminho oposto investindo no
radicalismo e apostando as fichas em um som mais vanguardista. Estofo e
parceiros amigos era o que não lhe faltava: tentação. Tulipa resolveu, porém, dar um passo a frente. Medido e
equilibrado. Tudo Tanto não é
exatamente uma evolução, mas uma revisão da obra anterior com tímidas mas
inventivas experimentações. Como alguém que sabe que, para crescer
equilibradamente, o melhor mesmo é evitar os excessos, subindo as escadas degrau
a degrau. Como uma chefe de cozinha que resolve mudar de levezinho a química de
uma iguaria tradicional acrescentando novos condimentos que apenas perfuma o
prato.
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A carismática Tulipa em pré-show: simpatia plena |
O perfume de Tulipa
cheira aqui refinado. Em seu novo trabalho, temos a mesma e
instigante cantora e compositora mostrando uma desenvoltura ainda maior,
arriscando deslizar suavemente por mares nunca antes navegados. Talvez por
isso, Tudo Tanto tenha tudo para
engatar. Até porque a adorável e carismática artista não deixou de lado o senso
do pop já presente folgadamente em Efêmera.
Não à toa e só para reforçar essa tese, ela teve merecidamente uma de suas
músicas daquele trabalho, a bela "Só sei dançar com você", incluída
na trilha de uma novela global. E é com esse desprendimento e malícia que Tulipa, de cara, nos nocauteia com a
alto astral "É", primeira faixa do álbum e que ganhou um clipe moderninho
e delicioso. Música aliás que prenuncia um discurso comum no disco, a de
histórias de relacionamentos alinhavados por comunhões e discórdias. Toda essas
sensações que produz o amor em movimento. E quer mais uma prova de que a moça é
apegada ao pop sem perder jamais a dignidade? Escute então a pegajosa
"Dois Cafés" que tem a participação especialíssima do grande Lulu
Santos, sinônimo por excelência de nosso pop rock.
Escute "Víbora":
A luminosidade das canções defendidas com rigor vocal por Tulipa Ruiz acende o ouvinte. A cantora
revelação ampara-se em arranjos e melodias solares que algumas vezes vão buscar
no velho e bom rock and roll sua inspiração. E aqui temos aquela pimentinha que
a artista utilizou para condimentar o manjar sonoro que nos oferece de bandeja.
"Script" é rocker com sua guitarra a la Mutantes, com doses certas de distorção, ainda que na contramão da
letra acuçarada. "Devo lhe dizer que a cura é você, meu benzinho", derrama-se
na canção a vocalista. "Expectativa", que ela divide com o irmão
Gustavo Ruiz, lembra um pouco o balouçante movimento new wave com seu
indefectível e repetitivo tecladinho. Uma curtição. Mais cara dos anos 80 do
século passado impossível. Nessa pegada, só que com uma levada mais cadenciada
e com inserções luxuosíssimas das guitarras e sintetizador, a intérprete
joga-se inteira e emocionada na ótima e bem arranjada "Like This",
sobre o início do fim de um relacionamento. Sem dúvida, uma das melhores e mais
emblemáticas do disco.
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Foto do clip da música "É", uma ode ao amor |
O que é emblemático em Tulipa
Ruiz é que ela realmente não tem medo da entrega rasgada, sincera daquilo
que interpreta. Suas canções são larvas de um vulcão interior que essa paulista
traz dentro de si. Fazia tempo que nossa música, desde talvez Cássia Eller, não revelava uma cantora
com timbre tão particular e sedutor, de uma linhagem rara. E aqui a gente pode
usar, sem hesitação, aquele velho jargão, a danada tem mesmo um voz com muita
personalidade. Em Tudo Tanto, Tulipa aperfeiçoou seu dom. Em
"Cada Voz", a preciosa afinação, entre respirações agudas, sublinha o
texto que traduz bem a essência cálida da arte dessa cantora: "Tire sua
fala da garganta e deixa ela passar pela sua goela e transbordar da boca/Deixa
solto no ar toda essa voz que tá aí dentro/Deixa ela falar. Cada voz tem um som".
Na bluezeira "Víbora" chega a lembrar Gal Costa, a dona de um dos vocais mais marcantes e maravilhosos de
nossa MPB, daquela fase áurea do icônico LP Fa-tal(1971).
Uma performance de arrepiar. É por essas e por outras - o repertório do álbum é
de uma impressionante coerência - que Tudo
Tanto impõe-se como uma obra respeitável, um passo acertado, de quem como Kurosawa mostra que sabe aprender e
crescer com o tempo, no tempo certo. É a confirmação de um talento nato que
veio para firmar raízes profundas em nosso nada desprezível cancioneiro.
Cotação: 5
Vá no site de Tulipa e baixe o disco:
www.tuliparuiz.com