quinta-feira, 29 de março de 2012

Centelhas de criatividade


Criolo: mistura de rap, MPB e trip hop gerou grande álbum
Me sinto como o coelho atarantado da psicodélica história de Lewis Caroll. Atrasado, atrasado, atrasado. Em mais uma resenha tardia desse meu maltratado blog, eis que finalmente solto a lista já mofada dos dez melhores discos nacionais de 2011. Ano de reafirmação de uma nova MPB, vemos surgir algumas promessas, nomes já conhecidos por um time antenado de ouvintes, gente com os pés já bem firmes na estrada musical, como Cícero, Pélico, Gui Amabis e Criolo, fazendo discos inteligentes. Temos também a confirmação de talentos anunciados como Tiê e Mariana Aydar. E o retorno da musa da MPB que ajudou a desaguar um tanto de novas cantoras, Marisa Monte, com um trabalho sincero e ultra-romântico. Ano passado esteve longe de ser um dos mais reveladores e fantásticos para a indústria nacional, mas deixou antevista uma centelha de criatividade, vinda das hordas de um submundo que se mexe freneticamente e que as TVs e rádios populares insistem em não ver, que tende a se cristalizar nesta década. Pelo bem de nossos ouvidos. Afinal, como disse o filosofo baiano Gilberto Gil sobre a atual produção musical brasileira, “o problema do lixo não é mais a qualidade, o mau cheiro ou a podridão. O problema do lixo é a quantidade”. Chega de lixo revestido de luans santanas. Viva a boa música. Segue minha lista de como desopilar em tempo de vacas magras:

A Coruja e o Coração (Tiê)  - O uso farto dos instrumentos amplifica a poética de Tiê. Tudo continua intimista e confessional. Mas com outro deslumbramento. Os ricos arranjos adicionam ao disco um elemento invisível no trabalho anterior, o pop. A versão flamenca e alienígena do forró “Você não Vale Nada” é prova disso. Para firmar o nome de Tiê em nossa constelação dos grandes nomes.

Sou Suspeita, Estou Sujeita, Não Sou Santa (Annelis Assumpção) – O sobrenome prenuncia a tempestade criativa. Filha do genial Itamar Assumpção, essa bela negra faz de seu disco de estréia uma ode ao refinamento e boas idéias. Tá no DNA. Um trabalho bem resolvido que traduz a alma forte e talentosa de Anelis. Um disco com substância, desses que nossas mãos estão sempre procurando para colocar no toca-cd. 

Nó na Orelha (Criolo) – Esse paulistano, velho conhecido nas Rinhas de MCs da capital de São Paulo, entrega ao público esse que talvez seja um dos trabalhos mais bonitos e surpreendentes do ano.  Uma estréia solo de peso, repleto de poesia e mensagens políticas, sem perder a ternura jamais. Ouça “Não existe amor em SP” e “Bogotá” e tente não se contagiar. Discaço devidamente reconhecido, caso raro, pelo público e crítica.
Que isso Fique entre Nós (Pélico) - O quanto de nitroglicerina pode conter uma paixão? Pélico experimentou contar casos de amor, romances, com um desprendimento à flor da pele. O resultado é Que Isso Fique entre Nós(2011), uma espécie de delicado diário de amores perdidos. Segundo desse paulistano, o CD traz pérolas como “Recado” e “Levarei”, hinos sensíveis e bem tramados num trabalho feito para tatuar corações.

Canções de Apartamento (Cícero) - Namoro consumado com a MPB de um artista que já havia mostrado seu potencial na extinta banda Alice. Relação apaixonada que traz traços e referência de medalhões como Tom Jobim e Caetano Veloso. Mais do que isso, porém, uma estréia marcada por lindas e melodiosas canções. A maioria delas marcadas por uma poética low-profile, orgânica, prenhe de intimismo. Ouça com atenção.

Cavaleiro Selvagem, aqui te sigo (Mariana Aydar) - Depois de dois discos muito elogiados, essa cantora e compositora mostra seu amadurecimento numa obra que reúne o que ela produziu de melhor nos trabalhos anteriores. Personalidade, arranjos equilibrados, releituras diferenciadas de velhos clássicos, Aydar confirma que veio para ficar. A interpretação candente de “Vai Vadiar” e de “Passionais” são retratos perfeitos desse amadurecimento.

O Que você quer saber de Verdade (Marisa Monte) – A musa retorna reforçando o lado romântico que visitou com freqüência nos últimos discos. Há quem torça o nariz para Marisa Monte, mas com esse último trabalho ela desafia a crítica ranzinza gravando despudoradamente canções apaixonadas e bem produzidas a exemplo da pegajosa “Ainda bem” e da deliciosa “Aquela Velha Canção”. Para quem não tem medo de se apaixonar.

Baptista Virou Máquina (Burro Morto) – O disco instrumental do ano. O grupo paraibano cria texturas cinematográficas e densas nesse CD surpreendente, trilha sonora de filme. Os caras buscam no jazz, no funk, no afrobeat e no rock, o verniz para composições cheias de vida e instigantes. Ousam com um conteúdo que não dispensa improvisações e até atonalismo. Trilha robusta, com timbres e matizes ricos que marcaram 2011.

Memórias Luso/africanas (Gui Amabis) – Produtor requisito e músico de primeira linha, Gui Amabis mergulha no passado para fazer um disco de fortes sabores. Tambor e eletrônica se unem numa obra capilar. A participação de Céu, esposa do artista, em “Doce Espera”, e do seminal grupo Nação Zumbi só melhoram esse encantador trabalho. Para destrinchar aos poucos, como merece esse CD tão cheio de tessituras e belezas.

Longe de Onde (Karina Buhr) – A pernambucaninha é outra que confirma o talento exercitado no disco de estréia, o ótimo Eu Menti pra Você. Ela demonstra em canções rápidas a mesma inquietude e o espírito criativo que chamaram a atenção da crítica. Os petardos “Casa Palavra” e “A Pessoa Morre”, que abrem o disco, são reveladores de uma artista antenada com seu tempo. Desafiadora e provocativa, Buhr cativa mais uma vez sem concessões.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Já foi tarde


PJ se reiventa com disco impactante que marcou 2011
Black Keys:disco pop para entrar de vez no mainstream
O ano já esquenta nossa pele e eu mais uma vez me enredei nas malhas do tempo, refém submisso de longas e espetaculares férias. Sol demais e aquela languidez e ociosidade que as paisagens inebriantes inspiram na gente que tem o doce privilégio de poder viajar por aí. E, em meio a uma estertorante preguiça, o Todoouvido ficou a deriva, bem ali na praia do esquecimento com a esquina do desprezo, a espera daquele boca a boca reanimador. Depois veio o carnaval e minha vontade de fazer as pazes com o blog sambou. Hora de voltar para fechar o caixão desse falecido 2011 e tocar a vida em pleno fevereiro, tirando a poeira dos dias vãos e espreitando cheio de esperança um 2012 musicalmente contundente. Para isso, nada melhor do que a velha e tradicional lista dos bons CDs que nos ofereceram no ano passado. No geral, aqueles 365 dias marcados pelas guerrilhas da reveladora primavera árabe, pelas contumazes tragédias guiadas por insanos e suas impiedosas armas de fogo e a perda da anti-heroína Amy Winehouse, não foi dos mais ricos em termos de criações musicais. Nenhum álbum com cara de clássico foi lançado, pelo menos entre os que ouvi, talvez Let England Shake, de PJ Harvey, e El Camino, do Black Keys, se aproximem disso. Nenhuma revelação bombástica que nos tirasse o fôlego. Apenas um ano mediano com alguns discos que valem a pena ter na sua coleção. Eis aí os meus dez mais internacionais sem ordem hierárquica de importância. Na próxima resenha, os dez nacionais que mais me chamaram atenção.

Collapse into Know  (R.E.M) – Pela alegria e vitalidade de um grupo que nunca perdeu a majestade, mesmo em seus momentos menos inspirados. Pela volta da pegada rocker do R.E.M, geradora de uma legião de fãs pelo mundo todo. Por ter virado um belo testamento desses velhos guerreiros que anunciaram o desmanche em 2011.




The English Riviera (Metronomy) – Pela elegância e delicadeza de músicas como “Some Written” e “Everything Goes My Way”. Pela busca de inspiração na black music que garantiu suingue e consistência a esse disco encantador. Por terem mudado o rumo da conversa, abandonando o viés eletrônico que marcou a início da carreira dos britânicos.




 Anna Calvi (Anna Calvi) – Por ter sido o vozeirão mais impressionante do ano. Pela devassa vontade de entregar o coração ao ouvinte. Pela esperteza e singularidade dos arranjos, refinados e potentes ao mesmo tempo, que permitiram que a moça impusesse sua grande arte. Pela esperança de termos uma artista que entre para a história do rock.



Let England Shake (PJ Harvey) – Pelo espantoso poder da britânica de se reinventar a cada disco. Pela engenhosidade dos arranjos de canções matadoras com efeito de soco no estômago, reforçados por interpretações de arrepiar. Política e beleza andam juntas nas impressionantes “The Glorious Land”, uma das melhores do disco, e “The Words That Maketh Murder”.



Metals (Feist) – Pelo interessante equilíbrio que o grupo conseguiu entre o pop e o experimental. Pelas magistrais interpretações da canadense Leslie Feist. Pela beleza das melodias, que mantêm a mesma criatividade e climas do também luminoso álbum de estréia. Por emular a grande Kate Bush em alguns dos seus momentos mais inspirados.



Wasting Lights (Foo Fighters) – Pela fantástica homogeneidade de todas as canções do álbum. Pela lição de como fazer um rock urgente, espelhado em petardos como “Bridge Burning”, “White Limo” e “Back Forth”. Por terem retomado um pouco daquela sujeira que fez do Nirvana, berço de Krist Novalic, uma banda cheia de marra e talento.



Suck it and See (Arctic Monkeys) – Pelo desapego a empáfia, apesar da banda já ter conquistado seu lugar ao sol. Por um ar juvenil que impregna o disco em “Brick to Brick” e na ótima “Library Pictures”. Por contrariarem a crítica casmurra, revivendo uma atmosfera garageira que faz muito bem aos nossos ouvidos.




El Camino (The Black Keys) – Pelo definitivo casamento com o pop num disco pleno de grandes achados. Por uma estética retrô, calcada principalmente em um rock direto e dançante, que fizeram de “Lonely Boy” uma das grandes músicas de 2011. Por que o vocalista e guitarrista Dan Auerbach e o baterista e produtor Patrick Carney são os “caras”.



The King is Dead (The Decemberist) – Por terem se firmado como um dos grupos folks mais inspirados do momento. Pela escancarada simplicidade que casa como uma luva às engenhosas melodias do álbum. Pelas baladas luminosas como “Rise to Me”, “Dear Avery”, e “June Hymn”, todas de um lirismo a toda prova.




Different Gear, Still Speeding (Beady Eye) – Pela fanfarronice de Liam transformada em rock vigoroso. Por uma sonoridade crua, longe da influência beatlemaníaca que marca o bom disco solo também lançado em 2011 pelo irmão Noel. Pelo talento inato do Gallagher mais barulhento que deixou a preguiça de lado para mergulhar moleque no universo das músicas pegajosas.




Menção honrosa:

Helplessness Blues (Fleet Foxes) – Por terem reafirmado a beleza barroca de sua música que paira soberana entre o folk rock e a sonoridade medieval. Pela coragem dos norte-americanos de arquitetarem um som sem revivalismos e longe de modismos. Pelo deleite quase espiritual que é ouvir pequenas pérolas como “Battery Kinzie” e “The Plains/Bitter Dance”.

sábado, 24 de dezembro de 2011

Desse dia de família e abraços

Natividade, na visão da modernista Anita Malfatti
Chega o dia 24 de dezembro e o ar fica, invariavelmente, carregado daquilo que a emblemática data impõe. Tantas luzes colorindo a noite, tanta gente no comércio enfezada com o natural atropelo de corpos e ansiosa para fugir o mais rápido possível do enxame provocado pelo consumo. Tantas mulheres nos salões de beleza buscando fórmulas e equações químicas para ficarem diferentes e sedutoras. Vai aí uma escova inteligente? Tantos homens fazendo contas para otimizar os salários a reboque de promoções e desejos da família ávida por uma noite feliz. Tantas crianças contando as horas para ver o que aquele tal salário lhes reservou de surpresa, embalada em papéis coloridos com todo o carinho. Impossível ficar alheio diante dessa aura fervilhante que nos invade os poros, a cabeça, a imaginação. É como um arrastão que nos faz rodopiar envolto por essa necessidade de estar bem. Tem horas, contudo, que essa imposição cultural cansa. Faço parte daquele grupo que acha o natal uma data triste, talvez por essa overdose de esperança, de sentimento de felicidade, essa fortuita alegria que nem sempre condiz com a realidade e nos é empurrada goela adentro. Somos como joguetes desse clima de oba oba, travestido de vermelho e luzes brilhantes. O espírito de natal, creio, deveria ter um romantismo, uma suavidade, um senso de compreensão como aquele impresso nos filmes água com açucar de Frank Capra. E isso pode ser resgatado por uma simbiose que está dentro desse fundamental organismo chamado família.


O natal, segundo Cândido Portinari
Não quero ser moderninho, nem ser a voz do contra. Natal é família. Não tem jeito. E família é um universo intrigante e pra lá de importante que alguns burramente não valorizam. Gosto de ficar na praça toda enfeitada com meus parentes vendo aqueles menininhos e menininhas vestidos de papai noel, dançando uma coreografia marcada e cantando a plenos pulmões, um em cada janela, daqueles imponentes prédios antigos aquelas mesmas canções. Ainda que seja uma “ô happy day” com inglês torto e desafinado. Aqui, sinto o espírito do natal lambendo minha pele. E há algo que mexe dentro de mim, quando vejo na cabeça estática voltada para cima os olhos de minha mãe e de minha irmã com um brilho que não é o usual. “Voltei a ser criança, tou aqui na praça ouvindo o coro das crianças”, contou a mãe num celular para uma amiga. E era isso mesmo, pensei comigo olhando divertido para ela. Ela como uma criança. Como aquelas que estavam uma em cada janela. Uma pausa para o desasossego. Uma cena frugal que trazia o desapego do natal, como sempre imaginei, e que só é possível do lado da família.


O natal primitivista de Antônio Poteiro

Meu natal foi sendo construído dias antes do 24 de dezembro em cada encontro que tive com minha  numerosa família. Na praia, olhando o mar, discutindo literatura com minha irmã tão cheia de verbos cheios de significados, tava ali o natal. No bar, eu e os irmãos, abduzidos pelo álcool e uma mesa farta, entoando em coro uma velha canção que marcou nossa infância. Como crianças nas janelas do prédio barroco. Andando de noite no centro da cidade já aliviado da carga frenética do dia, lembrando de dias de paz, tava ali o natal. No colo quente da mãe, vendo fotos de uma viagem repleta de memórias felizes e descobertas. Na visita do sobrinho, com seus filhos bonitos, refazendo as perdas e ganhos do ano sob o olhar atento da esposa zelosa, tava ali meu natal. No apartamento do irmão solteiro, trocando impressões sobre música, vigiados pela Laurinha Toda Pura, o título sacana da foto da moça pelada que está grudada na parede branca. No show da Veronica, um cantor fingindo-se de travesti, junto do sobrinho mais gentil que alguém poderia ter. Em todos esses instantes, sentia um conforto que as relações simples, diretas, cosanguíneas tem o poder de oferecer.

Antônio Gomide e sua visão do natal
Escrevo esse texto horas antes da confraternização oficial da família, com seus fatais perus, chester, farofa, arroz metido a besta, algum choro e abraços calorosos dos parentes. Vou fartar-me da carne, mas quero mesmo é consumir sem restrições, com o que a gula tiver de mais pecaminosa, o abraço efusivo de irmãos, mãe, sobrinhos e primos. E poder retribuir essa ternura com a mesma intensidade e paixão. E quero guardar a memória desse momento por todos os dias do ano que vai entrar, me retroalimentando dessa energia familiar como um urso que se prepara disciplinado para a hibernação, certo de que guardou em si as doses exatas para permanecer forte até o próximo inverno. Quero ser tomado no natal pela família. Sem firulas. E só isso para mim importa: fazer desse dia uma ode interna a ela. Simplesmente fazer parte dela e ser feliz. Simplesmente.

terça-feira, 15 de novembro de 2011

Ah, se meu apartamento falasse

Cícero em seu apartamento: momentos de solidão e reflexão
Antes havia Alice e esse era um tempo de planos e sonhos, como só uma paixão cultivada com apreço e zelo pode gerar. Era como a gravidez de uma felicidade futura. Alice e seus três cuidadores, um quadrilátero amoroso. E tinha naquela época uns tantos outros que tendiam a se multiplicar na comunhão do mesmo interesse e que viam Alice com olhos admirados tanto quanto podia uma admiração gerar, seduzidos talvez por uma proposta de casamento duradouro, daqueles sérios que prometem se perpetuar no altar, e que ela, sem pudor, provavelmente inspirava. Dizem testemunhas que, quem a viu, fez juras eternas e rezava fervorosamente para que ela amadurecesse com o mesmo vigor com que aparecia nas noites fluminenses. Mas, Alice, dois filhos depois, despediu-se melancolicamente. Partiu sem dizer se voltaria. Dos três orfãos que fizeram de Alice uma banda cultuada na segunda metade da década passada, um voltou tentando reprisar a intensidade que a precoce desaparecida produziu. Cícero Lins é o nome dele. E o primeiro trabalho solo,  Canções de Apartamento(2011), um exercício confessional de precisa beleza. Alice não mora mais naquele apartamento e nem vaga mais pelos bares e palcos. Cícero, esse, ficou no ap. escrevendo canções tão melancólicas quanto a sua sensibilidade podia gerar. E o resultado da viagem interior adentro foi esse disco de apego à poesia e a solidão.

Assista ao clipe de “Tempo de Pipa”:



Não ouvi os dois filhos da Alice, Anteluz(2005) e Ruído(2007). Deles, dizem que muita guitarra havia, um pendor para o rock que não mascarava no reboco das construções melódicas o flerte com a MPB. Canções de Apartamento é, nessa perspectiva, o namoro enfim consumado com o gênero. E uma assunção explícita, com nome aos bois e tudo. Pipocam as influências descaradas e escancaradas de alguns ídolos de Cícero, que aparecem marcados nas letras instáveis e nas melodias inspiradas. Está lá o Caetano tropicalista de “Baby”, tomando emprestado o violão do baiano na abertura daquele clássico para a concretista “Vagalumes Certos”, que também é citado na letra: “Vamos ver um filme, ter dois filhos, ir ao parque, discutir Caetano”. Tom Jobim aparece, por sua vez, nos passeios de Cícero de mãos dadas com a Bossa Nova em uma, duas canções. Na mais direta delas, “Pelo Interfone”, o compositor carioca reencontra Dindi, um dos personagens mais ilustres daquela requintada MPB, para fazer um lamento sentido: “Ai, Dindi, se tu soubesses como machuca, não amaria mais ninguém”. O genial pai de Dindi ressuscita objetivamente na canção de Cícero, ao lembrar do “disco de Jobim” que embalou um inesquecível romance. 

Capa de "Canções de Apartamento"
E como todo autor que desconhece fronteiras e se pluga nesse mundo veloz que come e regurgita com a mesma dinâmica desde lampejos geniais, como a música de Tom Jobim e Tom Waits, a baboseiras como Justin Bieber e Lady Gaga, Cícero permite-se beber em fontes estrangeiras. As mais consistentes, é claro. É possível sentir, de raspão, a presença de poucos e bons grupos de rock que fazem a história do gênero. Do agora previsível Coldplay, há a guitarra climática e o tom menor no meio da tristíssima “Eu não tenho um barco, disse a árvore” coroando uma letra sobre o fim de uma relação amorosa. “A gente sempre deixar de cuidar o que se tem na mão. Mas, é sem querer. É sempre sem querer”, justifica os versos desencantados. Há ecos do cultuado Radiohead nas entranhas de “João e o Pé de Feijão”, talvez a mais bela construção melódica desse Canções de Apartamento. Barulhinhos eletrônicos e um violão acústico minimalista e soturno reforçam essa sensação. Quem se dispor a fazer uma decupagem melhor do disco, verá outras referências musicais, pops ou não, que fazem do trabalho do carioca uma instigante obra em aberto nessa bacana junção de rock, em menor grau, e MPB.

Ouça "Ensaio sobre ela":

Cícero destila em sua estréia canções que, além das referências citadas, trazem uma assinatura própria. A maioria delas marcadas por uma poética low-profile, orgânica, prenhe de intimismo. Esse diário pessoal do artista define uma identidade única a músicas sobre amores perdidos, casas desarrumadas e solidão. Esse universo é desenhado por uma poesia ora seca e enxuta ora mais discursiva. Em “Vagalumes Cegos”, a letra é cheia de pontos e imagens estanques, como num mapa todo segmentado, concretista. “Nem sei, desses dias cheios/Meio-dias gastos/Elefantes brancos/Vagalumes cegos, meio emperrados”. Meio umbigo dele, na verdade. Cícero acerta o alvo quando mais explícito, como na bela “Açucar ou Adoçante”. “Entra para ver como você deixou o lugar/Mas tira o sapato pra entrar/Cuidado, que eu mudei de lugar algumas certezas pra não te magoar”. Nos dois casos, ansioso ou mais barroco, há um poeta que busca se mostrar por inteiro, sem medo do revés da crítica. E olhe que a parte mais enfezada dela chegou a questionar a qualidade dos versos do autor. O que é lícito, afinal Cícero é apenas um jovem, um promissor jovem, em busca de um lugar ao sol tentando, com coragem e paixão, com erros e acertos, qualificar seus versos. 

Poeta sensível, Cicero tenta impor sua escrita
Letras a parte, Cícero mostra-se mais consistente nas melodias. Delicadas e passionais, as canções amparam-se em arranjos quase todos atmosféricos, emotivos, com o uso equilibrado de pianos, violões, acordeão e percussão marcada. “Tempo de Pipa”, que abre o disco, é o exemplo mais acabado dessa sonoridade apascentada, serena que cumpre bem o papel de ser, sem arroubos, parceira, amiga das valorizadas letras das músicas. Sem arroubo também é a interpretação do artista. De voz comum, o cantor e compositor leva suas criações num tom menor, lembrando o Los Hermanos do disco Ventura (2003). Cícero arrisca soltar a quase sempre represada voz numa rápida passagem de “João e o Pé de Feijão” e em “Ponta Cego”, esta última próxima do choro sentido para cantar, contraditoriamente, a chegada da sexta-feira. Coisas de poetas sensíveis. E é a sensibilidade tão exposta em Canções de Apartamento que fazem do CD um trabalho meio fora do tom no cenário nacional, mas que, ao lado de outras revelações do gênero como Marcelo Jeneci, Tiê e Pélico (leia resenha aqui), mostra uma tendência dentro de uma nova e estimulante MPB. Deixe-se levar.

Cotação: 4

Ouça com atenção:

ou

sábado, 5 de novembro de 2011

Riso nostálgico

Selton Melo faz um filme onde a nostalgia dá o tom
Era mambembe daqueles de dar pena. Não havia lona, nem leão, nem sequer um mágico de araque que fosse. O espetáculo era emoldurado por lençóis, chitas coloridas que o vento mais forte empurrava de um lado para o outro desafiando aquela estrutura de frágil e temerosa trama. Velhas cadeiras mal ajambradas faziam as vezes das arquibancadas, ocupadas naquele dia franzino de verão por trinta pessoas contadas nas pontas dos dedos. Anônimo, o circo era a única opção de diversão naquele vilarejo praiano mal povoado de turistas. Acho que de turistas mesmo só eu e uma amiga que, embalada pelas férias, topava todo tipo de programa, de tomar picolés de suco ensacados em plásticos transparentes até enfrentar pesadas trilhas nas dunas escaldantes que mais parecia, para algum observador incauto, o pagamento de uma preciosa promessa. Naquele dia fomos ao circo. Dois momentos tornaram-se perenes em minha memória, o equilibrista Juvenal e os palhaços Pinguelim e Manguaça. O primeiro trabalhou contando com a torcida contra de uma criançada inquieta e barulhenta e o próprio peso, gordinho que estava. “Arriou, Juvenal”, gritava atrás de mim um capeta em forma de guri. Graças a deus, Juvenal não arriou. Pinguelim e Manguaça eram excepcionais, donos de um carisma, delicadeza e humor hoje raros de se ver debaixo de algum teto de circo, já tão poucos, do Brasil. Ri feito criança do alto, na época, de meus vinte e poucos anos, Puro Sangue e Pangaré me fez lembrar carinhosamente daqueles dois sujeitos daquelas feéricas férias.

Assista ao trailer de O Palhaço:




Paulo José e Selton Melo em química impecável: pura emoção
Puro Sangue e Pangaré são os personagens principais de O Palhaço(2011), segundo trabalho do também ator Selton Melo na direção de um longa-metragem (o primeiro é Feliz Natal, de 2008). Fui ver o filme envolto em curiosidade. Afinal, crítica e público tinham reverenciado este ano a obra no estreante Festival de Paulínea, centro de produção cinematográfica que está virando nossa Hollywood. Mas, também porque o tema me era caro. Sempre fui fascinado por circo, principalmente por aquela figura em tons exagerados que inspira gargalhadas e inspirou a fita de Melo. Nos dez primeiros minutos dentro da sala iluminada pelo projetor senti que muitos poderiam sair dali decepcionados. Quem estava esperando pelo humor escrachado ou o riso solto prometido pelo título singelo, tinha tudo para ficar inconformado. O que se via no transcorrer da história era um sorriso represado, tímido, produzido por uma narrativa que privilegia principalmente a reflexão e a sensibilidade. O argumento é simples, direto: Pangaré é o palhaço encarnado por Benjamim(Selton Melo) em crise existencial que resolve abandonar o Circo para encontrar uma personalidade que ele acredita estar perdida. Para isso, conta com a concordância do pai, que interpreta o outro palhaço da dupla, vivido com intensidade por um grande, enorme, Paulo José.

A trupe chega em uma nova cidade, dose felliniana de alegria
Com essa história doce e sem grandes arestas, O Palhaço torna-se a cada minuto passado uma agradável surpresa. É um pequeno grande filme insuflado de delicadeza. Selton Melo apostou num tom ingênuo de um país rural num momento em que éramos um pouco mais românticos mesmo, os anos 70 do século passado, período em que se desenrola esse quase conto de fadas. Assim como numa fita da Atlântida de Oscarito e Grande Otelo. Sem o histrionismo típico dos diretores daquele estúdio que pesavam a mão para ganhar a platéia e justificar elevados orçamentos. Melo não quer jogar tão escancaradamente para a galera. E essa é uma das grandes virtudes do longa-metragem. O cineasta, com a ajuda de sua econômica e precisa interpretação, evita o exagero, a farsa, o que seria uma tendência já que explora a vida circense. Há muito não via personagens tão humanos e sinceros habitando sem sobressaltos uma tela tingida, nos últimos anos, por uma desumanizadora espetacularização. O Circo de Pangaré e Puro Sangue está mais para o universo felliniano, que mistura com equilíbrio o real e o non-sense, do que para uma rasa trama global. E é assim, revelando o mundo interno de artistas mambembes, uma família pra lá de especial, que o diretor nos emociona.

Essa emoção tem a ver com o poder puro das imagens e da beleza de sentimentos que move os personagens. Assim como num filme mudo. E O Palhaço também é nostálgico nesse quesito. Não há verborragia. Quase não há virgulas, apostos nos curtos e poucos diálogos. Há muitos pontos, desenhados por um pincel invisível e que cala fundo no espectador. A relação silenciosa entre pai e filho palhaços, construída com vigor na esplêndida química entre Paulo José e Selton Melo, que tem a apoteose na despedida dos dois personagens, o ponto de virada do filme. A visão repentina em Pangaré do romance, exercício enevoado pela dedicação extrema ao ofício de fazer rir, que o deixa tartamudo, perplexo diante da moça bonita. Sensações extremas pontuadas por gestos e olhares. Tem a menina do Circo, que tudo observa com a fome do conhecimento. E há ainda o cheio de significados ventilador, objeto mudo de desejo do jovem palhaço. Tudo nos leva a contemplação mansa, à compreensão da vida sem novidades ou grandes emoções daqueles personagens. Nos leva à mergulhar na tristeza do palhaço angustiado de Melo, um homem sem identidade e sem comprovante de residência, que precisou fugir para entender que seu destino sempre esteve ali na sua cara.

Na caravana enfileirada por carros que mais parecem calhambeques, o Circo Esperança segue mambembe de cidade em cidade. O Circo de Selton Melo transporta artistas, artífices de ilusões que dispensam um vida luxuosa para dar ao carente espectador o luxo de uma arte caseira e redentora. O ator e diretor homenageia um tempo de delicadeza mostrando maturidade e uma invejável coragem e raro desprendimento, acertando com louvor o alvo pretendido. E de quebra, ainda resgata mestres do riso, em participações impagáveis, casos de Moacir Franco, maravilhoso e hilário como o delegado Justo, e Jorge Loredo (intérprete do clássico “Zé Bunitim”), no papel não menos engraçado de um canastrão chefe de escritório. O Palhaço é uma bela e envolvente lição de vida, um desses filmes que nos fazem sair do cinema com o coração cheio de ternura. E nesses tempos de palhaços que ocupam vagas no Congresso Nacional para virarem homens pretensamente sérios, de humor preconceituoso e chulo nos programas de televisão que tira da risada sua função mais sublime, rir de mansinho e com cumplicidade com uma história terna e bem contada é um verdadeiro presente. E aí, me dá vontade de ir para um circo mambembe qualquer, no interior profundo do Brasil, para rever algum Pinguelim e Manguaça em sua missão sagrada de fazer da gente um pouco mais criança.

Cotação: 4

quinta-feira, 27 de outubro de 2011

De costas para o sistema

Quando me vi de repente tomado pela maré de notícias sobre as revoltas protagonizadas por uma jovem população européia parei, diante da minha antiquada TV de 21 polegadas, num estúpido átimo de aturdimento. Como se tudo o mais em minha volta também se visse suspenso. Talvez porque envolvido pelo silêncio das horas que satelizam aqueles jornais de televisão da madrugada feitos para insones e viciados em informações. Ou talvez por aquela típica leseira de quem começa a perder a batalha contra o sono. Foi assim um dia desses. Manifestações pipocando no velho mundo contra a crise econômica, a falta de emprego, a truculência de políticos arrogantes. Em todas elas havia uma boa parcela de irritados jovens, cheios de vigor e caras e bocas na defesa de suas bandeiras. Não como no Maio de 1968 em Paris, até porque parte daquele romantismo sucumbiu diante de uma certa lógica e frieza de como a maioria passou a encarar o mundo. Mas, eles estavam lá, belos, se posicionando, agrupados em massa, como um corpo vivo. E fiquei feliz, depois do espanto, por aquela demonstração de proatividade com o que os incomodava. O velho continente costuma dar lições mais fortes e impactantes de insatisfação, de como se colocar diante da perda da inocência corrompida pelo capital. Os europeus têm cultura, estofo, para isso. Pensando nisso, voltava a uma recorrente elocubração: viria de lá a revolução musical, aquele inesperado movimento a esquerda para sacudir os alicerces da estagnação musical que parece ter tomado conta da humanidade. Tem quem ache que o WU LYF seja isso. E aqui, após tantos desvãos, chegamos ao foco desta resenha.

Assista ao clip de “Dirt”:



Isso que parece um erro de grafia é uma sigla. Das mais canhestras e propositadamente cabulosa. World Unite Lucifer Youth Foundation, o WU LYF. Uma banda inglesa, da mesma Manchester das icônicas Stone Roses e The Smiths, que anda assombrando vários críticos pelo rompante radical de fazer música e por suas letras ácidas e com forte acento político. “Revolucionária”, arriscou um desses resenhistas puxando um coro, para mim, um tanto precipitado. Não sinto que seja tudo isso. O que o quarteto britânico faz é captar aquele sentimento de inconformismo que preenche os jovens, o mesmo que os fazem sair para a rua para reclamar os temas mais caros a um mundo em crise. Capturam o zeitgeist, aquele senso coletivo que se torna quase concreto e imanta toda uma sociedade. O crítico Alex Ross escreveu em seu livro Escuta Só, do Clássico ao Pop: “Em qualquer momento da história, existem alguns compositores e músicos criativos que parecem deter os segredos da época”. É por aí. O que se ouve em Go Tell Fire to the Mountain(2011), título do primeiro trabalho desse grupo, não é revolução, nem é exatamente novo. É uma música raivosa, incômoda, difícil de ser consumida. Há aqui um paredão sonoro composto de um vocalista gutural, Ellery Roberts, responsável também pelo órgão, instrumento barroco em diálogos estranhos com o baixo de Tom McClung, a guitarra de Evans Kati e a bateria tribal de Joseph Manning, sugerindo um som anárquico, algumas vezes claustrofóbico, mas quase sempre e provocador.

Em meio às vociferações de Roberts, gritos que se tornam uma das marcas registradas de Go Tell Fire to the Mountain, existe ecos do krautrock, do post rock e do post punk ou seja, tudo aquilo que de moderno e pouco traduzível tem o rock em suas mais radicais tentativas de renovação do gênero. Em panos limpos: muita barulheira e o uso de elementos antigos com uma roupagem contemporânea numa tentativa de se criar o novo. Em “Dirt”, que considero a melhor composição do disco, há um batuque introdutório, uma percussão com tintas africanas que reforça uma melodia nervosa, guerrilheira, como as imagens do clip oficial(acima) da banda que traduz muito bem o espírito da canção. Como uma granada explodindo próximo de nossa epiderme e de nossos agoniados tímpanos, essa música convoca o ouvinte para uma batalha, para uma franca resistência aquilo que entorpece a alma. E isso é, claramente, um fazer político. Saída da boca do vocalista do WU LYF, essa convocação tem compreensivelmente um vigor quase panfletário. Soa como o retrato de uma juventude desencantada que usa o rock e o verbo para se comunicar com o mundo. E a escolha por essa “poética”, por um repertório mais politizado é outra das características marcantes desse álbum sem apelo popular e que tem tudo para virar cult.

Esse veio político é centrado, nas letras, numa crítica mais genérica à humanidade, não a temas conjunturais específicos das terras britânicas ou qualquer outro continente do planeta terra. Como o ímpeto capitalista, e a força da grana, resgatando aqui Caetano Veloso, que constrói e destrói coisas belas. “Tem crianças nas ruas, vendo o concreto se transformar em ouro/Você é tão jovem, mas essas cidades o fazem envelhecer”, canta Roberts em "Summas Bliss". No início do disco, a banda já entregava a senha dessa crítica engajada ao sistema econômico que atropela tantos interesses comuns e fragiliza uma já castigada e pouco valorizada espiritualidade. “Quantos dos seus garotos temem a morte?”, questiona a banda em “LYF”. É o discurso hippie reformado, adaptado aos quentes dias de hoje. Os gritos de guerras repetem-se durante toda a barulhenta trajetória desse estranho, mas conseqüente álbum. A ponto mesmo de se tornarem diretos e impactantes. Papo reto. “Coloquem suas armas e cantem conosco essa canção”, sugere a letra da bacana “We Bros”. E para isso, complementa o quarteto na já citada “Dirt”, resumindo de vez essa batalha contra um declarado inimigo, “não importa o que eles dizem, o dollar não é seu amigo”. Enfim, um bando de jovens resolvem deixar de lado canções açucaradas sobre boys and girls apaixonados para botar pra fora essa revolta adquirida e alimentada em tantos anos de desconcerto e de falência de um sistema(olha ele aqui de novo) que esqueceu, em suas contas, de contabilizar o que há de mais humano em nós.

Ouça “Cave Song”:



Mas, claro, são apenas gritos de revolta que fazem um grande disco. Musicalmente, as composições são, numa comparação meio absurda, como aquelas engenhocas de transmissão de mensagens dos filmes da série Missão Impossível: parecem querer se autodestruir em poucos segundos. Soam quase toscas, mas têm poder em sua urgência. Mesmo quando tentam ser mais comportadas, como nas mais lentas “Such a Sad Puppy Dog” e “14 Crowns for me and your Friends”, na qual o órgão cria uma atmosfera glacial, perturbadora, pecam por uma ansiedade desenfreada. Essa música rende-se algumas vezes à anarquia, chegando a um paroxismo que lembra o combo Mano Negra, a exemplo de “Cave Song”. Dito tudo isso, você pode perguntar: “E aí, o disco é bom?”. É mesmo, lembrando de um ótimo jargão publicitário, toda essa Brastemp? Tive uma primeira impressão negativa do dito cujo. Não gosto de bandas que se escondem atrás de siglas maneiristas, de muito barulho e gritaria para impor uma idéia. A melhor idéia musical, sempre acreditei nisso, é ser claro nas intenções mesmo que ela esteja amparada numa contundente parede sonora. WU LYF é como um rascunho de uma arte que tenta se desenhar ideologicamente, que busca identidade própria. É um projeto em andamento, aquilo que os americanos chamam inteligentemente de work in progress. No que todo aquele barulho vai se tornar, só o futuro dirá. Mas, até lá vale ouvir os caras, até porque é sempre bom dar atenção a quem foge da obviedade. Afinal, é assim que caminha a humanidade.

Cotação: 4

Na base da brodagem, vá lá antes que o sistema destrua o link:

http://www.mediafire.com/?b5xxi7d2vn8qrkf

domingo, 16 de outubro de 2011

Armadilhas do amor

O quanto de nitroglicerina pode conter uma paixão? E o quanto de segredos não revelados, ocultos na profundeza das retinas? Muitas das histórias, das pequenas rusgas, de compleições e incompatibilidades que um relacionamento amoroso carrega e que, muitas vezes, descarregam em um buliçoso fim, cabem em uma canção. Pélico, um paulistano de peito aberto, experimentou contar casos de amor, romances, com um desprendimento à flor da pele. O resultado é Que Isso Fique entre Nós(2011), uma espécie de delicado diário de amores perdidos. Essa complexa trama que une duas pessoas é o objeto de dezesseis composições intimistas que deságuam em um álbum em que palavras diretas e sem rodeios são acompanhadas por arranjos que as vestem em trajes mínimos, desvelando por completo o coração do autor. Trespassado, fudido, rendido ao inevitável. Um coração à mostra. É um álbum sobre a dor de cotovelo, disse o cara em uma entrevista. Mais do que isso: é o retrato de um sentimento que, repleto de delícias e armadilhas, ajuda a mover uma humanidade inteira.

Veja vídeo de “Recado”:



Pélico é paulistano de dois discos. O primeiro, “O Último Dia de um Homem sem Juízo”, foi gravado em 2008. Mais rocker, mais gritado, mais irônico, revela quem o criou. Depois, confidencia o mesmo, resolveu escarafunchar as coisas ditas, escritas e cantadas por Lupicínio Rodrigues, Ataulfo Alves, Orlando Silva(terá sido deste os “erres” cúmplices e bem pronunciados pelo artista no álbum em questão?), mestres dos imbroglios do amor. Contaminou-se. E o vírus dos amores mal resolvidos, dos casos afogados em copos de cachaça, revelados com letras firmes por aqueles ilustres antepassados, foi inoculado nele. Resolveu inspirar-se em sua própria trajetória de vida e a de amigos próximos para enfileirar mágoas e lições de sucumbidos relacionamentos em Que isso Fique entre Nós. O título/expressão é a melhor tradução deste segundo trabalho de Pélico. Assim como aquilo pronunciado e encerrado em um caso de amor, transmitido com zelo para um único ouvido, com endereço certo, somente para quem interessar possa. Aquilo que o resto do mundo, por favor, não precisa saber.

Esses diálogos da paixão são destilados em canções que parecer soar lineares em todo o disco, assim como o amor, plural que é, provoca coincidências. Como capítulos de um mesmo caso amoroso alinhavado por uma humana pulsão. Pelo desejo de entender o que sepultou o relacionamento. Que redunda no medonho julgamento que busca culpas e afunda tanta gente naquele mergulho dolorido popularmente conhecido como “dor de cotovelo”. Daí a definição sugerida por Pélico. Como em “Sem Medida”, de linda melodia e arranjo delicadíssimo, sobre um homem que tenta esquecer a amada: “Quem me dera ter a coragem de te negar/Mas, não se mede sensatez com você”, sublinha o cantor de voz grave, de canto sem a mesma personalidade dos versos. Na tocante música que dá titulo ao CD, a visão exata do relacionamento depois do vendaval, num longo desfile de adjetivos que definia o casal: “Não éramos tão tolerantes assim, não éramos tão perigosos assim, não éramos tão fiéis assim”, e por aí vai. Em “Tenha Fé meu Bem”, o amor virou saudade dos dias em Mongaguá. “Lembra da gente sentado olhando o mar?”. Cena de cinema com trilha de Henry Mancini.

Escute “Não Corra, não Mate, não Morra”:



Todos esses romances comuns, cotidianos são expostos com letras diretas e encantadas. Essa coisa de abrir o peito e encantar não é pra qualquer um. E Pélico tem esse dom. Talvez também um fruto da simbiose ocorrida entre ele e os mestres da MPB que o impulsionou a ser assim tão intimista. Alimentado também é claro por seu talento nato. O paulistano sabe misturar letras, provocar o ouvinte. Nessa obra sobre o amor, brinca com os contraditórios como os versos da quase brega “Levarei”: “De todas as tristezas que tive na vida/Nenhuma me deu tanta alegria como essa”. Incorporando Lupicínio, solta o dramático e teatral que há nele, caprichando no português, na ótima “Recado”, uma das melhores do disco: “Da liberdade que sucumbe as leis/Nem anjos e santos de pura bondade pra te perdoar”. A palavra é bem tratada ainda na sensível “O Menino”, uma das poucos em que o amor não é verbo recorrente: “O menino fugiu, se perdeu nessas ruas que sabia de cor/ As palavras ardiam, soavam mais duras do que seu pai lhe ensinou”.

Mas não é só do cuidado com as letras e seus verbos que brilha Que Isso fique entre Nós. Existe toda uma bem tramada costura de instrumentos que soa, num primeiro momento, minimalista, mas que vai ganhando peso e sentimento a cada audição do disco. A arte do produtor Jesus Sanchez, integrante da bacana Los Piratas, e os arranjos de sopros e violinos, assinados pelo próprio Pélico e por Bruno Bonaventure, responsável também pelo piano e sintetizadores, ajudam a fazer a diferença. E ainda é preciso fazer justiça com João Erbetta e Regis Damasceno (guitarra), Tony Berchmans(Wurlitzer) e Richard Ribeiro(bateria), músicos mais constantes no trabalho. A inteligência dos arranjos fica evidente, por exemplo, na hora em que os sopros são usados na construção do clima das músicas, como em “Vamo Tentá” e “Sete Minutos de Solidão”, as duas com leve e adorável acento brega, ou ainda na mistura do som típico do western spaghetti com o tango da muito boa “Não Corra, não mate, não morra”, que encerra o álbum com chave de ouro. Pélico e suas confidências amorosas são uma grata surpresa, um disco para nenhum apaixonado, e não só eles, botar defeito.

Cotação: 4

Sinta o amor de Pélico:

http://www.mediafire.com/?o7cdidp7i6c2up7