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Lucas e Letícia: carícias musicais |
Letuce tem uma mulher longilínea que ao dançar se perde no
exercício das retas. Pareceu-me assim meio destrambelhada, em descompasso com
sua altura respeitável em requebros sem jeitos e cheio de curvas que não
fechavam o círculo. Como se não conseguisse resolver a equação do gesto
prometido. Como se se consumisse atarantada em seu próprio ato de perseguir o
ritmo da melodia. Desengonçadinha, quase engraçada. Mas, tinha uma voz poderosa a
magrela alta, uma entonação e interpretação que iam direto ao ponto. Como uma
reta perfeita. Toda aquela música saída da desengonçada e que parecia um
rascunho bem acabado de um trabalho tão promissor, o debut Plano de Fuga para
Cima dos Outros e de Mim (2009), ganhou contornos maduros e se mostrou bem encaixado
no universo das boas intenções no primeiro trabalho verdadeiramente assertivo do grupo paulista. Manja Perene(2012) tem, como sugere o título,
uma tendência a perenidade. É assim a cada escutada, a cada desfibrilamento das
canções surpreendentes, que provocam um certo estupor no ouvinte. Primeiro porque
se vemos estranhados e entranhados nas letras. Segundo porque as criações
melódicas nos fazem divagar. Taí, um disco malicioso e pleno de carícias. Bem
vindo ao mundo do Letuce.
Veja vídeo amador com "Fio Solto":
E quem é o Letuce? É Letícia Novaes, a moça de gestuais
tortos que me impressionou em palco paulista. É Lucas Vasconcelos, na guitarra
e dividindo os vocais com a parceira de música e de vida. E Fábio Lima(baixista)
e Thomas Hares(baterista) completando com competência o time carioca. Os quatro
trabalham a serviço de canções que não se encaixam em vibes ou tendências
seguidas pela maioria das bandas que hoje atuam no cenário nacional. Elaboraram
em Manja Perene uma linguagem ora suave ora visceral para falar do amor, de
romance e de sensualidade. É um pouco MPB, um pouco rock, um pouco jazz, um
pouco tudo isso. Uma umbigada, uma viagem pessoal e emotiva de Letícia e Lucas,
o Letuce. Desde a primeira música, a dulcíssima “Pra Passear”, cantada com
extremo fervor e personalidade pela impressionante voz feminina do grupo, há a
intenção desencarnada de se mergulhar nas marés das paixões. Com um arranjo
montado em brisa, suavezinho, a desengonçada provoca: “Tá pronto, pode vir, eu
esqueci como se reza. Pra passear, pra me ouvir, meu Deus, me dê suas deusas”.
Um convite a um passeio luxurioso pelas plagas que só os corações apaixonados
podem desenhar.
Escute o disco:
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Versos delicados e rompantes poéticos: Letuce entra em cena |
E esse passeio do Letuce tanto pode fazer sonhar ou gerar
declarações de amor, como numa cena de cinema, assim como no clássico Butch
Cassidy and the Sundance Kid, com Paul Newman e Katharine Ross reluzentes em cima
de uma bicicleta movida pelo encantamento dos dois um pelo outro e coreografada pela música de Burt Bacarah. Como na linda
“Areia Fina”, cantada pelo maridão Lucas, epidérmica nos versos delicados e na
melodia recalcitrante: “Coração macio, tudo que é possível. Tudo é permitido,
sem grades, sem chaves”. Canção tão inspirada quanto “Cataploft”, onamatopéia
tão sonora quanto inesperada para representar a impressão que o amado causa
diante da rendida apaixonada: “Quando você chega é cataploft, é cataploft no
meu peito”. Quem já sentiu a lâmina fina do amor, sabe que é por aí mesmo. É
cataploft e pronto. Mas, como o
relacionamento não se restringe apenas à malha complexa do coração, mas também
à tremulação da carne, o casal de Letuce canta também os arrepios. É o caso da
sedutora e erotizada “Fio Solto”. Com uma levada sonora que lembra a psicodelia
do ancestral Mutantes (repare no sintetizador sessentista da música), Letícia
não mede palavras para falar de onanismo, do prazer solitário provocado por
mínimos detalhes: “Fio solto na calçinha, puxo tudo, fico frouxa. É cosquinha.
Essa hora do dia, essa parte do corpo(...) o arrepio é no cru, o calor é na
bacurinha”. Texto cru para aquilo que é cru e nisso tem a sua graça.
Olha a cena clássica da bicicleta com, Newman e Ross:
Um pouco mais rocker é também a indie “Freud Sits Here”,
interpretada com ranhuras por Letícia e a única cantada em inglês. Mesmo caso
de outras filhas do rock, a deliciosa e elegante “Medo de Baleia” e a mais
alternativa e adrenalizada “Insoniazinha”, duas das melhores e mais marcantes
do CD. Mas, fica claro no repertório intransigente do álbum, apesar da linhagem
das canções citadas nesse parágrafo, que Letuce não busca se enquadrar em
segmentos, ser definido por um único adjetivo moldador ou uma escola musical. E
talvez seja a diversidade, provocadora de vários pontos de viradas no álbum, o
elemento mais virtuoso dessa bem cuidada obra. A banda puxa tanto para o lado
roqueiro, quando assim tem que ser, como pode experimentar o lado MPB, se a
hora inspirar. Se o namoro com o jazz esbarra com a letra cheia de gírias de
“Loteria”, sem perder o tom e a fineza, é a Música Popular Brasileira que
orienta os passos de “Sempre Tive Perna”, com suas cordas chorosas e vocal doce
que lembram o gênero tão executado em barzinhos e nas vitrolinhas de uma
parcela significativa de brasileiros. E por que não exercitar isso? É como diz
Letícia, numa vinheta do disco, lembrando um pagode de sucesso: “Deixa
acontecer naturalmente”. E é isso que os cariocas fazem em Manja Perene, deixam
que o som aconteça com naturalidade, como um retrato do desejo do grupo de se
mostrar por completo.
E aí, Manja Perene é assim mesmo, na minha visão desarmada
de ouvinte, uma lapada de bom gosto e novidade em meio a um cenário povoado por
bárbaros que cercam alguns bravos e resistentes guerreiros. Letuce conseguiu
sair de um estágio probatório que prenunciava uma banda com boas idéias e grande
potencial, em um primeiro disco considerado por muitos como um dos melhores de
2009, para um segundo álbum mais consistente e seguro. Um trabalho no qual se
sobressai a voz de Letícia, com um pendor para o teatro e o humor, mas que se
mantém impactante e equilibrada, e o talento melódico de Lucas, autor de
canções espirituosas e envolventes, mas que, infelizmente, não convence muito
como cantor nas músicas em que está à frente do microfone. Desse feliz
casamento, na dor e na alegria, de Letícia e Lucas, de Letuce, temos uma obra
homogênea que cresce a cada audição e nos faz desejar que essa união perdure
para sempre. Como naqueles filmes de cinema, em que a paixão se sobrepõe ao fim
trágico dos personagens principais, como os brilhantes Paul Newman e Katharine
Ross em Butch Cassidy and Sundance Kid. Assim mesmo. Para degustar perene. Slow
food. Para manjar perene.
Cotação: 5
Manje: