segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Descobridora de mares

A brasiliense Fernanda Cabral faz sua conexão com o mundo

Abraçar o palco, se entregar a arte, compactuar essa paixão com um público reativo, se aventurar. Não deve ser fácil vida de artista. Penso que há que se ter um brilho próprio, desses que faz faiscar os olhos, faz intumescer veias e poros na viagem da sintaxe perfeita entre alma e intenção. Há que se ter tensão, tesão. Quando a gente ouve pela primeira vez alguém cantar, a voz que entra pelos ouvidos da gente manda claras mensagens, faz conexões com aquela zona do cérebro que produz sensações de prazer. Tensão e tesão. E aí, tocado, você diz pra voz: muito prazer. Foi o que aconteceu quando entranhou em mim a voz doce e segura de Fernanda Cabral. Seu Praianos(2011), estréia em CD da artista, é um trabalho de fôlego por meio do qual essa moça tenta abarcar o mundo experimentando ritmos diferentes, um reggae aqui uma bossa acolá, sempre com uma reconfortante elegância e explícita disciplina vocal. Fernanda  tem classe e faz de seu debut uma espécie de intersecção de sua contemporaneidade com o passado que produziu, não faz muito tempo, uma MPB consistente e radical. E é assim com um pé lá e outro cá que a bela tenta traçar seu bem trilhado caminho.

Assista clip de "Roda Menino":


Ecos de Dorival Caymmi, de Johnny Alf, de uma Joyce, com seu timbre de voz que até lembra esta carioca, encantada pelo jazz e pelo refinamento, Fernanda Cabral entrincheira-se em vários momentos em uma MPB de qualidade, vigorosa. Vide "Valentia", um das canções mais bacanas do álbum com seu arranjo meio jazzístico e sua letra praiana a falar de pescadores, veleiros e iemanjá. Uma maravilha. Nessa mesma linha, "Monteiro Lobato" navega em uma bela harmonia e instrumental precioso, com destaque para o piano e sanfona, para cantar o telurismo que aquele escritor provoca na gente. Memórias de infância amplificadas pela voz afinada de Fernanda. Esse tom classudo que veste ricamente as músicas da artista beliscam em outros momentos o seu passado menina, brincante que era em terreiros paraibanos, onde a brasiliense viveu uma parte de sua vida. Do Nordeste vem o batuque, os chocalhos, a sanfoninha gostosa e a brisa do mar. Essa carga cultural herdada com sabedoria está em composições deliciosas e alegres. Caso de "Olhar", com zabumba, acordeão e saudade das ondas tudo em um só invólucro: "Veja que a vida se comparte. Eu vejo o vermelho da terra.(...)Percebo o amor que me invade/É tanta saudade do mar e de amar". Sedutor como um canto sereno de Sereia.

Fernanda mostra maturidade em sua promissora estréia
A bela "Praianos", em parceria com Chico César, é outra que estampa esse eco nordestino e repercute firme em nosso peito. E aí temos, além desses ares paraibanos, uma letra forte, colorida, plena de imagens poéticas. “A gente se persegue docemente, quase num flerte transoceânico, por falha humana ou acerto mecânico.” Troca de gentilezas, do verbo afiado, dessa moça e daquele músico parceiro, um grande poeta por enquanto meio que escanteado injustamente por nossa curta e abusada memória. Porque, não falei, Fernanda Cabral é compositora de pena firme, autora da maioria das músicas e letras presentes em seu primeiro álbum. Em algumas delas encontra boas companhias para agigantar as canções, como o já citado Chico Cesar e os colegas espanhóis, caso do produtor do disco, o pianista Cope Gutierrez, com quem fez a bem arranjada "Roda Menino". Isso porque a moça roda mundo. Fez a ponte Paraíba-Brasília-Madrid. Em terras espanholas começou verdadeiramente sua carreira musical. Cantou com artistas conhecidos naquele país, como Pedro Guerra e Carlos Nuñes. Feito a base lá é que veio, depois, caprichosamente tentar conquistar os ouvintes brasileiros. Praianos, aliás, já tocou em praias por aquelas bandas de lá.

Ouça a linda "Praianos":


Cruzar oceanos tem sido a vida da moça. E talvez tenha sido essas experiências transoceânicas que deram gás e inspiração para Fernanda Cabral fazer deste um trabalho universal. Como uma descobridora de mares, rompendo distâncias talvez com o intuito de ser abraçada docemente por todos. A cantora e compositora explora novas fronteiras, como sugere na letra de "Horizontes": "Ando em horizontes buscando teu olhar, atravesso rios que se secam, buscando teu olhar/Será que você sonhou com o mar, será que você se aventurou?". O mar de Fernanda é o da boa música, com a tradição imorredoura da MPB enfunando as velas, como um vento que sopra constante e faz com que ela seja bem recebida em qualquer porto, de Madri, Lisboa ou Rio ou nas praias de rios e beiras de lago. Basta ouvir as lindas "Estrelas" e "Silêncio" para sentir que essa moça vai longe. E sem medo de se arriscar. A aventura de Fernanda mundo afora permite, por exemplo, passeios por outras linguagens, por outros ritmos, como é o caso do ótimo reggaezinho "Sinal Verde", uma das mais legais e radiofônicas do álbum. Praianos chega, assim, como um cartão de visita dessa brasiliense de canto forte. Fernanda Cabral chega madura, preparando terreno para um salto que tem tudo para surpreender a todos nós. Que venha mais mares de Fernanda. Que venha Fernanda para conquistar todo mar.

Cotação: 3

Escute o disco na íntegra:

http://www.fernandacabral.com/cd-praianos/listen-praianos/

quarta-feira, 19 de setembro de 2012

Nota de dezagravo


Não acredito em homens amigos do deztempero. Que se dizem pacifistas mas que diante da menor provocação se dezequilibram, jogando pragas, cuspe, microfones e dezselegância na cara assustada dos outros. Ainda mais quando estes homens se propõem a servir o público, se dispõem a prestar um trabalho para o qual saber ouvir, dialogar, mais do que uma virtude, é uma necessidade, uma missão. Não acredito em homens que acreditam no grito, porque este é argumento e arma de fracos, e, sendo assim, é um dezserviço à humanidade.

Custa-me acreditar em homens que não se dizem arrependidos depois do mal feito, apesar de todo o horror e dezhonra que o mal feito causou. Porque a cegueira, para quem enxerga, é campo minado, é território fértil para os dezpreparados. Não, não acredito nesses. Dói em meus ouvidos o verbo dezpota de homens públicos que querem cuidar de uma cidade e se ampara em idéias paleozóicas, retrógradas, usando expressões como "lavar a honra" para defender o dezregro. Como uma cantilena do século passado usada por homens que foram traídos. Lavar a honra com o sangue dos outros, com violência é, no mínimo, triste e dezprezível. Quem não compactua com a paz e a diplomacia não merece um cargo público. 

Não acredito, enfim, em homens que usam o verbo duro e inadequado, os músculos retesados e ameaçadores para atacar qualquer outro ser humano. Devemos ser melhores do que isso. A língua e o músculo foram feitos para o carinho e para o abraço, não para o dezlise, para o tapa e a agressão fortuita. Merecemos homens melhores para guiar nossa cidade e nossas vidas. Viva a paz e o equilíbrio. Assim, somos melhores.

segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Só mais uma morte?


Hoje eu vi uma mulher com ar triste tirando uma cópia em papel A3 de um cara tocando guitarra ou talvez baixo, não deu para definir porque vi de longe a fotografia. Por pouco ela não chorou vendo a foto sair com toda nitidez daquela imensa máquina de copiar. Engoliu em seco. E se apressou para sair do lugar, para pagar logo o serviço, provavelmente para distrair o choro antes que ele viesse assim em público.  Pensei que talvez fosse a foto de um jovem que nas primeiras horas da manhã de hoje sofreu um acidente trágico numa rua conhecida de Boa Vista. O carro que o deixou em estado grave veio na contramão, dirigido por um homem alcoolizado. Dessas cenas que chocam e deixam a gente sem voz,  intrigados com a nossa própria ignorância, a imprudência nossa de cada dia.

Pior para o outro jovem, que dirigia o carro em que o músico se encontrava. Esse não sobreviveu ao choque, a esse curto circuito inesperado que o deixou para sempre sem acordar. Um quase homem, um quase menino de 22 anos que tinha acabado de realizar um sonho: cursar uma faculdade de medicina. A cidade toda soube, a cidade toda pasmou-se. E veio aquelas imagens na TV da família velando o corpo, de dezenas de rostos aturdidos mirando o chão como se procurassem no meio do asfalto, da terra, a explicação para algo que nunca resiste a qualquer tipo de explicação: a morte provocada pela truculência do outro. Veio o pesar e a indignação de todos.

E depois disso, o que há de vir? Vai ser apenas mais uma morte no trânsito cada vez mais desordenado da cidade ou vamos tirar, finalmente, lições em uma cidade condescendente com os abusos no trânsito, com motoristas desrespeitando solenemente as leis, com motoqueiros diminuindo com suas loucuras o espaço entre a vida e o cemitério, com pedestres que se acreditam ainda em uma cidade do interior? Não existem blitz efetiva na cidade, só arremedo de uma fiscalização que é driblada pela maioria. Os motoristas riem das blitzes, ligando para os colegas marcando com um "x" no mapa onde estes não devem circular.  Os donos de L200, de conversíveis acham-se donos do pedaço, os filhos de papai fazem de um estacionamento bem próximo ao centro da cidade, ao lado de uma das avenidas mais vistosas de Boa Vista, um circo de horrores, um palco de narcisismo e intolerância.

A cidade que se acha pequena tem roupagem de metrópole, orgulho de capital grande. E se é assim, os cidadãos orgulhosos precisam deixar de lado o comportamento provinciano e assumir esse espírito também no trânsito, precisa de aulas de civilidade, de motoristas de lotações que coloquem a vida acima do lucro, de "pilotos" de veículos que os usem como meio de transporte para o bem estar e não como metralhadoras giratórias, de pedestres que entendam que o comportamento e a educação deles também fazem a vida circular melhor nas ruas e avenidas. Devemos ser grandes no trânsito, usar cinto de segurança, respeitar a faixa de pedestre, os luminosos, cumprimentar a segurança, buzinar para a vida, enfim todas essas pequenas atitudes que, sabemos de cor, precisam ser tomadas para que a harmonia nas ruas essencialmente se faça.

A morte de um jovem estudante de medicina, a vida de um outro garoto sobre uma fina lâmina têm que ficar na memória todos os dias de quem anda na ruas, para que nos expiemos dos erros que cometemos no trânsito e que, diariamente precisa, ser consertados. Deve servir de expiação para as autoridades que colocam venda nos olhos e deixam que cenas trágicas se repitam sem tomar atitudes mais drásticas. Nessa hora é preciso coragem. É preciso estar atento e forte. É preciso coragem para dar um basta de vez no desrespeito e horror e, enfim, sermos cidadãos orgulhosos guiando nossos carros e andando nas ruas da cidade. Civilidade no trânsito: Boa Vista precisa.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Feito de silêncio e som


Gosto do silêncio. Da pausa perdida entre o estrondo e o ruído, aquele momento em que nos achamos encarando, perplexos e sem saída, a nós mesmos. O silêncio tem esse dom absurdo de nos aproximar do eterno, de nos levar a tocar um impalpável deus, qualquer que seja ele. No último fim de semana estive em Tepequém, um lugar mágico de Roraima onde céu, água e mata coreografam uma dança épica, gigante, feita de uma imantada intensidade, aquela que nos empurra, aturdidos e sem volta, para a nossa paquidérmica insignificância diante do universo. Somos grãos mesmo, não tem jeito. De vez em quando nos vemos assim e o silêncio é combustível para esse ponderado sentimento. Em Tepequém numa cachoeira, a do Paiva, que se desdobra infinitamente em quedas e quedas d'águas, em nichos generosos onde casais e famílias se aninham em quase preces, quase coitos, em quase comunhão, me afastei do burburinho para  beijar o silêncio. Ali, num desses desdobramentos, aqueles mais longínquos, onde a preguiça do homem prefere deixar esquecidos. Ali, toquei a pele do silêncio. E me refiz. Tem quem faça música respeitando o silêncio, fazendo dele um aliado, tirando da pausa o encantamento que é essencial nela e que ajuda a compreender melhor a beleza da melodia. É assim com The XX. É assim em Coexist (2012), o segundo trabalho de uma banda que há algum tempo deixou parte da crítica internacional boquiaberta. A arte de um trio que escarafuncha repouso nos breaks do mundo, como quem põe a cabeça na correnteza de uma cachoeira.

Clipe de "Angels", gravado em Tóquio:


Gosto cada vez mais da economia. Não aquela dos comentários dos telejornais de TV, aquela montada em equações e fórmulas matemáticas, de termos difíceis e estrangeiros, refletida no brilho do ouro e que se equilibra na lâmina afiada e cortante do papel moeda. Essa sempre me atordoou. Gosto daquela  que nos faz esnobar os excessos, a nipônica, de quem, low profile, consegue levar o navio sem tanta vela, sem tanto rum ou marujada. Como o cara do filme, não lembro o título, que trocou o inquietante molho de chaves que abria o mundo do escritório, da casa grande, do cofre, dos portões enferrujados, por uma única, a do carro, aquela que abria a porta de um mundo a se descobrir. Como o eremita que busca no isolamento, na fina flor do despojamento a chave da sabedoria. Tem quem faça música buscando na economia da sonoridade a riqueza do toque. Esse sim, verdadeiramente, o de Midas. É assim com The XX que, em seu segundo trabalho, cultivaram ainda mais suas pausas, seus silêncios, mergulharam na economia das notas musicais e do instrumental, em um minimalismo cheio de significados que transformam Coexist numa obra tão prenhe de achados quanto a simplicidade permite.

O trio sempre vestido de preto: mais um acerto
Silêncio e economia como motores de alta potência com muito óleo, reciclado, para queimar. The XX retorna ao mercado, aos ouvidos saudosos, com uma continuidade do debut, XX (2009), aperfeiçoando aquilo que parecia um ensaio. Um belo e marcante ensaio, diga-se de passagem, digno dos elogios e louvores que ajudaram a colocá-lo merecidamente como um dos dez melhores álbuns  dito "alternativos" feitos naquele ano. Fizeram também parte da minha claudicante lista. O trio britânico seguia ali, com elementos musicais mais contemporâneos, a trilha aberta e muito bem alimentada por bandas como M People, Style Council e Faithless, que esbanjavam elegância e sensualidade. Se aquelas exploravam a malícia transparente do rhythm and blues, do soul e do funk, The XX amparava-se na hipnose das batidas eletrônicas e em melodias com cadência e respiração muitas vezes comparadas, na época, por encantados resenhistas ao ato sexual. O grupo hoje é formado por Romy Madley Croft (vocal e guitarra), Oliver Sim (vocal e baixo) e Jamie Smith (bateria, programação e produção). No trabalho lançado em agosto, os três continuam afinados em sua música de contratempo das coisas que atropelam a alma. Mais calmos talvez, mas da mesma forma impactantes e 
modernos.

Ouça a bacana "Tides":



Uma pá de gente argumentou, tão grávida de razão, que o sucessor do cultuado XX é muito parecido com este, que os ingleses não inovaram, repetindo químicas e alumbramentos. Coexist é xifópago sim daquele. E sobre isso não há, a meu ver, o que se reclamar ou lamentar. Temos a afetiva tendência de cobrar uma evolução daquilo que amamos. Mas, como exigir isso de quem parece já ter nascido evoluído? Por que não navegar no mesmo mar manso que nos leva a paragens de beleza perene e substanciosa? Não concordo, além do que, com essa acusação de estagnação criativa. Essa pedra musical chamada The XX, acredito, não criou limo. O trio investiu com mais precisão exatamente naquilo que foi o que mais me chamou a atenção no disco e inspirou minha resenha: a grandiosidade dos silêncios e os arranjos e programações econômicos que refinaram a sensualidade tão evidente e vibrante da banda, o que de melhor, afinal, ela tem. Estão menos eletrônicos e mais cool. É assim com The XX. É assim, por exemplo, com "Angels", a linda composição que abre o trabalho com guitarra envolvente e a voz suave, devoradora, de Romy Croft pegando o ouvinte pelo âmago.

Novo disco do The XX gerou controvérsias
Mas, "Angels" é enganadora. A canção não revela a pegada mais matadora da banda que conta com o engenho de Jamie Smith para produzir uma sonoridade minimal e equilibrada. Em tons certos, beats, baixo e guitarra, são coadjuvantes comportados de belas melodias interpretadas, também na medida exata, pelos dois excelentes vocalistas do The XX. Romy e Oliver Sim desarmam a gente em exemplares indistintos e tocantes de mais uma boa lavra do grupo. Música sobre amores renhidos, romances desfeitos e distantes, como a climática "Fiction", com um riff de guitarra que lembra a ótima Interpol. É uma das grande músicas do disco, ao lado de "Missing", na qual o vocal da dupla se alterna, cada um fazendo uma bela cama para o outro deitar solenemente. É uma delícia ouvir ainda os dois cantando em "Tides", a minha preferida do disco. É uma das mais pesadas também, se é que podemos defini-la como tal. Aqui temos todas as virtudes do álbum, do início a capela, valorizando as pausas que precedem a beleza dos sons, ao baixo e guitarra pontuando habilmente uma melodia mais com o pé no chão da pista. E aí temos outras composições fortes, de bom gosto e elegância plena, como "Chained" e "Sunset" que ajudar a elevar ainda mais a qualidade da obra. Tudo parece, assim, orgânico em Coexist. Suas músicas são como partes indivisíveis de um corpo. Gosto disso. Gosto do álbum como gosto do silêncio e, cada vez mais, da economia. Gosto, enfim, do que me faz bem. 

Cotação: 4

O x da questão: veja se este link ainda está ativo:

http://uploaded.net/file/dl8r4tcd