segunda-feira, 17 de setembro de 2012

Só mais uma morte?


Hoje eu vi uma mulher com ar triste tirando uma cópia em papel A3 de um cara tocando guitarra ou talvez baixo, não deu para definir porque vi de longe a fotografia. Por pouco ela não chorou vendo a foto sair com toda nitidez daquela imensa máquina de copiar. Engoliu em seco. E se apressou para sair do lugar, para pagar logo o serviço, provavelmente para distrair o choro antes que ele viesse assim em público.  Pensei que talvez fosse a foto de um jovem que nas primeiras horas da manhã de hoje sofreu um acidente trágico numa rua conhecida de Boa Vista. O carro que o deixou em estado grave veio na contramão, dirigido por um homem alcoolizado. Dessas cenas que chocam e deixam a gente sem voz,  intrigados com a nossa própria ignorância, a imprudência nossa de cada dia.

Pior para o outro jovem, que dirigia o carro em que o músico se encontrava. Esse não sobreviveu ao choque, a esse curto circuito inesperado que o deixou para sempre sem acordar. Um quase homem, um quase menino de 22 anos que tinha acabado de realizar um sonho: cursar uma faculdade de medicina. A cidade toda soube, a cidade toda pasmou-se. E veio aquelas imagens na TV da família velando o corpo, de dezenas de rostos aturdidos mirando o chão como se procurassem no meio do asfalto, da terra, a explicação para algo que nunca resiste a qualquer tipo de explicação: a morte provocada pela truculência do outro. Veio o pesar e a indignação de todos.

E depois disso, o que há de vir? Vai ser apenas mais uma morte no trânsito cada vez mais desordenado da cidade ou vamos tirar, finalmente, lições em uma cidade condescendente com os abusos no trânsito, com motoristas desrespeitando solenemente as leis, com motoqueiros diminuindo com suas loucuras o espaço entre a vida e o cemitério, com pedestres que se acreditam ainda em uma cidade do interior? Não existem blitz efetiva na cidade, só arremedo de uma fiscalização que é driblada pela maioria. Os motoristas riem das blitzes, ligando para os colegas marcando com um "x" no mapa onde estes não devem circular.  Os donos de L200, de conversíveis acham-se donos do pedaço, os filhos de papai fazem de um estacionamento bem próximo ao centro da cidade, ao lado de uma das avenidas mais vistosas de Boa Vista, um circo de horrores, um palco de narcisismo e intolerância.

A cidade que se acha pequena tem roupagem de metrópole, orgulho de capital grande. E se é assim, os cidadãos orgulhosos precisam deixar de lado o comportamento provinciano e assumir esse espírito também no trânsito, precisa de aulas de civilidade, de motoristas de lotações que coloquem a vida acima do lucro, de "pilotos" de veículos que os usem como meio de transporte para o bem estar e não como metralhadoras giratórias, de pedestres que entendam que o comportamento e a educação deles também fazem a vida circular melhor nas ruas e avenidas. Devemos ser grandes no trânsito, usar cinto de segurança, respeitar a faixa de pedestre, os luminosos, cumprimentar a segurança, buzinar para a vida, enfim todas essas pequenas atitudes que, sabemos de cor, precisam ser tomadas para que a harmonia nas ruas essencialmente se faça.

A morte de um jovem estudante de medicina, a vida de um outro garoto sobre uma fina lâmina têm que ficar na memória todos os dias de quem anda na ruas, para que nos expiemos dos erros que cometemos no trânsito e que, diariamente precisa, ser consertados. Deve servir de expiação para as autoridades que colocam venda nos olhos e deixam que cenas trágicas se repitam sem tomar atitudes mais drásticas. Nessa hora é preciso coragem. É preciso estar atento e forte. É preciso coragem para dar um basta de vez no desrespeito e horror e, enfim, sermos cidadãos orgulhosos guiando nossos carros e andando nas ruas da cidade. Civilidade no trânsito: Boa Vista precisa.

terça-feira, 11 de setembro de 2012

Feito de silêncio e som


Gosto do silêncio. Da pausa perdida entre o estrondo e o ruído, aquele momento em que nos achamos encarando, perplexos e sem saída, a nós mesmos. O silêncio tem esse dom absurdo de nos aproximar do eterno, de nos levar a tocar um impalpável deus, qualquer que seja ele. No último fim de semana estive em Tepequém, um lugar mágico de Roraima onde céu, água e mata coreografam uma dança épica, gigante, feita de uma imantada intensidade, aquela que nos empurra, aturdidos e sem volta, para a nossa paquidérmica insignificância diante do universo. Somos grãos mesmo, não tem jeito. De vez em quando nos vemos assim e o silêncio é combustível para esse ponderado sentimento. Em Tepequém numa cachoeira, a do Paiva, que se desdobra infinitamente em quedas e quedas d'águas, em nichos generosos onde casais e famílias se aninham em quase preces, quase coitos, em quase comunhão, me afastei do burburinho para  beijar o silêncio. Ali, num desses desdobramentos, aqueles mais longínquos, onde a preguiça do homem prefere deixar esquecidos. Ali, toquei a pele do silêncio. E me refiz. Tem quem faça música respeitando o silêncio, fazendo dele um aliado, tirando da pausa o encantamento que é essencial nela e que ajuda a compreender melhor a beleza da melodia. É assim com The XX. É assim em Coexist (2012), o segundo trabalho de uma banda que há algum tempo deixou parte da crítica internacional boquiaberta. A arte de um trio que escarafuncha repouso nos breaks do mundo, como quem põe a cabeça na correnteza de uma cachoeira.

Clipe de "Angels", gravado em Tóquio:


Gosto cada vez mais da economia. Não aquela dos comentários dos telejornais de TV, aquela montada em equações e fórmulas matemáticas, de termos difíceis e estrangeiros, refletida no brilho do ouro e que se equilibra na lâmina afiada e cortante do papel moeda. Essa sempre me atordoou. Gosto daquela  que nos faz esnobar os excessos, a nipônica, de quem, low profile, consegue levar o navio sem tanta vela, sem tanto rum ou marujada. Como o cara do filme, não lembro o título, que trocou o inquietante molho de chaves que abria o mundo do escritório, da casa grande, do cofre, dos portões enferrujados, por uma única, a do carro, aquela que abria a porta de um mundo a se descobrir. Como o eremita que busca no isolamento, na fina flor do despojamento a chave da sabedoria. Tem quem faça música buscando na economia da sonoridade a riqueza do toque. Esse sim, verdadeiramente, o de Midas. É assim com The XX que, em seu segundo trabalho, cultivaram ainda mais suas pausas, seus silêncios, mergulharam na economia das notas musicais e do instrumental, em um minimalismo cheio de significados que transformam Coexist numa obra tão prenhe de achados quanto a simplicidade permite.

O trio sempre vestido de preto: mais um acerto
Silêncio e economia como motores de alta potência com muito óleo, reciclado, para queimar. The XX retorna ao mercado, aos ouvidos saudosos, com uma continuidade do debut, XX (2009), aperfeiçoando aquilo que parecia um ensaio. Um belo e marcante ensaio, diga-se de passagem, digno dos elogios e louvores que ajudaram a colocá-lo merecidamente como um dos dez melhores álbuns  dito "alternativos" feitos naquele ano. Fizeram também parte da minha claudicante lista. O trio britânico seguia ali, com elementos musicais mais contemporâneos, a trilha aberta e muito bem alimentada por bandas como M People, Style Council e Faithless, que esbanjavam elegância e sensualidade. Se aquelas exploravam a malícia transparente do rhythm and blues, do soul e do funk, The XX amparava-se na hipnose das batidas eletrônicas e em melodias com cadência e respiração muitas vezes comparadas, na época, por encantados resenhistas ao ato sexual. O grupo hoje é formado por Romy Madley Croft (vocal e guitarra), Oliver Sim (vocal e baixo) e Jamie Smith (bateria, programação e produção). No trabalho lançado em agosto, os três continuam afinados em sua música de contratempo das coisas que atropelam a alma. Mais calmos talvez, mas da mesma forma impactantes e 
modernos.

Ouça a bacana "Tides":



Uma pá de gente argumentou, tão grávida de razão, que o sucessor do cultuado XX é muito parecido com este, que os ingleses não inovaram, repetindo químicas e alumbramentos. Coexist é xifópago sim daquele. E sobre isso não há, a meu ver, o que se reclamar ou lamentar. Temos a afetiva tendência de cobrar uma evolução daquilo que amamos. Mas, como exigir isso de quem parece já ter nascido evoluído? Por que não navegar no mesmo mar manso que nos leva a paragens de beleza perene e substanciosa? Não concordo, além do que, com essa acusação de estagnação criativa. Essa pedra musical chamada The XX, acredito, não criou limo. O trio investiu com mais precisão exatamente naquilo que foi o que mais me chamou a atenção no disco e inspirou minha resenha: a grandiosidade dos silêncios e os arranjos e programações econômicos que refinaram a sensualidade tão evidente e vibrante da banda, o que de melhor, afinal, ela tem. Estão menos eletrônicos e mais cool. É assim com The XX. É assim, por exemplo, com "Angels", a linda composição que abre o trabalho com guitarra envolvente e a voz suave, devoradora, de Romy Croft pegando o ouvinte pelo âmago.

Novo disco do The XX gerou controvérsias
Mas, "Angels" é enganadora. A canção não revela a pegada mais matadora da banda que conta com o engenho de Jamie Smith para produzir uma sonoridade minimal e equilibrada. Em tons certos, beats, baixo e guitarra, são coadjuvantes comportados de belas melodias interpretadas, também na medida exata, pelos dois excelentes vocalistas do The XX. Romy e Oliver Sim desarmam a gente em exemplares indistintos e tocantes de mais uma boa lavra do grupo. Música sobre amores renhidos, romances desfeitos e distantes, como a climática "Fiction", com um riff de guitarra que lembra a ótima Interpol. É uma das grande músicas do disco, ao lado de "Missing", na qual o vocal da dupla se alterna, cada um fazendo uma bela cama para o outro deitar solenemente. É uma delícia ouvir ainda os dois cantando em "Tides", a minha preferida do disco. É uma das mais pesadas também, se é que podemos defini-la como tal. Aqui temos todas as virtudes do álbum, do início a capela, valorizando as pausas que precedem a beleza dos sons, ao baixo e guitarra pontuando habilmente uma melodia mais com o pé no chão da pista. E aí temos outras composições fortes, de bom gosto e elegância plena, como "Chained" e "Sunset" que ajudar a elevar ainda mais a qualidade da obra. Tudo parece, assim, orgânico em Coexist. Suas músicas são como partes indivisíveis de um corpo. Gosto disso. Gosto do álbum como gosto do silêncio e, cada vez mais, da economia. Gosto, enfim, do que me faz bem. 

Cotação: 4

O x da questão: veja se este link ainda está ativo:

http://uploaded.net/file/dl8r4tcd

terça-feira, 4 de setembro de 2012

Terreiro em festa

Curumin fez fusão esperta do som black e tecno

Curumim, onde moro, é menino. Daqueles mais novos. Na raiz mesmo do universo macuxi onde estamos inseridos em Roraima, é filho de índio, palavra tupi sonora usada, destarte a origem, para generalizar qualquer pequeno montado na traquinagem, quer seja branco, negro, pardo, vermelho. Não importa a cor da pele e sim a delicadeza da criança, aquela ainda inocente das maledicências desse mundo. É substantivo comum, de acento forte, nas conversas beira rio, vindo das gargantas mais simples, desentronizadas, daqueles que assumem a aura amazônica que nos encobre inapelavelmente. Tem um outro Curumin, esse com "n", paulista, com olhos puxados de japonês. Luciano Nakata é o nome dele. Engraçado essa coisa da globalização. Apelido índio para um nascido brasileiro com ascendência japonesa e espanhola. Esse Curumin já é grande, mas de criança, de curuminzinho amazônida, tem esse gosto pelo colorido sonoro que dá vida às suas composições. Um jeito lúdico de criar que se apropria da cultura enraizada em malocas, sobrevivente dos açoites, transformada em suingue moleque de cara brasileiríssima. Esse é o Curumin de Arrocha(2012), terceiro disco do artista, que retorna com um trabalho com a mesma energia que o tornou super requisitado por músicos que fazem hoje música consistente no Brasil.

Veja o clip do reggae "Doce":



Quem esteve no show gratuito do titânico Arnaldo Antunes, presenteado pela Universidade Federal de Roraima, viu o Curumin batera. É na cozinha percussiva que Nakata esquenta o caldo na maioria de suas inúmeras participações em disco de artistas mais notados pela mídia do que ele. O cara já fez parceria com Céu, Vanessa da Matta, Paula Lima e a revelação musical de 2011, Criolo, só para ficar em alguns dos nomes mais conhecidos da cena musical brazuca. Entre uma e outra participação competente, Curumin cuida de sua carreira solo. Antes de Arrocha, ele já havia lançado no mercado dos discos injustamente pouco ouvidos, Achados e Perdidos(2005) e Japan Pop Show(2008). Este último foi o que me abriu olhos e orelhas para a música moderna e inspirada desse japanhol demolidor. Com uma cadência pop e suingada, o penúltimo álbum do artista tinha algumas pérolas de raro valor, como a maliciosa "Magrela Fever" e a benjorgiana "Compacto" que definiram, de alguma forma, o caminho musical seguido pelo artista e que tem em seu trabalho de 2012 uma espécie de respeitável e esperada, pelo talento reconhecido, coroação.

A sonoridade calcada no batuque e na eletrônica, na black music, a do samba rock, funk e do hip hop, se faz presente em Arrocha com maior refinamento e ludicidade que é, no frigir dos ovos, a cara e alma de Curumin. A produção cuidadosa, assinada pelo próprio artista, por Lucas Martins e Zé Nigro, buscam na mixagem de batidas percussivas, grooves e tectronices a cama perfeita e dão um toque de modernidade - na medida certa - para as composições brasileiras, de cara e alma lavadas, que animam a obra. Para afunilar ainda mais a vibração das composições, foi convidado um time de colegas antenadíssimos com a boa música, gente do calibre de Gui Amabis, Marcelo Jeneci, Céu, Otto, MC Russo Passapusso e a ótima banda paulistana Guizado. É dessa maçaroca inventiva que saem por exemplo gemas dançantes como "Afoxoque", com eletrônica e batuque em franca harmonia. Daí talvez a participação do mestre pernambucano Otto na música, que encerra tribal, com tambor minimalista e silvos de pássaros. Curuminzice de Curumin. Um som que gera sentimento positivo, como ele propõe na letra direta: "E o que me dá força é a palavra do bem, que sai da boca/Palavra de quem tem língua solta e que faz valer nesse canto cada gota de sangue".

Veja clip da ótima "Afoxoque":



"Treme Terra"parece ser uma continuação de "Afoxoque" com sua poesia telúrica e forte tom ancestral em uma bela melodia que usa magnificamente tambor, metais e beats eletrônicos. Talvez essa seja uma das canções mais difíceis do CD, ao lado da tecnoinstrumental "Tupãnzinho Guerreiro", essa toda cheia de sombras e uma gravidade que destoa totalmente do trabalho. É moderninha e bem arranjada, mas não é nem de longe, realmente, a linha do disco que envereda com alegria por um som mais acessível. Essa é a sua vocação. O espírito do curumim que bate bola com o peito cheio de vida nos campos de sua aldeia aparece na maioria das faixas. Um dos melhores exemplos é "Passarinho" que chega a assustar de tão simples e melódica. A letra que tem a graça das declarações de amor fortuitas ("Quando o meu amor me disse venha, que eu sou a senha, o cofre é o coração") se encaixa numa saborosa melodia com levada típica da jovem guarda, aquele roquezinho marcado e assoviável, com direito à citação, é claro, do rei mor daquele movimento, sua alteza Roberto, o Carlos.

No novo trabalho, Curumin mostra maturidade
A popice de um Curumin aberto pro mundo está presente em "Selvage", com teclados e reverbs que chamam para a pista. De boa lavra do autor, bem que poderia entrar no tracklist de nossas emissoras de rádios mais populares para melhorar o nível do sofrível repertório do qual são vítimas rendidas. Se tá difícil, então, bota pra rolar em sua festa particular. A galera vai agradecer. Tem ainda ludicidade a solta, como brincadeiras de ruas, nas ligeirinhas "Sapo Garimpeiro" e "Blimblim" e no adorável reggae praiano "Doce", outras que cabem no sacundim sacundum de nossos piseiros dançantes. Nakata ainda repagina e levanta a bola de uma antiga canção, de 1982, "Vestido de Prata", do ex-Novos Baianos Paulinho Boca de Cantor, uma das mais bacanas do disco. Em pouco mais de 40 minutos de Arrocha, que não devemos confundir pelamordedeus com o novo sertanejo que está se alastrando pelo país com a mesma denominação, Curumin rebobina a inventividade que marcou a sua ainda curta, mais pulsante carreira. É álbum de quem tem apito na boca e a clarividência de que uma mistura de sons radicais, quando feita com personalidade, fisga cabeça e coração. Tem curumim em nosso terreiro. Tem Curumin fazendo braseiro. Deixa o fogo queimar, pode deixar.

Cotação: 4

Arroche:

http://www.sendspace.com/file/k6j2e4

sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Jardim das delícias

Patrick Watson gravou o disco em casa
Sempre achei que a delicadeza fosse   uma virtude dos fortes. É difícil dar tratos a ela. Poder ser assim solícito quando o outro, em meio à cegueira, tanto precisa, abrindo uma porta que antes parecia intransponível, fechada por mil cadeados. Desacelerar o dia, sutilmente, sem alarde, num gesto simples, invisível, para que a vida desencane e o nó se desfaça. É preciso hoje que saibamos coroar a gentileza, para que a bala não venha, para que a truculência não vença a razão, ou que seja só para clarear a vereda como tocha que ilumina sem arder. Algumas canções de tão inteiras foram feitas para amansar feras, assim como uma gentileza que se faz para que tenhamos um escape para driblar as tantas tormentas que se formam em nós. Tem o poder balsâmico de supurar, nem que seja momentaneamente, as feridas. Aquelas que vêm com uma leveza devastadora, invadindo sem solenidade os poros e se instalando urgente em nossa alma para nos acalentar. É desse mesmo tecido que foram estruturadas as encantadas composições de Adventures in Your Own Backyard (2012), um álbum cheio de boas intenções, não daquelas do qual o inferno está cheio, propostas por um grupo canadense chamado Patrick Watson, mas bem que poderia se chamar gentileza.

Assista clipe de Adventures in Your Own Backyard gravado em cima de um prédio:


Há quem não tenha muito estômago para encarar canções moldadas pela melancolia, aquelas que busquem, longe da afetação e claramente também da predisposição, o sublime. Por isso, ouvir o quarto disco de um cara como Patrick Watson, que deu nome ao coletivo de músicos que o acompanha, exige um certo desprendimento e paciência para escrutinar a beleza vigorosa dos arranjos e a serenidade das composições. É assim como riachinho que corre perene no meio de uma paisagem pedregosa e árida onde você põe o pé e deixa a água riscar a pele. Refresca e apascenta. A banda vem nessa direção desde Close to Paradise(2007) e Wooden Arms(2009), com suas melodias elaboradas e num tom mais baixo, em contradanças imprecisas com a leveza e o acolhimento. Com esse último trabalho, o grupo parece ter acertado o passo e os compassos. Em boa parte do repertório o piano se faz presente, evidenciado, convocando quase sempre uma instrumentação rica, na qual cordas, sopros, timbales encorpam os arranjos exatos, pensados para amplificar os climas de melancolia e redenção que as músicas desse gratificante álbum sugerem sem indulgência.

Patrick Wilson: linhagem de cantores líricos
Como o título antevê, o álbum foi gravado na casa de Patrick Watson, o seu quintal. Para poder ter tempo de cuidar dos filhos ao mesmo tempo, no andar sem pressa do trabalho. Essa opção parece se refletir nas canções que trazem à memória ecos solitários de artistas de lirismo acentuado como Jeff Buckley, Andrew Bird e até Antony and the Johnsons. "Lighthouse" inicia sua jornada melancólica com um piano lindo e lentíssimo para  crescer estupenda e quase dramática lá pelo meio com a surpreendente utilização de trompetes mariachis, bem ao estilo das trilhas assinadas por Ennio Morricone para bang-bangs italianos. O mesmo e fulgurante naipe de metais dá o ar da graça e esquenta a música que dá título ao disco e uma das mais belas do conjunto. Aqui, a voz afinada de Watson se vê acompanhada de uma orquestração equilibrada, com arranjo límpido, sem excessos, cada instrumento trabalhando em perfeita harmonia, características aliás que dão o tom da obra. Para entender melhor, é só escutar com cuidado a instrumental "Swimming Pools". Sereníssima e abraçada com a melancolia, a faixa tem melodia rica e climática, como ver em um quintal da casa de um ermo interior a passarada na arquitetura complexa da manhã que nasce.

Ouça a bacanéssima "Into Giants":


Na letra de "Adventures in Your Own Backyard", Watson reforça a velha tese de que às vezes você não precisa ir tão longe para encontrar aquilo que estava procurando. Que, às vezes, essa busca acaba ali mesmo, a doze passos, em seu próprio quintal. O que os canadenses procuraram, e acharam, estava ainda mais perto deles, aliás, dentro deles, em seu próprio coração. Inspirada, a banda nos oferece um punhado de canções sentimentais, sem ser sentimentalóides, com tendência à melancolia, sem se embarafustar na lama da tristeza. Na mansa “Blackwind”, timbales, banjo, violinos e violões promovem um casamento delicado com o expressivo vocalista da banda. Guitarra  e coro entram no final para pontuar esse união. A instrumental “The Things you Do” é uma canção de ninar com um arranjo refinadíssimo. “Noisy Sunday” é um outro acalanto no qual a leveza da composição é como um amanhecer de domingo com seu ruidoso silêncio. A pianíssima "Quiet Crownd", por sua vez,  tem melodia forte, emotiva, e performance excepcional de Watson. O solo de piano tenso, quase freak precede um refrão revigorante, como o sol que força o caminho vencendo a tempestade e deixando tudo mais claro.

A música de Patrick Watson é feita assim, de clarões. Nela, o que parece nublado logo se refaz em luminosidade. “Step out for a While”, por exemplo, cresce com seus vários andamentos e abre clareiras, forçando espaço para uma percussão forte, como um som de marcha. Uma composição em dois tempos, a doçura e o amargo encadeados em três minutos com gostinho e cheiro de nostalgia. Dois sentimentos em uma das mais belas canções do disco. Mais uma eficiente construção sonora que remonta à mágica atmosfera circense. Como nos circos românticos e telúricos de tempos remotos. Como num filme de Federico Fellini. “Morning Sheets” é derramada, languida, com um acento mais pop, economizando na guitarra aquilo que sobra na orquestração classuda. Lembra, ainda que de longe, a soul music fogosa de Isaac Hayes. Adventures in Your Own Backyard é, enfim, obra para mentes e corações abertos, gentil como um beijo de agradecimento. É Patrick Watson e seus parceiros do Canadá brincando de ser feliz em seu próprio quintal e transferindo essa felicidade para nós. Encare sem preconceito.

Cotação: 5

Se aventure neste quintal:

http://www66.zippyshare.com/v/49271720/file.html