sábado, 7 de abril de 2012

Velhinho de tirar o chapéu

Cohen em ação: 77 anos de puro talento e genialidade
Existe uma versão de uma música tão linda quanto uma pode ser, a versão e a música, que às vezes me faz chorar. Principalmente quando estou entregue sem forças ao ruminar da tristeza nas tardezinhas, sempre elas, que caem inevitáveis e tão solenes. “Hallelujah”, interpretada lindamente por Jeff Buckley em Grace(1994), um dos meus discos de cabeceira, tem um poder inclassificável, desses que só os clássicos, as criações afinadas com a perenidade e a beleza possuem. Por trás dessa música há ainda o talento de um cara genial que elabora melodia e letra como quem se dá aos primeiros raios de sol depois da invernada, com uma rara intensidade. E é essa sensação que nos presenteia o compositor daquela música, a que me faz chorar de quando em vez, o canadense Leonard Cohen com o rumoroso Old Ideas(2012), o primeiro CD de inéditas depois de Dear Heather(2004). Oito anos após o silêncio incomodante, que não é incomum no caso desse artista, Cohen reaparece com o mesmo brilho e encantamento de quem fez de Songs of Leonard Cohen(1968) e Songs of Love and Hate(1971) indiscutíveis obras-primas da música internacional. Coeso e soberbo, o bardo mostra que o tempo, esse senhor cheio de arestas, não amainou sua habilidade de nos causar espanto e abdução.

Veja vídeo de “Come Healing”:

Não tem como negar. Um disco de Cohen aos 77 anos, e muita cachaça depois, é um acontecimento. Old Ideas é exatamente o que prenuncia seu título: um desfilar de conceitos e sonoridade que já conhecemos antes na econômica, porém referencial, discografia do músico. Nada de novo, tudo de velho nas dez canções que iluminam o álbum. E tudo isso é maravilhoso porque, como sempre fez na arquitetura musical de sua alucinada vida, Cohen destila sua poética e melodias com precisão e alto impacto. E, como manda a sabedoria, assumindo sem firulas a sua idade. Esse é sem dúvida um dos grandes baratos, um dos achados do disco. Em uma recente entrevista disse em definitivo: “Tudo o que ponho na canção é minha própria experiência. É só minha experiência". E o velhinho cheio de convicções e idéias abre o livro do cotidiano para se declarar resignado com o peso das rugas e de um passado um tanto heavy que o consumiu vorazmente. Tanta milhagem, tantas dores e amores, o estertor das horas geraram o discurso do conformismo. “Não tenho futuro, eu sei que meus dias são breves/O presente não é tão agradável, só um monte de coisa pra fazer”, canta com paixão em “Darkness”, uma das pérolas que nos oferece docemente.

Old Ideas: velhas idéias com a beleza de sempre
A herança de sete décadas em que música de qualidade e vida dissoluta caminharam assim lado a lado não poderia ser mais aprazível para nós, agraciados ouvintes. O “bastardo preguiçoso que vive dentro de um terno”, como o canadense se definiu na faixa “Going Home”, que abre espetacularmente Old Ideas, parece viver sua enraizada maturidade em estado de graça. Espiritualizado e com um discurso afiado, ele empresta suas letras, em parceria com o também produtor do álbum Patrick Leonard, para tatuarem melodias que remontam, em muitos momentos, aos mais inspirados insights de sua carreira. A reduzida produção do artista, aliás, sempre foi marcada pela qualidade, elegância e bom gosto. E é isto que podemos ver com clareza na assumpção da velhice e suas inevitáveis conseqüências que perpassa todo o último trabalho de Leonard Cohen. E isso significa também entender que esse caminho passa pela manutenção de um estilo cool, suave e tradicional de se fazer música. O Cohen de agora revisita o folk, o country e o rock classudos em arranjos que, se nada acrescentam ao passado do artista, reforçam o cancioneiro que influenciou tanta gente nas últimas cinco décadas.

Veja vídeo com versão de Jeff Buckley para “Hallelujah”:


 A beleza do repertório de Old Ideas já se inflama nas três primeiras canções, nos três primeiros relatos de experiência de vida assinados pelo “bastardo”. Em “Going Home”, citada anteriormente, o vozeirão gutural, com coro feminino em contraponto, aumentam a realeza dessa rica composição que nada deve às clássicas criações de Cohen. O coro de mulheres, tão apreciado pelo cara, está presente inclusive em todas as faixas em arranjos espertos, realçando a voz já gasta do artista, mas que ainda impõe respeito e hipnotiza. E hipnótica é a canção seguinte, a também inspirada “Amen”, pungente e dolorida com seu banjo, bateria compassada e baixo climático, bem ao estilo folk que alçou Cohen ao panteão dos mitos. Joga logo na seqüência o tapete vermelho para uma das mais melancólicas músicas do disco passar, a intensa “Show me the Place”. Um piano solitário introduz uma letra com viés metafísico: “Mostre-me o lugar onde a palavra tornou-se um homem, mostre-me o lugar onde o sofrimento começou”. De cortar os pulsos. Mas, antes que isso possa acontecer, o bardo levanta o astral com “Darkness”, repleta de frases cortantes e um teclado infernal que aproximam a canção da vertente rock and roll.

Difícil parar de destacar essa ou aquela composição em Old Ideas. Leonard Cohen sugere que trilhemos uma via em que sua alma irrequieta e sincera sinaliza curvas abruptas ou retas abusadas.  Conta num canto falado e sem cerimônia casos de corações em chagas, como na meio jazz “Anyhow”, na qual um homem se diz maltratado por uma mulher, que não consegue, mas que deveria esquecê-lo. Ou propõe um afago na sensual e encantadora “Lullaby”, uma das melhores do CD, com sua gaita chorosa envernizando uma belíssima canção de ninar. “Durma, querida, durma, os dias estão correndo, o vento nas árvores estão falando em línguas/Se seu coração está doído, eu não sei. Se a noite é longa, aqui está minha canção de ninar”. Cohen é, enfim, nesse disco, Cohen inteiro, um poeta e cantor maior que compõe com naturalidade e brilho. Ao fim da audição do álbum, temos a exata impressão de que a longa espera valeu. O cara saiu da toca para lembrar ao mundo que há um gigante atrás daquela pele flácida, vincada pelas pesadas e marcantes emoções que só um gênio vive. Taí um discaço, mais uma lição de grandeza para que as novas gerações incorporem, levantando agradecidos aos mãos para os céus.

Cotação: 5

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terça-feira, 3 de abril de 2012

Cataploft

Lucas e Letícia: carícias musicais
Letuce tem uma mulher longilínea que ao dançar se perde no exercício das retas. Pareceu-me assim meio destrambelhada, em descompasso com sua altura respeitável em requebros sem jeitos e cheio de curvas que não fechavam o círculo. Como se não conseguisse resolver a equação do gesto prometido. Como se se consumisse atarantada em seu próprio ato de perseguir o ritmo da melodia. Desengonçadinha, quase engraçada. Mas, tinha uma voz poderosa a magrela alta, uma entonação e interpretação que iam direto ao ponto. Como uma reta perfeita. Toda aquela música saída da desengonçada e que parecia um rascunho bem acabado de um trabalho tão promissor, o debut Plano de Fuga para Cima dos Outros e de Mim (2009), ganhou contornos maduros e se mostrou bem encaixado no universo das boas intenções no primeiro trabalho verdadeiramente assertivo do grupo paulista. Manja Perene(2012) tem, como sugere o título, uma tendência a perenidade. É assim a cada escutada, a cada desfibrilamento das canções surpreendentes, que provocam um certo estupor no ouvinte. Primeiro porque se vemos estranhados e entranhados nas letras. Segundo porque as criações melódicas nos fazem divagar. Taí, um disco malicioso e pleno de carícias. Bem vindo ao mundo do Letuce.

Veja vídeo amador com "Fio Solto":


E quem é o Letuce? É Letícia Novaes, a moça de gestuais tortos que me impressionou em palco paulista. É Lucas Vasconcelos, na guitarra e dividindo os vocais com a parceira de música e de vida. E Fábio Lima(baixista) e Thomas Hares(baterista) completando com competência o time carioca. Os quatro trabalham a serviço de canções que não se encaixam em vibes ou tendências seguidas pela maioria das bandas que hoje atuam no cenário nacional. Elaboraram em Manja Perene uma linguagem ora suave ora visceral para falar do amor, de romance e de sensualidade. É um pouco MPB, um pouco rock, um pouco jazz, um pouco tudo isso. Uma umbigada, uma viagem pessoal e emotiva de Letícia e Lucas, o Letuce. Desde a primeira música, a dulcíssima “Pra Passear”, cantada com extremo fervor e personalidade pela impressionante voz feminina do grupo, há a intenção desencarnada de se mergulhar nas marés das paixões. Com um arranjo montado em brisa, suavezinho, a desengonçada provoca: “Tá pronto, pode vir, eu esqueci como se reza. Pra passear, pra me ouvir, meu Deus, me dê suas deusas”. Um convite a um passeio luxurioso pelas plagas que só os corações apaixonados podem desenhar.

Escute o disco:


Versos delicados e rompantes poéticos: Letuce entra em cena
E esse passeio do Letuce tanto pode fazer sonhar ou gerar declarações de amor, como numa cena de cinema, assim como no clássico Butch Cassidy and the Sundance Kid, com Paul Newman e Katharine Ross reluzentes em cima de uma bicicleta movida pelo encantamento dos dois um pelo outro e coreografada pela música de Burt Bacarah. Como na linda “Areia Fina”, cantada pelo maridão Lucas, epidérmica nos versos delicados e na melodia recalcitrante: “Coração macio, tudo que é possível. Tudo é permitido, sem grades, sem chaves”. Canção tão inspirada quanto “Cataploft”, onamatopéia tão sonora quanto inesperada para representar a impressão que o amado causa diante da rendida apaixonada: “Quando você chega é cataploft, é cataploft no meu peito”. Quem já sentiu a lâmina fina do amor, sabe que é por aí mesmo. É cataploft e pronto.  Mas, como o relacionamento não se restringe apenas à malha complexa do coração, mas também à tremulação da carne, o casal de Letuce canta também os arrepios. É o caso da sedutora e erotizada “Fio Solto”. Com uma levada sonora que lembra a psicodelia do ancestral Mutantes (repare no sintetizador sessentista da música), Letícia não mede palavras para falar de onanismo, do prazer solitário provocado por mínimos detalhes: “Fio solto na calçinha, puxo tudo, fico frouxa. É cosquinha. Essa hora do dia, essa parte do corpo(...) o arrepio é no cru, o calor é na bacurinha”. Texto cru para aquilo que é cru e nisso tem a sua graça.

Olha a cena clássica da bicicleta com, Newman e Ross:


Um pouco mais rocker é também a indie “Freud Sits Here”, interpretada com ranhuras por Letícia e a única cantada em inglês. Mesmo caso de outras filhas do rock, a deliciosa e elegante “Medo de Baleia” e a mais alternativa e adrenalizada “Insoniazinha”, duas das melhores e mais marcantes do CD. Mas, fica claro no repertório intransigente do álbum, apesar da linhagem das canções citadas nesse parágrafo, que Letuce não busca se enquadrar em segmentos, ser definido por um único adjetivo moldador ou uma escola musical. E talvez seja a diversidade, provocadora de vários pontos de viradas no álbum, o elemento mais virtuoso dessa bem cuidada obra. A banda puxa tanto para o lado roqueiro, quando assim tem que ser, como pode experimentar o lado MPB, se a hora inspirar. Se o namoro com o jazz esbarra com a letra cheia de gírias de “Loteria”, sem perder o tom e a fineza, é a Música Popular Brasileira que orienta os passos de “Sempre Tive Perna”, com suas cordas chorosas e vocal doce que lembram o gênero tão executado em barzinhos e nas vitrolinhas de uma parcela significativa de brasileiros. E por que não exercitar isso? É como diz Letícia, numa vinheta do disco, lembrando um pagode de sucesso: “Deixa acontecer naturalmente”. E é isso que os cariocas fazem em Manja Perene, deixam que o som aconteça com naturalidade, como um retrato do desejo do grupo de se mostrar por completo.

E aí, Manja Perene é assim mesmo, na minha visão desarmada de ouvinte, uma lapada de bom gosto e novidade em meio a um cenário povoado por bárbaros que cercam alguns bravos e resistentes guerreiros. Letuce conseguiu sair de um estágio probatório que prenunciava uma banda com boas idéias e grande potencial, em um primeiro disco considerado por muitos como um dos melhores de 2009, para um segundo álbum mais consistente e seguro. Um trabalho no qual se sobressai a voz de Letícia, com um pendor para o teatro e o humor, mas que se mantém impactante e equilibrada, e o talento melódico de Lucas, autor de canções espirituosas e envolventes, mas que, infelizmente, não convence muito como cantor nas músicas em que está à frente do microfone. Desse feliz casamento, na dor e na alegria, de Letícia e Lucas, de Letuce, temos uma obra homogênea que cresce a cada audição e nos faz desejar que essa união perdure para sempre. Como naqueles filmes de cinema, em que a paixão se sobrepõe ao fim trágico dos personagens principais, como os brilhantes Paul Newman e Katharine Ross em Butch Cassidy and Sundance Kid. Assim mesmo. Para degustar perene. Slow food. Para manjar perene.

Cotação: 5

Manje:


quinta-feira, 29 de março de 2012

Centelhas de criatividade


Criolo: mistura de rap, MPB e trip hop gerou grande álbum
Me sinto como o coelho atarantado da psicodélica história de Lewis Caroll. Atrasado, atrasado, atrasado. Em mais uma resenha tardia desse meu maltratado blog, eis que finalmente solto a lista já mofada dos dez melhores discos nacionais de 2011. Ano de reafirmação de uma nova MPB, vemos surgir algumas promessas, nomes já conhecidos por um time antenado de ouvintes, gente com os pés já bem firmes na estrada musical, como Cícero, Pélico, Gui Amabis e Criolo, fazendo discos inteligentes. Temos também a confirmação de talentos anunciados como Tiê e Mariana Aydar. E o retorno da musa da MPB que ajudou a desaguar um tanto de novas cantoras, Marisa Monte, com um trabalho sincero e ultra-romântico. Ano passado esteve longe de ser um dos mais reveladores e fantásticos para a indústria nacional, mas deixou antevista uma centelha de criatividade, vinda das hordas de um submundo que se mexe freneticamente e que as TVs e rádios populares insistem em não ver, que tende a se cristalizar nesta década. Pelo bem de nossos ouvidos. Afinal, como disse o filosofo baiano Gilberto Gil sobre a atual produção musical brasileira, “o problema do lixo não é mais a qualidade, o mau cheiro ou a podridão. O problema do lixo é a quantidade”. Chega de lixo revestido de luans santanas. Viva a boa música. Segue minha lista de como desopilar em tempo de vacas magras:

A Coruja e o Coração (Tiê)  - O uso farto dos instrumentos amplifica a poética de Tiê. Tudo continua intimista e confessional. Mas com outro deslumbramento. Os ricos arranjos adicionam ao disco um elemento invisível no trabalho anterior, o pop. A versão flamenca e alienígena do forró “Você não Vale Nada” é prova disso. Para firmar o nome de Tiê em nossa constelação dos grandes nomes.

Sou Suspeita, Estou Sujeita, Não Sou Santa (Annelis Assumpção) – O sobrenome prenuncia a tempestade criativa. Filha do genial Itamar Assumpção, essa bela negra faz de seu disco de estréia uma ode ao refinamento e boas idéias. Tá no DNA. Um trabalho bem resolvido que traduz a alma forte e talentosa de Anelis. Um disco com substância, desses que nossas mãos estão sempre procurando para colocar no toca-cd. 

Nó na Orelha (Criolo) – Esse paulistano, velho conhecido nas Rinhas de MCs da capital de São Paulo, entrega ao público esse que talvez seja um dos trabalhos mais bonitos e surpreendentes do ano.  Uma estréia solo de peso, repleto de poesia e mensagens políticas, sem perder a ternura jamais. Ouça “Não existe amor em SP” e “Bogotá” e tente não se contagiar. Discaço devidamente reconhecido, caso raro, pelo público e crítica.
Que isso Fique entre Nós (Pélico) - O quanto de nitroglicerina pode conter uma paixão? Pélico experimentou contar casos de amor, romances, com um desprendimento à flor da pele. O resultado é Que Isso Fique entre Nós(2011), uma espécie de delicado diário de amores perdidos. Segundo desse paulistano, o CD traz pérolas como “Recado” e “Levarei”, hinos sensíveis e bem tramados num trabalho feito para tatuar corações.

Canções de Apartamento (Cícero) - Namoro consumado com a MPB de um artista que já havia mostrado seu potencial na extinta banda Alice. Relação apaixonada que traz traços e referência de medalhões como Tom Jobim e Caetano Veloso. Mais do que isso, porém, uma estréia marcada por lindas e melodiosas canções. A maioria delas marcadas por uma poética low-profile, orgânica, prenhe de intimismo. Ouça com atenção.

Cavaleiro Selvagem, aqui te sigo (Mariana Aydar) - Depois de dois discos muito elogiados, essa cantora e compositora mostra seu amadurecimento numa obra que reúne o que ela produziu de melhor nos trabalhos anteriores. Personalidade, arranjos equilibrados, releituras diferenciadas de velhos clássicos, Aydar confirma que veio para ficar. A interpretação candente de “Vai Vadiar” e de “Passionais” são retratos perfeitos desse amadurecimento.

O Que você quer saber de Verdade (Marisa Monte) – A musa retorna reforçando o lado romântico que visitou com freqüência nos últimos discos. Há quem torça o nariz para Marisa Monte, mas com esse último trabalho ela desafia a crítica ranzinza gravando despudoradamente canções apaixonadas e bem produzidas a exemplo da pegajosa “Ainda bem” e da deliciosa “Aquela Velha Canção”. Para quem não tem medo de se apaixonar.

Baptista Virou Máquina (Burro Morto) – O disco instrumental do ano. O grupo paraibano cria texturas cinematográficas e densas nesse CD surpreendente, trilha sonora de filme. Os caras buscam no jazz, no funk, no afrobeat e no rock, o verniz para composições cheias de vida e instigantes. Ousam com um conteúdo que não dispensa improvisações e até atonalismo. Trilha robusta, com timbres e matizes ricos que marcaram 2011.

Memórias Luso/africanas (Gui Amabis) – Produtor requisito e músico de primeira linha, Gui Amabis mergulha no passado para fazer um disco de fortes sabores. Tambor e eletrônica se unem numa obra capilar. A participação de Céu, esposa do artista, em “Doce Espera”, e do seminal grupo Nação Zumbi só melhoram esse encantador trabalho. Para destrinchar aos poucos, como merece esse CD tão cheio de tessituras e belezas.

Longe de Onde (Karina Buhr) – A pernambucaninha é outra que confirma o talento exercitado no disco de estréia, o ótimo Eu Menti pra Você. Ela demonstra em canções rápidas a mesma inquietude e o espírito criativo que chamaram a atenção da crítica. Os petardos “Casa Palavra” e “A Pessoa Morre”, que abrem o disco, são reveladores de uma artista antenada com seu tempo. Desafiadora e provocativa, Buhr cativa mais uma vez sem concessões.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Já foi tarde


PJ se reiventa com disco impactante que marcou 2011
Black Keys:disco pop para entrar de vez no mainstream
O ano já esquenta nossa pele e eu mais uma vez me enredei nas malhas do tempo, refém submisso de longas e espetaculares férias. Sol demais e aquela languidez e ociosidade que as paisagens inebriantes inspiram na gente que tem o doce privilégio de poder viajar por aí. E, em meio a uma estertorante preguiça, o Todoouvido ficou a deriva, bem ali na praia do esquecimento com a esquina do desprezo, a espera daquele boca a boca reanimador. Depois veio o carnaval e minha vontade de fazer as pazes com o blog sambou. Hora de voltar para fechar o caixão desse falecido 2011 e tocar a vida em pleno fevereiro, tirando a poeira dos dias vãos e espreitando cheio de esperança um 2012 musicalmente contundente. Para isso, nada melhor do que a velha e tradicional lista dos bons CDs que nos ofereceram no ano passado. No geral, aqueles 365 dias marcados pelas guerrilhas da reveladora primavera árabe, pelas contumazes tragédias guiadas por insanos e suas impiedosas armas de fogo e a perda da anti-heroína Amy Winehouse, não foi dos mais ricos em termos de criações musicais. Nenhum álbum com cara de clássico foi lançado, pelo menos entre os que ouvi, talvez Let England Shake, de PJ Harvey, e El Camino, do Black Keys, se aproximem disso. Nenhuma revelação bombástica que nos tirasse o fôlego. Apenas um ano mediano com alguns discos que valem a pena ter na sua coleção. Eis aí os meus dez mais internacionais sem ordem hierárquica de importância. Na próxima resenha, os dez nacionais que mais me chamaram atenção.

Collapse into Know  (R.E.M) – Pela alegria e vitalidade de um grupo que nunca perdeu a majestade, mesmo em seus momentos menos inspirados. Pela volta da pegada rocker do R.E.M, geradora de uma legião de fãs pelo mundo todo. Por ter virado um belo testamento desses velhos guerreiros que anunciaram o desmanche em 2011.




The English Riviera (Metronomy) – Pela elegância e delicadeza de músicas como “Some Written” e “Everything Goes My Way”. Pela busca de inspiração na black music que garantiu suingue e consistência a esse disco encantador. Por terem mudado o rumo da conversa, abandonando o viés eletrônico que marcou a início da carreira dos britânicos.




 Anna Calvi (Anna Calvi) – Por ter sido o vozeirão mais impressionante do ano. Pela devassa vontade de entregar o coração ao ouvinte. Pela esperteza e singularidade dos arranjos, refinados e potentes ao mesmo tempo, que permitiram que a moça impusesse sua grande arte. Pela esperança de termos uma artista que entre para a história do rock.



Let England Shake (PJ Harvey) – Pelo espantoso poder da britânica de se reinventar a cada disco. Pela engenhosidade dos arranjos de canções matadoras com efeito de soco no estômago, reforçados por interpretações de arrepiar. Política e beleza andam juntas nas impressionantes “The Glorious Land”, uma das melhores do disco, e “The Words That Maketh Murder”.



Metals (Feist) – Pelo interessante equilíbrio que o grupo conseguiu entre o pop e o experimental. Pelas magistrais interpretações da canadense Leslie Feist. Pela beleza das melodias, que mantêm a mesma criatividade e climas do também luminoso álbum de estréia. Por emular a grande Kate Bush em alguns dos seus momentos mais inspirados.



Wasting Lights (Foo Fighters) – Pela fantástica homogeneidade de todas as canções do álbum. Pela lição de como fazer um rock urgente, espelhado em petardos como “Bridge Burning”, “White Limo” e “Back Forth”. Por terem retomado um pouco daquela sujeira que fez do Nirvana, berço de Krist Novalic, uma banda cheia de marra e talento.



Suck it and See (Arctic Monkeys) – Pelo desapego a empáfia, apesar da banda já ter conquistado seu lugar ao sol. Por um ar juvenil que impregna o disco em “Brick to Brick” e na ótima “Library Pictures”. Por contrariarem a crítica casmurra, revivendo uma atmosfera garageira que faz muito bem aos nossos ouvidos.




El Camino (The Black Keys) – Pelo definitivo casamento com o pop num disco pleno de grandes achados. Por uma estética retrô, calcada principalmente em um rock direto e dançante, que fizeram de “Lonely Boy” uma das grandes músicas de 2011. Por que o vocalista e guitarrista Dan Auerbach e o baterista e produtor Patrick Carney são os “caras”.



The King is Dead (The Decemberist) – Por terem se firmado como um dos grupos folks mais inspirados do momento. Pela escancarada simplicidade que casa como uma luva às engenhosas melodias do álbum. Pelas baladas luminosas como “Rise to Me”, “Dear Avery”, e “June Hymn”, todas de um lirismo a toda prova.




Different Gear, Still Speeding (Beady Eye) – Pela fanfarronice de Liam transformada em rock vigoroso. Por uma sonoridade crua, longe da influência beatlemaníaca que marca o bom disco solo também lançado em 2011 pelo irmão Noel. Pelo talento inato do Gallagher mais barulhento que deixou a preguiça de lado para mergulhar moleque no universo das músicas pegajosas.




Menção honrosa:

Helplessness Blues (Fleet Foxes) – Por terem reafirmado a beleza barroca de sua música que paira soberana entre o folk rock e a sonoridade medieval. Pela coragem dos norte-americanos de arquitetarem um som sem revivalismos e longe de modismos. Pelo deleite quase espiritual que é ouvir pequenas pérolas como “Battery Kinzie” e “The Plains/Bitter Dance”.

sábado, 24 de dezembro de 2011

Desse dia de família e abraços

Natividade, na visão da modernista Anita Malfatti
Chega o dia 24 de dezembro e o ar fica, invariavelmente, carregado daquilo que a emblemática data impõe. Tantas luzes colorindo a noite, tanta gente no comércio enfezada com o natural atropelo de corpos e ansiosa para fugir o mais rápido possível do enxame provocado pelo consumo. Tantas mulheres nos salões de beleza buscando fórmulas e equações químicas para ficarem diferentes e sedutoras. Vai aí uma escova inteligente? Tantos homens fazendo contas para otimizar os salários a reboque de promoções e desejos da família ávida por uma noite feliz. Tantas crianças contando as horas para ver o que aquele tal salário lhes reservou de surpresa, embalada em papéis coloridos com todo o carinho. Impossível ficar alheio diante dessa aura fervilhante que nos invade os poros, a cabeça, a imaginação. É como um arrastão que nos faz rodopiar envolto por essa necessidade de estar bem. Tem horas, contudo, que essa imposição cultural cansa. Faço parte daquele grupo que acha o natal uma data triste, talvez por essa overdose de esperança, de sentimento de felicidade, essa fortuita alegria que nem sempre condiz com a realidade e nos é empurrada goela adentro. Somos como joguetes desse clima de oba oba, travestido de vermelho e luzes brilhantes. O espírito de natal, creio, deveria ter um romantismo, uma suavidade, um senso de compreensão como aquele impresso nos filmes água com açucar de Frank Capra. E isso pode ser resgatado por uma simbiose que está dentro desse fundamental organismo chamado família.


O natal, segundo Cândido Portinari
Não quero ser moderninho, nem ser a voz do contra. Natal é família. Não tem jeito. E família é um universo intrigante e pra lá de importante que alguns burramente não valorizam. Gosto de ficar na praça toda enfeitada com meus parentes vendo aqueles menininhos e menininhas vestidos de papai noel, dançando uma coreografia marcada e cantando a plenos pulmões, um em cada janela, daqueles imponentes prédios antigos aquelas mesmas canções. Ainda que seja uma “ô happy day” com inglês torto e desafinado. Aqui, sinto o espírito do natal lambendo minha pele. E há algo que mexe dentro de mim, quando vejo na cabeça estática voltada para cima os olhos de minha mãe e de minha irmã com um brilho que não é o usual. “Voltei a ser criança, tou aqui na praça ouvindo o coro das crianças”, contou a mãe num celular para uma amiga. E era isso mesmo, pensei comigo olhando divertido para ela. Ela como uma criança. Como aquelas que estavam uma em cada janela. Uma pausa para o desasossego. Uma cena frugal que trazia o desapego do natal, como sempre imaginei, e que só é possível do lado da família.


O natal primitivista de Antônio Poteiro

Meu natal foi sendo construído dias antes do 24 de dezembro em cada encontro que tive com minha  numerosa família. Na praia, olhando o mar, discutindo literatura com minha irmã tão cheia de verbos cheios de significados, tava ali o natal. No bar, eu e os irmãos, abduzidos pelo álcool e uma mesa farta, entoando em coro uma velha canção que marcou nossa infância. Como crianças nas janelas do prédio barroco. Andando de noite no centro da cidade já aliviado da carga frenética do dia, lembrando de dias de paz, tava ali o natal. No colo quente da mãe, vendo fotos de uma viagem repleta de memórias felizes e descobertas. Na visita do sobrinho, com seus filhos bonitos, refazendo as perdas e ganhos do ano sob o olhar atento da esposa zelosa, tava ali meu natal. No apartamento do irmão solteiro, trocando impressões sobre música, vigiados pela Laurinha Toda Pura, o título sacana da foto da moça pelada que está grudada na parede branca. No show da Veronica, um cantor fingindo-se de travesti, junto do sobrinho mais gentil que alguém poderia ter. Em todos esses instantes, sentia um conforto que as relações simples, diretas, cosanguíneas tem o poder de oferecer.

Antônio Gomide e sua visão do natal
Escrevo esse texto horas antes da confraternização oficial da família, com seus fatais perus, chester, farofa, arroz metido a besta, algum choro e abraços calorosos dos parentes. Vou fartar-me da carne, mas quero mesmo é consumir sem restrições, com o que a gula tiver de mais pecaminosa, o abraço efusivo de irmãos, mãe, sobrinhos e primos. E poder retribuir essa ternura com a mesma intensidade e paixão. E quero guardar a memória desse momento por todos os dias do ano que vai entrar, me retroalimentando dessa energia familiar como um urso que se prepara disciplinado para a hibernação, certo de que guardou em si as doses exatas para permanecer forte até o próximo inverno. Quero ser tomado no natal pela família. Sem firulas. E só isso para mim importa: fazer desse dia uma ode interna a ela. Simplesmente fazer parte dela e ser feliz. Simplesmente.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Ah, se meu apartamento falasse

Cícero em seu apartamento: momentos de solidão e reflexão
Antes havia Alice e esse era um tempo de planos e sonhos, como só uma paixão cultivada com apreço e zelo pode gerar. Era como a gravidez de uma felicidade futura. Alice e seus três cuidadores, um quadrilátero amoroso. E tinha naquela época uns tantos outros que tendiam a se multiplicar na comunhão do mesmo interesse e que viam Alice com olhos admirados tanto quanto podia uma admiração gerar, seduzidos talvez por uma proposta de casamento duradouro, daqueles sérios que prometem se perpetuar no altar, e que ela, sem pudor, provavelmente inspirava. Dizem testemunhas que, quem a viu, fez juras eternas e rezava fervorosamente para que ela amadurecesse com o mesmo vigor com que aparecia nas noites fluminenses. Mas, Alice, dois filhos depois, despediu-se melancolicamente. Partiu sem dizer se voltaria. Dos três orfãos que fizeram de Alice uma banda cultuada na segunda metade da década passada, um voltou tentando reprisar a intensidade que a precoce desaparecida produziu. Cícero Lins é o nome dele. E o primeiro trabalho solo,  Canções de Apartamento(2011), um exercício confessional de precisa beleza. Alice não mora mais naquele apartamento e nem vaga mais pelos bares e palcos. Cícero, esse, ficou no ap. escrevendo canções tão melancólicas quanto a sua sensibilidade podia gerar. E o resultado da viagem interior adentro foi esse disco de apego à poesia e a solidão.

Assista ao clipe de “Tempo de Pipa”:



Não ouvi os dois filhos da Alice, Anteluz(2005) e Ruído(2007). Deles, dizem que muita guitarra havia, um pendor para o rock que não mascarava no reboco das construções melódicas o flerte com a MPB. Canções de Apartamento é, nessa perspectiva, o namoro enfim consumado com o gênero. E uma assunção explícita, com nome aos bois e tudo. Pipocam as influências descaradas e escancaradas de alguns ídolos de Cícero, que aparecem marcados nas letras instáveis e nas melodias inspiradas. Está lá o Caetano tropicalista de “Baby”, tomando emprestado o violão do baiano na abertura daquele clássico para a concretista “Vagalumes Certos”, que também é citado na letra: “Vamos ver um filme, ter dois filhos, ir ao parque, discutir Caetano”. Tom Jobim aparece, por sua vez, nos passeios de Cícero de mãos dadas com a Bossa Nova em uma, duas canções. Na mais direta delas, “Pelo Interfone”, o compositor carioca reencontra Dindi, um dos personagens mais ilustres daquela requintada MPB, para fazer um lamento sentido: “Ai, Dindi, se tu soubesses como machuca, não amaria mais ninguém”. O genial pai de Dindi ressuscita objetivamente na canção de Cícero, ao lembrar do “disco de Jobim” que embalou um inesquecível romance. 

Capa de "Canções de Apartamento"
E como todo autor que desconhece fronteiras e se pluga nesse mundo veloz que come e regurgita com a mesma dinâmica desde lampejos geniais, como a música de Tom Jobim e Tom Waits, a baboseiras como Justin Bieber e Lady Gaga, Cícero permite-se beber em fontes estrangeiras. As mais consistentes, é claro. É possível sentir, de raspão, a presença de poucos e bons grupos de rock que fazem a história do gênero. Do agora previsível Coldplay, há a guitarra climática e o tom menor no meio da tristíssima “Eu não tenho um barco, disse a árvore” coroando uma letra sobre o fim de uma relação amorosa. “A gente sempre deixar de cuidar o que se tem na mão. Mas, é sem querer. É sempre sem querer”, justifica os versos desencantados. Há ecos do cultuado Radiohead nas entranhas de “João e o Pé de Feijão”, talvez a mais bela construção melódica desse Canções de Apartamento. Barulhinhos eletrônicos e um violão acústico minimalista e soturno reforçam essa sensação. Quem se dispor a fazer uma decupagem melhor do disco, verá outras referências musicais, pops ou não, que fazem do trabalho do carioca uma instigante obra em aberto nessa bacana junção de rock, em menor grau, e MPB.

Ouça "Ensaio sobre ela":

Cícero destila em sua estréia canções que, além das referências citadas, trazem uma assinatura própria. A maioria delas marcadas por uma poética low-profile, orgânica, prenhe de intimismo. Esse diário pessoal do artista define uma identidade única a músicas sobre amores perdidos, casas desarrumadas e solidão. Esse universo é desenhado por uma poesia ora seca e enxuta ora mais discursiva. Em “Vagalumes Cegos”, a letra é cheia de pontos e imagens estanques, como num mapa todo segmentado, concretista. “Nem sei, desses dias cheios/Meio-dias gastos/Elefantes brancos/Vagalumes cegos, meio emperrados”. Meio umbigo dele, na verdade. Cícero acerta o alvo quando mais explícito, como na bela “Açucar ou Adoçante”. “Entra para ver como você deixou o lugar/Mas tira o sapato pra entrar/Cuidado, que eu mudei de lugar algumas certezas pra não te magoar”. Nos dois casos, ansioso ou mais barroco, há um poeta que busca se mostrar por inteiro, sem medo do revés da crítica. E olhe que a parte mais enfezada dela chegou a questionar a qualidade dos versos do autor. O que é lícito, afinal Cícero é apenas um jovem, um promissor jovem, em busca de um lugar ao sol tentando, com coragem e paixão, com erros e acertos, qualificar seus versos. 

Poeta sensível, Cicero tenta impor sua escrita
Letras a parte, Cícero mostra-se mais consistente nas melodias. Delicadas e passionais, as canções amparam-se em arranjos quase todos atmosféricos, emotivos, com o uso equilibrado de pianos, violões, acordeão e percussão marcada. “Tempo de Pipa”, que abre o disco, é o exemplo mais acabado dessa sonoridade apascentada, serena que cumpre bem o papel de ser, sem arroubos, parceira, amiga das valorizadas letras das músicas. Sem arroubo também é a interpretação do artista. De voz comum, o cantor e compositor leva suas criações num tom menor, lembrando o Los Hermanos do disco Ventura (2003). Cícero arrisca soltar a quase sempre represada voz numa rápida passagem de “João e o Pé de Feijão” e em “Ponta Cego”, esta última próxima do choro sentido para cantar, contraditoriamente, a chegada da sexta-feira. Coisas de poetas sensíveis. E é a sensibilidade tão exposta em Canções de Apartamento que fazem do CD um trabalho meio fora do tom no cenário nacional, mas que, ao lado de outras revelações do gênero como Marcelo Jeneci, Tiê e Pélico (leia resenha aqui), mostra uma tendência dentro de uma nova e estimulante MPB. Deixe-se levar.

Cotação: 4

Ouça com atenção:

ou

sábado, 5 de novembro de 2011

Riso nostálgico

Selton Melo faz um filme onde a nostalgia dá o tom
Era mambembe daqueles de dar pena. Não havia lona, nem leão, nem sequer um mágico de araque que fosse. O espetáculo era emoldurado por lençóis, chitas coloridas que o vento mais forte empurrava de um lado para o outro desafiando aquela estrutura de frágil e temerosa trama. Velhas cadeiras mal ajambradas faziam as vezes das arquibancadas, ocupadas naquele dia franzino de verão por trinta pessoas contadas nas pontas dos dedos. Anônimo, o circo era a única opção de diversão naquele vilarejo praiano mal povoado de turistas. Acho que de turistas mesmo só eu e uma amiga que, embalada pelas férias, topava todo tipo de programa, de tomar picolés de suco ensacados em plásticos transparentes até enfrentar pesadas trilhas nas dunas escaldantes que mais parecia, para algum observador incauto, o pagamento de uma preciosa promessa. Naquele dia fomos ao circo. Dois momentos tornaram-se perenes em minha memória, o equilibrista Juvenal e os palhaços Pinguelim e Manguaça. O primeiro trabalhou contando com a torcida contra de uma criançada inquieta e barulhenta e o próprio peso, gordinho que estava. “Arriou, Juvenal”, gritava atrás de mim um capeta em forma de guri. Graças a deus, Juvenal não arriou. Pinguelim e Manguaça eram excepcionais, donos de um carisma, delicadeza e humor hoje raros de se ver debaixo de algum teto de circo, já tão poucos, do Brasil. Ri feito criança do alto, na época, de meus vinte e poucos anos, Puro Sangue e Pangaré me fez lembrar carinhosamente daqueles dois sujeitos daquelas feéricas férias.

Assista ao trailer de O Palhaço:




Paulo José e Selton Melo em química impecável: pura emoção
Puro Sangue e Pangaré são os personagens principais de O Palhaço(2011), segundo trabalho do também ator Selton Melo na direção de um longa-metragem (o primeiro é Feliz Natal, de 2008). Fui ver o filme envolto em curiosidade. Afinal, crítica e público tinham reverenciado este ano a obra no estreante Festival de Paulínea, centro de produção cinematográfica que está virando nossa Hollywood. Mas, também porque o tema me era caro. Sempre fui fascinado por circo, principalmente por aquela figura em tons exagerados que inspira gargalhadas e inspirou a fita de Melo. Nos dez primeiros minutos dentro da sala iluminada pelo projetor senti que muitos poderiam sair dali decepcionados. Quem estava esperando pelo humor escrachado ou o riso solto prometido pelo título singelo, tinha tudo para ficar inconformado. O que se via no transcorrer da história era um sorriso represado, tímido, produzido por uma narrativa que privilegia principalmente a reflexão e a sensibilidade. O argumento é simples, direto: Pangaré é o palhaço encarnado por Benjamim(Selton Melo) em crise existencial que resolve abandonar o Circo para encontrar uma personalidade que ele acredita estar perdida. Para isso, conta com a concordância do pai, que interpreta o outro palhaço da dupla, vivido com intensidade por um grande, enorme, Paulo José.

A trupe chega em uma nova cidade, dose felliniana de alegria
Com essa história doce e sem grandes arestas, O Palhaço torna-se a cada minuto passado uma agradável surpresa. É um pequeno grande filme insuflado de delicadeza. Selton Melo apostou num tom ingênuo de um país rural num momento em que éramos um pouco mais românticos mesmo, os anos 70 do século passado, período em que se desenrola esse quase conto de fadas. Assim como numa fita da Atlântida de Oscarito e Grande Otelo. Sem o histrionismo típico dos diretores daquele estúdio que pesavam a mão para ganhar a platéia e justificar elevados orçamentos. Melo não quer jogar tão escancaradamente para a galera. E essa é uma das grandes virtudes do longa-metragem. O cineasta, com a ajuda de sua econômica e precisa interpretação, evita o exagero, a farsa, o que seria uma tendência já que explora a vida circense. Há muito não via personagens tão humanos e sinceros habitando sem sobressaltos uma tela tingida, nos últimos anos, por uma desumanizadora espetacularização. O Circo de Pangaré e Puro Sangue está mais para o universo felliniano, que mistura com equilíbrio o real e o non-sense, do que para uma rasa trama global. E é assim, revelando o mundo interno de artistas mambembes, uma família pra lá de especial, que o diretor nos emociona.

Essa emoção tem a ver com o poder puro das imagens e da beleza de sentimentos que move os personagens. Assim como num filme mudo. E O Palhaço também é nostálgico nesse quesito. Não há verborragia. Quase não há virgulas, apostos nos curtos e poucos diálogos. Há muitos pontos, desenhados por um pincel invisível e que cala fundo no espectador. A relação silenciosa entre pai e filho palhaços, construída com vigor na esplêndida química entre Paulo José e Selton Melo, que tem a apoteose na despedida dos dois personagens, o ponto de virada do filme. A visão repentina em Pangaré do romance, exercício enevoado pela dedicação extrema ao ofício de fazer rir, que o deixa tartamudo, perplexo diante da moça bonita. Sensações extremas pontuadas por gestos e olhares. Tem a menina do Circo, que tudo observa com a fome do conhecimento. E há ainda o cheio de significados ventilador, objeto mudo de desejo do jovem palhaço. Tudo nos leva a contemplação mansa, à compreensão da vida sem novidades ou grandes emoções daqueles personagens. Nos leva à mergulhar na tristeza do palhaço angustiado de Melo, um homem sem identidade e sem comprovante de residência, que precisou fugir para entender que seu destino sempre esteve ali na sua cara.

Na caravana enfileirada por carros que mais parecem calhambeques, o Circo Esperança segue mambembe de cidade em cidade. O Circo de Selton Melo transporta artistas, artífices de ilusões que dispensam um vida luxuosa para dar ao carente espectador o luxo de uma arte caseira e redentora. O ator e diretor homenageia um tempo de delicadeza mostrando maturidade e uma invejável coragem e raro desprendimento, acertando com louvor o alvo pretendido. E de quebra, ainda resgata mestres do riso, em participações impagáveis, casos de Moacir Franco, maravilhoso e hilário como o delegado Justo, e Jorge Loredo (intérprete do clássico “Zé Bunitim”), no papel não menos engraçado de um canastrão chefe de escritório. O Palhaço é uma bela e envolvente lição de vida, um desses filmes que nos fazem sair do cinema com o coração cheio de ternura. E nesses tempos de palhaços que ocupam vagas no Congresso Nacional para virarem homens pretensamente sérios, de humor preconceituoso e chulo nos programas de televisão que tira da risada sua função mais sublime, rir de mansinho e com cumplicidade com uma história terna e bem contada é um verdadeiro presente. E aí, me dá vontade de ir para um circo mambembe qualquer, no interior profundo do Brasil, para rever algum Pinguelim e Manguaça em sua missão sagrada de fazer da gente um pouco mais criança.

Cotação: 4