sexta-feira, 31 de agosto de 2012

Jardim das delícias

Patrick Watson gravou o disco em casa
Sempre achei que a delicadeza fosse   uma virtude dos fortes. É difícil dar tratos a ela. Poder ser assim solícito quando o outro, em meio à cegueira, tanto precisa, abrindo uma porta que antes parecia intransponível, fechada por mil cadeados. Desacelerar o dia, sutilmente, sem alarde, num gesto simples, invisível, para que a vida desencane e o nó se desfaça. É preciso hoje que saibamos coroar a gentileza, para que a bala não venha, para que a truculência não vença a razão, ou que seja só para clarear a vereda como tocha que ilumina sem arder. Algumas canções de tão inteiras foram feitas para amansar feras, assim como uma gentileza que se faz para que tenhamos um escape para driblar as tantas tormentas que se formam em nós. Tem o poder balsâmico de supurar, nem que seja momentaneamente, as feridas. Aquelas que vêm com uma leveza devastadora, invadindo sem solenidade os poros e se instalando urgente em nossa alma para nos acalentar. É desse mesmo tecido que foram estruturadas as encantadas composições de Adventures in Your Own Backyard (2012), um álbum cheio de boas intenções, não daquelas do qual o inferno está cheio, propostas por um grupo canadense chamado Patrick Watson, mas bem que poderia se chamar gentileza.

Assista clipe de Adventures in Your Own Backyard gravado em cima de um prédio:


Há quem não tenha muito estômago para encarar canções moldadas pela melancolia, aquelas que busquem, longe da afetação e claramente também da predisposição, o sublime. Por isso, ouvir o quarto disco de um cara como Patrick Watson, que deu nome ao coletivo de músicos que o acompanha, exige um certo desprendimento e paciência para escrutinar a beleza vigorosa dos arranjos e a serenidade das composições. É assim como riachinho que corre perene no meio de uma paisagem pedregosa e árida onde você põe o pé e deixa a água riscar a pele. Refresca e apascenta. A banda vem nessa direção desde Close to Paradise(2007) e Wooden Arms(2009), com suas melodias elaboradas e num tom mais baixo, em contradanças imprecisas com a leveza e o acolhimento. Com esse último trabalho, o grupo parece ter acertado o passo e os compassos. Em boa parte do repertório o piano se faz presente, evidenciado, convocando quase sempre uma instrumentação rica, na qual cordas, sopros, timbales encorpam os arranjos exatos, pensados para amplificar os climas de melancolia e redenção que as músicas desse gratificante álbum sugerem sem indulgência.

Patrick Wilson: linhagem de cantores líricos
Como o título antevê, o álbum foi gravado na casa de Patrick Watson, o seu quintal. Para poder ter tempo de cuidar dos filhos ao mesmo tempo, no andar sem pressa do trabalho. Essa opção parece se refletir nas canções que trazem à memória ecos solitários de artistas de lirismo acentuado como Jeff Buckley, Andrew Bird e até Antony and the Johnsons. "Lighthouse" inicia sua jornada melancólica com um piano lindo e lentíssimo para  crescer estupenda e quase dramática lá pelo meio com a surpreendente utilização de trompetes mariachis, bem ao estilo das trilhas assinadas por Ennio Morricone para bang-bangs italianos. O mesmo e fulgurante naipe de metais dá o ar da graça e esquenta a música que dá título ao disco e uma das mais belas do conjunto. Aqui, a voz afinada de Watson se vê acompanhada de uma orquestração equilibrada, com arranjo límpido, sem excessos, cada instrumento trabalhando em perfeita harmonia, características aliás que dão o tom da obra. Para entender melhor, é só escutar com cuidado a instrumental "Swimming Pools". Sereníssima e abraçada com a melancolia, a faixa tem melodia rica e climática, como ver em um quintal da casa de um ermo interior a passarada na arquitetura complexa da manhã que nasce.

Ouça a bacanéssima "Into Giants":


Na letra de "Adventures in Your Own Backyard", Watson reforça a velha tese de que às vezes você não precisa ir tão longe para encontrar aquilo que estava procurando. Que, às vezes, essa busca acaba ali mesmo, a doze passos, em seu próprio quintal. O que os canadenses procuraram, e acharam, estava ainda mais perto deles, aliás, dentro deles, em seu próprio coração. Inspirada, a banda nos oferece um punhado de canções sentimentais, sem ser sentimentalóides, com tendência à melancolia, sem se embarafustar na lama da tristeza. Na mansa “Blackwind”, timbales, banjo, violinos e violões promovem um casamento delicado com o expressivo vocalista da banda. Guitarra  e coro entram no final para pontuar esse união. A instrumental “The Things you Do” é uma canção de ninar com um arranjo refinadíssimo. “Noisy Sunday” é um outro acalanto no qual a leveza da composição é como um amanhecer de domingo com seu ruidoso silêncio. A pianíssima "Quiet Crownd", por sua vez,  tem melodia forte, emotiva, e performance excepcional de Watson. O solo de piano tenso, quase freak precede um refrão revigorante, como o sol que força o caminho vencendo a tempestade e deixando tudo mais claro.

A música de Patrick Watson é feita assim, de clarões. Nela, o que parece nublado logo se refaz em luminosidade. “Step out for a While”, por exemplo, cresce com seus vários andamentos e abre clareiras, forçando espaço para uma percussão forte, como um som de marcha. Uma composição em dois tempos, a doçura e o amargo encadeados em três minutos com gostinho e cheiro de nostalgia. Dois sentimentos em uma das mais belas canções do disco. Mais uma eficiente construção sonora que remonta à mágica atmosfera circense. Como nos circos românticos e telúricos de tempos remotos. Como num filme de Federico Fellini. “Morning Sheets” é derramada, languida, com um acento mais pop, economizando na guitarra aquilo que sobra na orquestração classuda. Lembra, ainda que de longe, a soul music fogosa de Isaac Hayes. Adventures in Your Own Backyard é, enfim, obra para mentes e corações abertos, gentil como um beijo de agradecimento. É Patrick Watson e seus parceiros do Canadá brincando de ser feliz em seu próprio quintal e transferindo essa felicidade para nós. Encare sem preconceito.

Cotação: 5

Se aventure neste quintal:

http://www66.zippyshare.com/v/49271720/file.html

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

Química da sabedoria


A capa do disco: moderna como a obra da artista
Um dia no passado, quando ainda tinha paciência de assistir a cerimônia de entrega do Oscar nas longas madrugadas, brigando feroz contra o sono, vi um frágil Akira Kurosawa subindo naquele palco cafona que os norte-americanos veneram. Iria receber uma estatueta pelo conjunto da obra cinematográfica. Ou coisa parecida. Caminhando na contramão da típica ansiedade daquela festa, parou, eivado de simpatia, encarou a multidão encasacada e disse algo que minha curta memória fixou ainda que sem ser fiel a literalidade das palavras. Algo do tipo: "Eu ainda tenho que aprender a fazer filmes". Com 80 anos e algumas obras primas no currículo, aquela avassaladora humildade do japonês me fez pensar que envelhecemos bem quando encaramos o mundo sem soberba e com uma inesgotável vontade de aprender. A cada hora desperta. A cada dia amanhecido. Tem uma moça no Brasil que faz música com uma precoce maturidade e que me faz lembrar o mestre japonês. Pelo menos no jeito de encarar a arte. Envelhecer fazendo música, acredito, exige a sabedoria de ir aprendendo devagar e sempre, de deixar o som que se engendra na alma amadurecer devagar. Assim parece envelhecer Tulipa Ruiz que lançou recentemente Tudo Tanto (2012). Um trabalho bem bacana, assim como as coisas que fluem no seu tempo e espaço certos.

O clip delicioso de "É" com todo o perfume de Tulipa Ruiz:


Tulipa Ruiz, filha de Luiz Chagas, guitarrista da vanguardista e extinta banda Isca de Polícia, foi inteligente o suficiente para driblar a agonia, para a maioria dos artistas, do assustador segundo trabalho. O que a santista poderia fazer depois de nos ter presenteado com um dos melhores discos de 2010, o ótimo Efêmera? Medo. Poderia ter repetido a fórmula encantada da estréia, que destilou MPB de qualidade com uma sonoridade moderna, consistente: Acomodação. Poderia ter trilhado o caminho oposto investindo no radicalismo e apostando as fichas em um som mais vanguardista. Estofo e parceiros amigos era o que não lhe faltava: tentação. Tulipa resolveu, porém, dar um passo a frente. Medido e equilibrado. Tudo Tanto não é exatamente uma evolução, mas uma revisão da obra anterior com tímidas mas inventivas experimentações. Como alguém que sabe que, para crescer equilibradamente, o melhor mesmo é evitar os excessos, subindo as escadas degrau a degrau. Como uma chefe de cozinha que resolve mudar de levezinho a química de uma iguaria tradicional acrescentando novos condimentos que apenas perfuma o prato.

A carismática Tulipa em pré-show: simpatia plena
O perfume de Tulipa cheira aqui refinado. Em seu novo trabalho, temos a mesma e instigante cantora e compositora mostrando uma desenvoltura ainda maior, arriscando deslizar suavemente por mares nunca antes navegados. Talvez por isso, Tudo Tanto tenha tudo para engatar. Até porque a adorável e carismática artista não deixou de lado o senso do pop já presente folgadamente em Efêmera. Não à toa e só para reforçar essa tese, ela teve merecidamente uma de suas músicas daquele trabalho, a bela "Só sei dançar com você", incluída na trilha de uma novela global. E é com esse desprendimento e malícia que Tulipa, de cara, nos nocauteia com a alto astral "É", primeira faixa do álbum e que ganhou um clipe moderninho e delicioso. Música aliás que prenuncia um discurso comum no disco, a de histórias de relacionamentos alinhavados por comunhões e discórdias. Toda essas sensações que produz o amor em movimento. E quer mais uma prova de que a moça é apegada ao pop sem perder jamais a dignidade? Escute então a pegajosa "Dois Cafés" que tem a participação especialíssima do grande Lulu Santos, sinônimo por excelência de nosso pop rock.

Escute "Víbora":


A luminosidade das canções defendidas com rigor vocal por Tulipa Ruiz acende o ouvinte. A cantora revelação ampara-se em arranjos e melodias solares que algumas vezes vão buscar no velho e bom rock and roll sua inspiração. E aqui temos aquela pimentinha que a artista utilizou para condimentar o manjar sonoro que nos oferece de bandeja. "Script" é rocker com sua guitarra a la Mutantes, com doses certas de distorção, ainda que na contramão da letra acuçarada. "Devo lhe dizer que a cura é você, meu benzinho", derrama-se na canção a vocalista. "Expectativa", que ela divide com o irmão Gustavo Ruiz, lembra um pouco o balouçante movimento new wave com seu indefectível e repetitivo tecladinho. Uma curtição. Mais cara dos anos 80 do século passado impossível. Nessa pegada, só que com uma levada mais cadenciada e com inserções luxuosíssimas das guitarras e sintetizador, a intérprete joga-se inteira e emocionada na ótima e bem arranjada "Like This", sobre o início do fim de um relacionamento. Sem dúvida, uma das melhores e mais emblemáticas do disco.

Foto do clip da música "É", uma ode ao amor
O que é emblemático em Tulipa Ruiz é que ela realmente não tem medo da entrega rasgada, sincera daquilo que interpreta. Suas canções são larvas de um vulcão interior que essa paulista traz dentro de si. Fazia tempo que nossa música, desde talvez Cássia Eller, não revelava uma cantora com timbre tão particular e sedutor, de uma linhagem rara. E aqui a gente pode usar, sem hesitação, aquele velho jargão, a danada tem mesmo um voz com muita personalidade. Em Tudo Tanto, Tulipa aperfeiçoou seu dom. Em "Cada Voz", a preciosa afinação, entre respirações agudas, sublinha o texto que traduz bem a essência cálida da arte dessa cantora: "Tire sua fala da garganta e deixa ela passar pela sua goela e transbordar da boca/Deixa solto no ar toda essa voz que tá aí dentro/Deixa ela falar. Cada voz tem um som". Na bluezeira "Víbora" chega a lembrar Gal Costa, a dona de um dos vocais mais marcantes e maravilhosos de nossa MPB, daquela fase áurea do icônico LP Fa-tal(1971). Uma performance de arrepiar. É por essas e por outras - o repertório do álbum é de uma impressionante coerência - que Tudo Tanto impõe-se como uma obra respeitável, um passo acertado, de quem como Kurosawa mostra que sabe aprender e crescer com o tempo, no tempo certo. É a confirmação de um talento nato que veio para firmar raízes profundas em nosso nada desprezível cancioneiro.

Cotação: 5

Vá no site de Tulipa e baixe o disco:

www.tuliparuiz.com

domingo, 26 de agosto de 2012

Som pra viciar

Jana Hunter em meio aos pupilos: densidade nua
Um quase disco. Quase canções impecáveis. Organismo em formação, com formato e intenção nebulosos. De uma densidade quase palpável, como aquelas brumas que se formam de manhãzinha, quando o sol preguiçoso engrena banhar o dia, na estrada que serpenteia em direção a singela Brumado (quem conhece?), no interior da Bahia. Como um sentimento revolto, enlaçado por camadas e mais camadas de sensações tão múltiplas quanto uma alma intenta criar. Logo, a gente se embrenha em paisagens musicais etéreas, cósmicas, em terrenos por onde já pisaram grupos como Kraftwerk, Can e Joy Division. Uma arena criativa, difícil de cruzar, mas que traz recompensas para quem insistir em enfrentá-la. Por trás de toda essa barroca arquitetura musical tem uma moça que talvez esteja buscando expurgar seus fantasmas: Jana Hunter, uma norte-americana de Baltimore. Brinca de esconde-esconde propondo que a encontremos num emaranhado sonoro onírico que insiste, às vezes dark, em abocanhar nossos sentidos. Ela é esperta, tem talento e nesse jogo proposto de forma inteligente nos surpreende com facilidade. Uma surpresa que responde pelo nome de Nootropics(2012), segundo álbum da banda Lower Dens, que chega candente como um meteoro, como um competente arrastão em nossos tímpanos.

Veja clip oficial da joydivisiana "Propagation"



Jana Hunter, a moça do Lower Dens, teve formação clássica. Foi violinista. Carrega nas costas uma carga cultural e referências que provavelmente contribuíram para a criação dessa música densa que se ouve clara, condensada nas linhas e entrelinhas de Nootropics. Esse nome estranho de tantos e abusados  "os" é o que se usa para drogas sintéticas que estimulam nosso poder de conhecimento. Antes de tentar nos drogar com esse novo trabalho, Hunter mergulhou, e quase lá ficou, no mar da melancolia com o álbum de estréia do grupo, Twin-Hand Movement(2010), uma espécie de rascunho do que viria a ser a deliciosa viagem com partida iniciada este ano.  A virada sonora da turma de Baltimore, sob a batuta da vocalista e guitarrista citada no início deste parágrafo,  é intensa e se ampara em sons repetitivos, hipnóticos, que beliscam sim, em muitos momentos, uma certa dose de tristeza, de estranha sobriedade, mas sem perder a linha da vivacidade, da energia que nos deixa ligado com o mundo. A gente pode até se abandonar a essa massa musical transcendente, formada por muitas camadas instrumentais, mas seguimos instigados, acompanhando os reverbs, os teclados ora perdidos no passado ora linkados com o futuro, e a voz soberba da moça que tem boa parte da reponsabilidade, no final das contas, por tudo isso.

Coerência musical marca trabalho da banda
Um exercício de transcendência que encontra o belo pela frente, a primeira faixa de Nootropics encanta pelo que de simplicidade aparenta ter. “Alfhabet Song” é mesmo assim meio Radiohead, aquele da fase das músicas cabeças, desregradas e irrequietas. Etérea e viajandona, uma das mais bacanas do álbum, ela prepara o ouvinte para uma riqueza sonora que nos incita inapelavelmente a desvendá-la. Porque Hunter e sua trupe não estão muito a fim de nos agradar e sim de fazer aquilo que gostam, sem medo de parecerem complexos. Mas, calma, Lower Dens não é exatamente uma banda experimental, inatingível, longe de ser chata. A música de abertura é uma prova disso. E o que se vê daqui pra frente é uma coerência musical que tangencia sons de vanguarda e bandas de atitude, mas que mantém o pezinho no chão. Enfim, nada pra nos fazer bocejar, pelo contrário, o que se ouve tende a nos deixar boquiabertos. Em "Brains", batidas monocórdicas introduzem uma das canções mais alegrinhas do disco, uma espécie de trilha sonora para um passeio de carro na paisagem tremeluzente de Tóquio, daquele jeitinho que os filmes de arte contemporâneos nos apresentam aquela cosmopolita cidade.

Ouça a linda "Lamb":


E o Lower Dens segue o disco num mesmo compasso, as vezes enganosamente caótico e próximo do rock progressivo, como na instrumental "Stem". Outras vezes desacelara pegando o sujeito pelo coração, como na linda “Propagation”, com uma acachapante melodia e refrão marcante. Repare aqui na bateria marcada e baixo repetitivo que lembram a cultuada banda Joy Division. E aí chegamos na climática e emocionada “Lamb”, que traz Hunter em uma grande e doída interpretação nessa música para se ouvir em dias nublados com a alma beijando a zenitude. Até este momento do CD, começamos a nos acostumar com o universo musical tão cheio de entrelinhas e sobreposições sonoras da banda que até podemos achar estranho a mais pop e palatável "Candy"com seu bonito solo de guitarra. O disco quase derrapa em "Lion in Winter Part 1 e 2", com dissonâncias cruas e andar lento, quase irritante. Mas, a recuperação vem a galope com as superbacanas "Nova Anthem", que resgata o vigor de "Lamb" e seduz com uma variação melódica que começa lenta e chega eficiente ao climax no final. Para fechar o trabalho, o grupo ataca com a esquisita “In the End is the Beggining”. Soturna, moldada por batidas secas e guitarras  viajantes, talvez seja esta composição, com seus sete minutos, a de mais difícil acesso da obra.

Ao fim da primeira audição de Nootropics, sentimos a vontade de retomar o álbum, como se ele tivesse deixado para trás um sem número de indagações e lacunas a serem preenchidas. E esse é o grande barato desse trabalho vigoroso: a vontade de revisitá-lo quantas vezes forem necessárias até que possamos compreendê-lo por completo. Porque vai sempre ficar alguma coisa para trás, algo a se pescar, como num rio para o qual o pescador paciente viaja todo dia para saciar uma sede de peixe que nunca estanca. É legal ouvir um grupo com texto e contexto, com transpiração e inspiração. Lower Dens nos apresenta um álbum que incorpora, com entrega plena, essa tensão ansiosa dessa segunda década de milênio, onde o homem busca deixar algo consistente para o futuro, algo que toque a humanidade. Com uma obra sincera e cheia de maturidade, Jana Hunter e seu grupo estão no caminho certo. Ouça com carinho.

Cotação: 4

Inspire-se:

http://www54.zippyshare.com/v/38708997/file.html


quarta-feira, 16 de maio de 2012

Groove pra curar a alma


Depois de 9 anos, B Negão retorna com a mesma inspiração
B Negão conseguiu de novo. Há nove anos, um som pesado e com invejável groove veio encartado em forma de CD em uma revista atrevida. Em 2003, o louco Lobão estremecia as bancas de revistas com uma publicação metida a independente e cheia de promessas de sonoridades alternativas, a falecida precocemente Outracoisa. E o debut não poderia vir melhor acompanhado. Trouxe grudadinho na capa meio sem graça o álbum Enxugando o Gelo. O primeiro solo do parceiro de Marcelo D2 no explosivo Planet Hemp mostrou suas armas: uma mistura iluminada de rap, rock, funk e outros esquentados ritmos de gênese negra que marcou toda uma geração. Um inegável clássico que em 2012 ganhou um irmão, tão robusto e instigante quanto o primogênito. Sintoniza Lá (2012) é o álbum que B Negão devia a ansiosos fãs, que de tão cansados de esperar o sucessor de Enxugando, já até haviam aposentado as expectativas. Mas, que nada. Repleto de metais acachapantes e energia pra lá de positiva eis que o cara retorna com os sensacionais instrumentistas do grupo Seletores de Freqüência para mais uma vez fazer história. Esse, não tenha dúvida, é pra tocar no baile.

Vídeo alternativo de “Reação(Panela II)”:



Difícil não fazer comparação com o álbum de 2003. O rapper/sambista/roqueiro/funkeiro carioca volta inspirado na mesma freqüência e com as referências musicais, e até algumas novas, ainda mais lapidadas e que moldaram sua trajetória nos palcos. Ex-Planet Hemp, ex-Funk Fuckers, ex-Turbo Trio e figurinha fácil nos discos de amigos em louváveis participações especiais, o cara passou esse tempo todo afiando ainda mais seu talento de misturar gêneros musicais prá lá de dançantes. Com seu segundo trabalho solo, conseguiu chegar mais próximo da batida perfeita do que havia tentado o parceiro D2. Foi, na verdade, além disso. Estimulado por uma vontade incontrolável de dar toques, de gerar informações que ajudem as pessoas a crescer, a encarar o mundo de frente, foi atrás da “cura pelo som”. De uma música que reconfortasse almas açodadas por esse mundo “panela de pressão”, esse império que é “artigo perecível”. Tá tudo lá nas linhas e entrelinhas de letras com mensagens politizadas ou naquelas que são simplesmente elegias ao poder exorcizante do groove e da música negra.


B Negão e os seletores: sintonizados com a black music
Sintoniza Lá e B Negão acima de tudo doido para fazer você dançar. Sintonize então logo na primeira música, “ÉA. Alteração”, em que os metais “em brasa, faiscando”, como ele mesmo sugere numa das letras do disco, introduz um rap/funk estralando de bom. “Música gerada para causar alteração”, conceitua de cara, convidando o ouvinte, provavelmente já afoito nessa hora, a aproveitar aquela “energia de primeira qualidade em movimento”. Fácil de embarcar na metaleira dos Seletores de Frequência, tinindo na vontade acesa de fazer você mexer o corpo, sem nunca deixar de lado o discurso político e cheio de pequenos achados de B Negão. De quebra, a música ainda conta, no coro, com a indefectível voz miúda e agradável da cantora Céu, parceira de todas as horas do rapper. Sorte dele. E aí, já com o cara do outro lado sintonizado e alterado, os seletores atacam com um samba rock de primeira, suingado e de refrão pegajoso. “O Mundo(Panela de Pressão)” é a seqüência perfeita pra música de abertura do CD, abrindo espaço definitivamente para aquele mundo de possibilidades e sons que os cariocas sabem ocupar muito bem.

Escute o dub “Sintoniza Lá”:


E se você espera aqueles dubs e raggas e reggaes espertos que B Negão engendra para viagens mais espertas ainda do ouvinte, o cara oferece duas ótimas pedradas. “Reação(Panela II)” é um dub traqüilinho, remédio certo para aqueles que estão com o “HD cheio” e precisam dar uma relaxada de leve, alinhados, é claro, com a mensagem esfumaçada e crítica: “O recado já foi dado, mas o nego não está ligado. É que o barraco está muito zoado”. Letra direta, sem qualquer apelo poético ou literário. Estilo B Negão e Seletores de Freqüência. Pra comunidade se tocar, é só sintonizar lá. Melhor e ainda mais viajante é a superbacana música que dá nome ao álbum. “Em qualquer parte do universo, em qualquer parte do planeta, é tudo uma questão de sintonia. A freqüência de energia de alta qualidade. Sintoniza lá”, canta o rapper nessa composição que convida inexoravelmente para a pista e para algumas cositas mais. “Isso é barulhinho bom, saindo de seu estéreo”, complementa o cara. E é verdade. É só surfar na onda desse som delicioso e bem executado.

Enfim, em Sintoniza Lá, tudo é uma questão de groove. Tem que encontrar o beat e a batida exata para que o som flua e flutue na medida certa. B Negão canta em “Chega pra Somar no Groove”: “Todo som se resolve quando chega no groove”. O carioca sabe bem o que fala e o que faz, para a alegria de nossos pés e coração que batem e se movimentam na sintonia do tambor e da música dançante, exposta feito ferida que não para de sangrar, deste disco. Sangue negro. Do melhor e mais admirável. Nesse belo CD, B Negão e os Seletores de Freqüência afinam seu lado pop com canções feitas com esmerilhamento para agradar gregos e baianos. Ponto para a produção do brother Pedro Garcia. Até quando atacam de hardcore em “Subconsciente”, a faixa mais fora de tom, uma lembrança dos tempos de Planet Hemp, a banda acerta. Até quando tocam com competência o refinamento do jazz, na boa “Vamo”, os caras ganham respeito e falam à epiderme. Sintoniza Lá é, enfim, uma seqüência sublime e bem acabada – que beleza – de Enxugando o Gelo. Discaço para levantar muita festa e fazer a cabeça de novas gerações. Vai lá. Sintoniza nele.

Cotação: 5

Sintoniza, brodim:

segunda-feira, 14 de maio de 2012

O sentimento das canções


Os ingleses do iLiKETRAiNS fazem a farra dos sentidos
Tem nomes e sabores e cores e objetos que chamam a atenção da gente de testa. E pegam-nos assim num átimo forçando de jeito avassalador a nos aproximar deles, atiçando nossa sempre ávida curiosidade. São armadilhas da vida. Ávida vida. Foi dessa forma com o iLiKETRAiNS, com esse nome de banda grafado assim como um espirro, todas as letras juntinhas, cheias de altos e baixos, coladas como casais de festa junina bem ensaiados na hora da grande roda. E eu também gosto de trens, os da infância, em seus trilhos com a mesma trilha musical sonolenta e a mansidão de resguardo para chegar ao destino. Quando ouvi Progress Reform(2006), o primeiro disco desse grupo inglês, o sonoro e delicioso nome de batismo não bateu com o que ouvi. A música não me disse muita coisa, nem mesmo com o incentivo da crítica que elogiou o trabalho, mas o nome da banda permaneceu. Veio o segundo CD, Elegies to Lessons Learnt (2007), que também passou batido, talvez por um momento açoitado de minha vida, e por fim, The Shallows (2012), o terceiro. E é desse que quero falar.

Assista ao vídeo de “Deception”:


The Shallows é uma farra para os sentidos. Como uma caminha almofadada, king size, tamanho real, com caros travesseiros de penas de ganso, onde você se deita como se abraçado por nuvens de algodão. Bom de sentir. Mas, calma, nem tudo é assim terno. Como no conto da princesa hipersensível de Andersen, há também uma ervilha embaixo do colchão. Essa farra proposta pela banda ao mesmo tempo em que amansa, deixa os sentidos tesos, acordados para os próximos estímulos. A fruição sonora se dá exatamente por uma equação rara na qual as batidas eletrônicas misturadas às cordas de uma leveza ensolarada e insidiosa dão o tom desse trabalho, desse belo acerto do iLiKETRAiNS. Os rapazes inauguram uma nova e surpreendente fase que, enfim, proporcionou o casamento do nome que me prendeu à música que hoje me prende.

Ouça a ótima “ Mnemosyne”:



O álbum começa bem, numa mesma e hipnotizante toada. As tonitruantes “Beacons” e “Mnemosyne” são eletrorocks bem elaborados, inspirados, principalmente a segunda, que trazem de carona uma leve melancólica em conflito com os bpms e a guitarra sinuosa, a cargo de Guy Bannister, esta provavelmente um dos pontos mais fortes do disco inteiro ao lado do vozeirão respeitável de David Martin. Essas duas canções trazem a tona ecos de duas grandes bandas, New Order, pelo uso equilibrado da eletrônica, e Tindersticks, pela engenhosidade das melodias e pela já citada voz de barítono do vocalista da formação. Introdução perfeita para “The Shallows”, um pouco mais rocker, com sua bateria (Alistair Bowis) marcada e baixo(Simon Fogal) sutil, uma das melhores composições. Um trio de canções pujantes e densas que revelam a maturidade do iLiKETRAiNS, que fazem aqui aquele que é seu melhor e mais bem  produzido trabalho.

Quando desacelera, mesmo não sendo os melhores momentos do álbum, o grupo mostra-se coeso em sua intenção de deixar o ouvinte em transe. Como mágicos e seus misteriosos chapelões, o iLiKETRAiNS nos guia por caminhos esfumaçados, paisagens saídas da cabeça de Tim Burton em seus filmes mais fabulísticos, nas composições lentas, climáticas, que também contam com a mesma hipnótica e grudenta guitarra. É este instrumento emaranhado à bela voz de Martin que criam um rastro onírico, sedutor por onde passam músicas como “Water Sand”, com suas cordas que remetem à matemática e envolvente atmosfera criada por bandas oitentistas, como Cocteau Twins e The Call, e a encantadora “The Hive”. Estão na mesma curva de sentimento de “We Used to Call”, a balada mais linda do álbum.

iLiKETRAiNS em ação:vocal chapante
The Shallows não é um trabalho fácil. Para gostar do disco, para entendê-lo é preciso que entremos na mesma sintonia do grupo. A sonoridade do álbum pode parecer preguiçosa para alguns e até mesmo, em certos momentos, as músicas sugerem movimentos diferentes de uma mesma sinfonia. É como se os rapazes do iLiKETRAiNS de forma compulsiva e obsessiva voltassem todo instante a um mesmo ponto, a uma mesma linha melódica. Como se saindo de uma BR por vias transversas, eles voltassem lá na frente à mesma e confortável rodovia. Mas, aquilo que sugere repetição é, para mim, o grande achado da obra. Pense: uma maçã nunca é igual à outras: por trás do formato arredondado, do mesmo sabor adocicado há sensações diferentes que as papilas bem desenvolvidas conseguem apreender. É o mesmo com The Shallows. Há apenas que saber desfrutá-lo com paciência e sabedoria.

Cotação: 4

Vá lá, os ingleses merecem:


ou:

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Cordeiro no ponto


Cordeiro posando de brega kitsch: novidade pulsante
Felipe Cordeiro é um nome que tem freqüentado rodinhas bacanas, ecoando em ouvidos de quem vive a incansável busca da nova batida. Um nome com verniz e com raiz. Sobrenome que faz todo o sentido no voluptuoso Pará, onde fez a caminha. E o mais importante, um cordeiro com substância, tenro, cevado com a consistente fusão de ritmos que fazem de Belém hoje um dos mais instigantes laboratórios musicais brasileiros. A gente sabe, o Pará está na moda, pelo menos nas vitrolas. Tem a impagável Gaby Amarantos, aquela multicolorida da abertura da novela da Globo. Teve antes disso a excelente galera do La Pupuña, que fundiu rock e guitarrada, aproveitando-se da infindável eletricidade do instrumento que é base e alma daquelas duas invenções. E tem esse menino, esse Felipe Cordeiro que explora como Gaby, o pop, e como La Pupuña, a energia da guitarra, para fazer de Kitschpopcult(2012) o que este título vende tão claramente, um mix de sonoridades ambientado com esperteza e talento. Um disco metido a popular com um bafo de inteligência que o transformou numa das bons lançamentos de 2012.

Veja Felipe no Altas Horas:


A raiz de Felipe Cordeiro é sua relação umbilical com os sons que marcam profusamente o estado em que nasceu. Carimbó, guitarrada, o brega e as fusões que a proximidade do Pará com o mar do Caribe proporcionam, tudo isso como uma esfuziante escola, como uma inesgotável fábrica de alegria pura e de sensibilidade a flor da pele. Mais do que respirar esse provocante ambiente musical, Felipe vivenciou diretamente o exercício de todos aqueles ritmos numa relação quase que osmótica. Seu pai, Manoel Cordeiro foi o maior produtor musical da região Norte brasileira de discos de carimbó e guitarrada, de artistas populares que ainda arranham a memória das novas gerações. Um homem com os pés fincados no barro paraense. Esse espírito herdado pelo pai e muito bem absorvido pelo filho é o ouro bruto de Kitschpopcult. Não a toa o álbum é dedicado muito justamente ao velho Manoel das muitas lidas. Tá lá os sons balouçantes que moldaram o gosto de milhares de paraenses devidamente lapidados por uma refinada e experiente produção, o toque de Midas desse delicioso e dançante álbum.

O cantor na capa do disco: composição brega
Por trás das canções criadas por Felipe Cordeiro está André Abujamra, paulistano raro, acostumado ao trato das sonoridades do mundo, como ficou evidenciado na época em que capitaneou o inesquecível grupo Karnak. A verve multicultural de Abujamra deu-lhe tranqüilidade para trabalhar a proposta de Cordeiro. Este paraense, competente guitarrista, era um nome conhecido da cena local. Como Chico Science e o maracatu atômico, enxergou na guitarrada, no carimbó e no brega a potencialidade e apelo pop que esses ritmos carregavam. Agregou a eles um toque moderno, uma moldura contemporânea que os aproximou da galera esperta. Abujamra aparou arestas e, no frigir dos ovos, ganhamos um álbum em que mergulhamos, sem ranços folclóricos, numa música envolvente e cheia de energia. A alta voltagem e a planejada modernidade já se mostram na primeira música do CD, “Legal e Ilegal”, uma síntese dos ritmos paraenses, azeitados por metais e guitarras sinuosas. A letra entrega um compositor inventivo, antenado com os sons e doideiras do planetas: “Aguardente no bom samba canção/Caspa do diabo no rock and roll/ Erva do amor no reggae and night/Cultura sintética no drum’n’bass/Cuba libre na salsa peruana”. Aditivos que estão no justo compasso dessa composição suingada e dançante.

Escute a delicada “Historinha”:


Suingue e tradição misturada à contemporaneidade, aliás, é o que de melhor nos apresenta o álbum. Felipe Cordeiro convence, por exemplo, quando investe sem restrições na guitarrada, ritmo construído com guitarras nervosas, como na pulsante “Lambada com Farinha”, que traz uma inesperada introdução metida à erudita, com orquestração tensa. Um toque diferente para quem busca, claramente, diferenciais na mistura a que se propõe. Lambada com Farinha... já pensou?. Pode ser estranho, mas funciona. Assim como pega bem a cabeçuda “Conversa Fora”, na qual viaja, sem pudor, no tecnobrega – sem aquelas repetições sonoras enervantes de certos grupelhos, vide Dejavu – e de quebra oferece um mantra pegajoso: “Não ponha rancor pra dentro/só jogue conversa fora”. Um bom conselho dado de graça, como diria o velho Chico Buarque. Nessa linha mais pop, Cordeiro nos presenteia com duas ótimas músicas, duas das minhas preferidas “Fogo de Morena”, um irresistível carimbó com todos os elementos que o fizeram conhecido, incluindo o coro feminino malicioso, e o brega “Fim de Festa”, desses instrumentais feitos para dançar agarradinho, de preferência com algumas doses de cachaças a requentar o sangue.

Mistura do som tem boas talagadas de tradição
Apesar de toda a influência que assimilou dos ritmos regionais típicos do Pará, Felipe Cordeiro não é um Pinduca. Debaixo da ponte de sua formação musical muita água rolou. E Kitschpopcult traz também outros sons que fizeram sua cabeça. É aqui, na minha opinião, que o disco perde um pouco de sua força, mas, diga-se de passagem, sem perder a graça. Se a levada pop rock de “Fanzine Kitsch”, que lembra absurdamente o diálogo bem humorado da clássica “Você não soube me Amar”, do teatral Blitz, cai apenas no terreno do curioso, o paraense mostra-se mais afiado e sedutor em outras batidas. São os casos da boa “Dias Quentes”, com um tom circense e letra bacana, e da linda “Historinha”, que começa lentinha, ensaiando, juntamente com a poesia bem elaboradinha, um crescente que descamba na apoteose sublinhada por um ótimo solo de guitarra com equilibrada carga regional. Um instigante final de disco, um ponto final de uma história de amor a tradição, refogada pelo moderno, que pode render outros bons achados, espero com sinceridade, da estirpe desse garoto chamado Felipe Cordeiro, um artista com nome e sobrenome. Que o Pará baixe sobre nós com toda essa sua desapegada alegria.

Cotação: 4

Bandeie-se pro Pará:

http://www.4shared.com/zip/T-P3t4I5/felipe_cordeiro_-_kitsch_pop_c.html