quinta-feira, 27 de outubro de 2011

De costas para o sistema

Quando me vi de repente tomado pela maré de notícias sobre as revoltas protagonizadas por uma jovem população européia parei, diante da minha antiquada TV de 21 polegadas, num estúpido átimo de aturdimento. Como se tudo o mais em minha volta também se visse suspenso. Talvez porque envolvido pelo silêncio das horas que satelizam aqueles jornais de televisão da madrugada feitos para insones e viciados em informações. Ou talvez por aquela típica leseira de quem começa a perder a batalha contra o sono. Foi assim um dia desses. Manifestações pipocando no velho mundo contra a crise econômica, a falta de emprego, a truculência de políticos arrogantes. Em todas elas havia uma boa parcela de irritados jovens, cheios de vigor e caras e bocas na defesa de suas bandeiras. Não como no Maio de 1968 em Paris, até porque parte daquele romantismo sucumbiu diante de uma certa lógica e frieza de como a maioria passou a encarar o mundo. Mas, eles estavam lá, belos, se posicionando, agrupados em massa, como um corpo vivo. E fiquei feliz, depois do espanto, por aquela demonstração de proatividade com o que os incomodava. O velho continente costuma dar lições mais fortes e impactantes de insatisfação, de como se colocar diante da perda da inocência corrompida pelo capital. Os europeus têm cultura, estofo, para isso. Pensando nisso, voltava a uma recorrente elocubração: viria de lá a revolução musical, aquele inesperado movimento a esquerda para sacudir os alicerces da estagnação musical que parece ter tomado conta da humanidade. Tem quem ache que o WU LYF seja isso. E aqui, após tantos desvãos, chegamos ao foco desta resenha.

Assista ao clip de “Dirt”:



Isso que parece um erro de grafia é uma sigla. Das mais canhestras e propositadamente cabulosa. World Unite Lucifer Youth Foundation, o WU LYF. Uma banda inglesa, da mesma Manchester das icônicas Stone Roses e The Smiths, que anda assombrando vários críticos pelo rompante radical de fazer música e por suas letras ácidas e com forte acento político. “Revolucionária”, arriscou um desses resenhistas puxando um coro, para mim, um tanto precipitado. Não sinto que seja tudo isso. O que o quarteto britânico faz é captar aquele sentimento de inconformismo que preenche os jovens, o mesmo que os fazem sair para a rua para reclamar os temas mais caros a um mundo em crise. Capturam o zeitgeist, aquele senso coletivo que se torna quase concreto e imanta toda uma sociedade. O crítico Alex Ross escreveu em seu livro Escuta Só, do Clássico ao Pop: “Em qualquer momento da história, existem alguns compositores e músicos criativos que parecem deter os segredos da época”. É por aí. O que se ouve em Go Tell Fire to the Mountain(2011), título do primeiro trabalho desse grupo, não é revolução, nem é exatamente novo. É uma música raivosa, incômoda, difícil de ser consumida. Há aqui um paredão sonoro composto de um vocalista gutural, Ellery Roberts, responsável também pelo órgão, instrumento barroco em diálogos estranhos com o baixo de Tom McClung, a guitarra de Evans Kati e a bateria tribal de Joseph Manning, sugerindo um som anárquico, algumas vezes claustrofóbico, mas quase sempre e provocador.

Em meio às vociferações de Roberts, gritos que se tornam uma das marcas registradas de Go Tell Fire to the Mountain, existe ecos do krautrock, do post rock e do post punk ou seja, tudo aquilo que de moderno e pouco traduzível tem o rock em suas mais radicais tentativas de renovação do gênero. Em panos limpos: muita barulheira e o uso de elementos antigos com uma roupagem contemporânea numa tentativa de se criar o novo. Em “Dirt”, que considero a melhor composição do disco, há um batuque introdutório, uma percussão com tintas africanas que reforça uma melodia nervosa, guerrilheira, como as imagens do clip oficial(acima) da banda que traduz muito bem o espírito da canção. Como uma granada explodindo próximo de nossa epiderme e de nossos agoniados tímpanos, essa música convoca o ouvinte para uma batalha, para uma franca resistência aquilo que entorpece a alma. E isso é, claramente, um fazer político. Saída da boca do vocalista do WU LYF, essa convocação tem compreensivelmente um vigor quase panfletário. Soa como o retrato de uma juventude desencantada que usa o rock e o verbo para se comunicar com o mundo. E a escolha por essa “poética”, por um repertório mais politizado é outra das características marcantes desse álbum sem apelo popular e que tem tudo para virar cult.

Esse veio político é centrado, nas letras, numa crítica mais genérica à humanidade, não a temas conjunturais específicos das terras britânicas ou qualquer outro continente do planeta terra. Como o ímpeto capitalista, e a força da grana, resgatando aqui Caetano Veloso, que constrói e destrói coisas belas. “Tem crianças nas ruas, vendo o concreto se transformar em ouro/Você é tão jovem, mas essas cidades o fazem envelhecer”, canta Roberts em "Summas Bliss". No início do disco, a banda já entregava a senha dessa crítica engajada ao sistema econômico que atropela tantos interesses comuns e fragiliza uma já castigada e pouco valorizada espiritualidade. “Quantos dos seus garotos temem a morte?”, questiona a banda em “LYF”. É o discurso hippie reformado, adaptado aos quentes dias de hoje. Os gritos de guerras repetem-se durante toda a barulhenta trajetória desse estranho, mas conseqüente álbum. A ponto mesmo de se tornarem diretos e impactantes. Papo reto. “Coloquem suas armas e cantem conosco essa canção”, sugere a letra da bacana “We Bros”. E para isso, complementa o quarteto na já citada “Dirt”, resumindo de vez essa batalha contra um declarado inimigo, “não importa o que eles dizem, o dollar não é seu amigo”. Enfim, um bando de jovens resolvem deixar de lado canções açucaradas sobre boys and girls apaixonados para botar pra fora essa revolta adquirida e alimentada em tantos anos de desconcerto e de falência de um sistema(olha ele aqui de novo) que esqueceu, em suas contas, de contabilizar o que há de mais humano em nós.

Ouça “Cave Song”:



Mas, claro, são apenas gritos de revolta que fazem um grande disco. Musicalmente, as composições são, numa comparação meio absurda, como aquelas engenhocas de transmissão de mensagens dos filmes da série Missão Impossível: parecem querer se autodestruir em poucos segundos. Soam quase toscas, mas têm poder em sua urgência. Mesmo quando tentam ser mais comportadas, como nas mais lentas “Such a Sad Puppy Dog” e “14 Crowns for me and your Friends”, na qual o órgão cria uma atmosfera glacial, perturbadora, pecam por uma ansiedade desenfreada. Essa música rende-se algumas vezes à anarquia, chegando a um paroxismo que lembra o combo Mano Negra, a exemplo de “Cave Song”. Dito tudo isso, você pode perguntar: “E aí, o disco é bom?”. É mesmo, lembrando de um ótimo jargão publicitário, toda essa Brastemp? Tive uma primeira impressão negativa do dito cujo. Não gosto de bandas que se escondem atrás de siglas maneiristas, de muito barulho e gritaria para impor uma idéia. A melhor idéia musical, sempre acreditei nisso, é ser claro nas intenções mesmo que ela esteja amparada numa contundente parede sonora. WU LYF é como um rascunho de uma arte que tenta se desenhar ideologicamente, que busca identidade própria. É um projeto em andamento, aquilo que os americanos chamam inteligentemente de work in progress. No que todo aquele barulho vai se tornar, só o futuro dirá. Mas, até lá vale ouvir os caras, até porque é sempre bom dar atenção a quem foge da obviedade. Afinal, é assim que caminha a humanidade.

Cotação: 4

Na base da brodagem, vá lá antes que o sistema destrua o link:

http://www.mediafire.com/?b5xxi7d2vn8qrkf

domingo, 16 de outubro de 2011

Armadilhas do amor

O quanto de nitroglicerina pode conter uma paixão? E o quanto de segredos não revelados, ocultos na profundeza das retinas? Muitas das histórias, das pequenas rusgas, de compleições e incompatibilidades que um relacionamento amoroso carrega e que, muitas vezes, descarregam em um buliçoso fim, cabem em uma canção. Pélico, um paulistano de peito aberto, experimentou contar casos de amor, romances, com um desprendimento à flor da pele. O resultado é Que Isso Fique entre Nós(2011), uma espécie de delicado diário de amores perdidos. Essa complexa trama que une duas pessoas é o objeto de dezesseis composições intimistas que deságuam em um álbum em que palavras diretas e sem rodeios são acompanhadas por arranjos que as vestem em trajes mínimos, desvelando por completo o coração do autor. Trespassado, fudido, rendido ao inevitável. Um coração à mostra. É um álbum sobre a dor de cotovelo, disse o cara em uma entrevista. Mais do que isso: é o retrato de um sentimento que, repleto de delícias e armadilhas, ajuda a mover uma humanidade inteira.

Veja vídeo de “Recado”:



Pélico é paulistano de dois discos. O primeiro, “O Último Dia de um Homem sem Juízo”, foi gravado em 2008. Mais rocker, mais gritado, mais irônico, revela quem o criou. Depois, confidencia o mesmo, resolveu escarafunchar as coisas ditas, escritas e cantadas por Lupicínio Rodrigues, Ataulfo Alves, Orlando Silva(terá sido deste os “erres” cúmplices e bem pronunciados pelo artista no álbum em questão?), mestres dos imbroglios do amor. Contaminou-se. E o vírus dos amores mal resolvidos, dos casos afogados em copos de cachaça, revelados com letras firmes por aqueles ilustres antepassados, foi inoculado nele. Resolveu inspirar-se em sua própria trajetória de vida e a de amigos próximos para enfileirar mágoas e lições de sucumbidos relacionamentos em Que isso Fique entre Nós. O título/expressão é a melhor tradução deste segundo trabalho de Pélico. Assim como aquilo pronunciado e encerrado em um caso de amor, transmitido com zelo para um único ouvido, com endereço certo, somente para quem interessar possa. Aquilo que o resto do mundo, por favor, não precisa saber.

Esses diálogos da paixão são destilados em canções que parecer soar lineares em todo o disco, assim como o amor, plural que é, provoca coincidências. Como capítulos de um mesmo caso amoroso alinhavado por uma humana pulsão. Pelo desejo de entender o que sepultou o relacionamento. Que redunda no medonho julgamento que busca culpas e afunda tanta gente naquele mergulho dolorido popularmente conhecido como “dor de cotovelo”. Daí a definição sugerida por Pélico. Como em “Sem Medida”, de linda melodia e arranjo delicadíssimo, sobre um homem que tenta esquecer a amada: “Quem me dera ter a coragem de te negar/Mas, não se mede sensatez com você”, sublinha o cantor de voz grave, de canto sem a mesma personalidade dos versos. Na tocante música que dá titulo ao CD, a visão exata do relacionamento depois do vendaval, num longo desfile de adjetivos que definia o casal: “Não éramos tão tolerantes assim, não éramos tão perigosos assim, não éramos tão fiéis assim”, e por aí vai. Em “Tenha Fé meu Bem”, o amor virou saudade dos dias em Mongaguá. “Lembra da gente sentado olhando o mar?”. Cena de cinema com trilha de Henry Mancini.

Escute “Não Corra, não Mate, não Morra”:



Todos esses romances comuns, cotidianos são expostos com letras diretas e encantadas. Essa coisa de abrir o peito e encantar não é pra qualquer um. E Pélico tem esse dom. Talvez também um fruto da simbiose ocorrida entre ele e os mestres da MPB que o impulsionou a ser assim tão intimista. Alimentado também é claro por seu talento nato. O paulistano sabe misturar letras, provocar o ouvinte. Nessa obra sobre o amor, brinca com os contraditórios como os versos da quase brega “Levarei”: “De todas as tristezas que tive na vida/Nenhuma me deu tanta alegria como essa”. Incorporando Lupicínio, solta o dramático e teatral que há nele, caprichando no português, na ótima “Recado”, uma das melhores do disco: “Da liberdade que sucumbe as leis/Nem anjos e santos de pura bondade pra te perdoar”. A palavra é bem tratada ainda na sensível “O Menino”, uma das poucos em que o amor não é verbo recorrente: “O menino fugiu, se perdeu nessas ruas que sabia de cor/ As palavras ardiam, soavam mais duras do que seu pai lhe ensinou”.

Mas não é só do cuidado com as letras e seus verbos que brilha Que Isso fique entre Nós. Existe toda uma bem tramada costura de instrumentos que soa, num primeiro momento, minimalista, mas que vai ganhando peso e sentimento a cada audição do disco. A arte do produtor Jesus Sanchez, integrante da bacana Los Piratas, e os arranjos de sopros e violinos, assinados pelo próprio Pélico e por Bruno Bonaventure, responsável também pelo piano e sintetizadores, ajudam a fazer a diferença. E ainda é preciso fazer justiça com João Erbetta e Regis Damasceno (guitarra), Tony Berchmans(Wurlitzer) e Richard Ribeiro(bateria), músicos mais constantes no trabalho. A inteligência dos arranjos fica evidente, por exemplo, na hora em que os sopros são usados na construção do clima das músicas, como em “Vamo Tentá” e “Sete Minutos de Solidão”, as duas com leve e adorável acento brega, ou ainda na mistura do som típico do western spaghetti com o tango da muito boa “Não Corra, não mate, não morra”, que encerra o álbum com chave de ouro. Pélico e suas confidências amorosas são uma grata surpresa, um disco para nenhum apaixonado, e não só eles, botar defeito.

Cotação: 4

Sinta o amor de Pélico:

http://www.mediafire.com/?o7cdidp7i6c2up7

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Pra nunca mais esquecer

A voz agoniada, angustiada negava a letra da música acompanhada por um arranjo que começa desolado até cair no refrão quase gutural, primitivo. “Eu estou tão feliz”, cantava aquele rapaz que parecia a beira do desespero uma canção bipolar que soou como um tapa em minha cara naquele início de década. Era 1991. Ainda tinha uma vitrola, um 3 em 1 (toca fita, rádio e toca disco num só e volumoso aparelho, alguém lembra?) guerreiro, que já tinha animado muitas tertúlias, aqueles festinhas de amigos marcadas de última hora e que sempre davam o que falar no dia seguinte. Naquele ano, um novo velho som mexeu com milhões de pessoas no mundo inteiro. O rock sem rebeldia, escravo da ditadura das emissoras, se rendia então ao pop. Aí, aquele cara de voz rasgada e doída tomou as rádios mudando essa história, abrindo as portas para uma tribo formada por bandas garageiras, despojadas, com uma pegada suja e pesada. Misto de punk, com hardcore, recheado de microfonia, guitarras no talo e letras diretas. Era o grunge de Kurt Cobain, do Nirvana, que lançava um disco que se tornou um capítulo rico e marcante da história do rock and roll. E isso no mesmo prolífico ano em que Pearl Jam e Soundgarden colocaria no mercado duas outras belas e capitais obras daquele movimento, respectivamente Ten(1991) e Badmotorfinger(1991). Mas, foi com Nevermind(1991), incensado álbum que completa 20 anos, que o Nirvana chegaria ao nirvana e o rock retomaria sua rebeldia.

Ouça "Lithium":



Eu confesso que não estava muito preparado para ouvir Nevermind ou a zanga de Cobain naquela época. Nunca fui um fã declarado do rock mais raivoso, ainda que umas deliciosas velharias gravadas nos anos 70 e que embalaram minha juventude, como Deep Purple, Led Zeppelin e Rush, continuassem merecendo toda minha atenção e carinho. Estava num momento de culto ao rock alternativo, feito por bandas que a maioria dos meus amigos e, claro, a mídia, insistiam em deixar injustamente no limbo. Era um som torto, trabalhado na contramão dos hits vigentes. Encontrava-me, no período, maravilhado com as possibilidades que o gênero musical propunha com grupos como Pixies(aliás, uma das maiores paixões do Nirvana), Talking Heads, Screaming Trees, Pogues, Guided by Voices, Sebadoh e outras formações honestas que também fizeram história e que de alguma forma ajudaram o grunge a ser o que foi no início dos 90 do século passado. A provocação, a sinceridade, o despojamento e as guitarras distorcidas daqueles antecessores estavam presentes numa fusão bruta no segundo disco do Nirvana, um fenômeno, que contava ainda, na linha de frente, com um cara de alma mergulhada num turbilhão de angústias, medo e contradições.

Assista Cássia Eller cantando “Smells like Teen Spirit”:



Cobain era a força motriz e translúcida do Nirvana. O cara bonito, elétrico, de profundos e inquietos olhos azuis, vestia-se de camisa quadriculada, aberta, com uma camiseta por baixo e um jeans sujinho, rasgado, estilo que se tornou o uniforme do grunge. Essa expressão, aliás, não se sabe se é um sinônimo para sujo ou uma corruptela da palavra garagem. Uma coisa e a outra, contudo, definiam bem o espírito dos meninos da banda. Imagino Cobain sempre com a mesma camisa quadriculada, acordando tarde e indo pra rua beber com os amigos sem o banho tomado. Penso nele ao lado do baixista Krist Novoselic e do baterista Dave Grohl incendiano uma garagem com seus acordes urgentes, plugados em uma música que eles regurgitavam e depois sorviam e regurgitavam novamente pelo mero prazer de estar no meio de toda aquela eletricidade sonora. Ou seja, os via como um bando de garotos cheios de energia e sem muito interesse de se tornar uma referência do rock. Um pouco com a filosofia punk de mandar tudo pro inferno, incluindo a mídia. Um muito com a vontade de dialogar com pessoas da mesma idade e fazer os ouvintes subirem pelas paredes, no ritmo da guitarra e dos berros.

Cobain é assim como um Renato Russo mal comportado. Com a diferença que sua poesia não tinha a mesma virilidade da escrita pelo colega brasileiro. Sabia falar com seus párias, utilizando-se de um verbo curto, pontuado, como se fosse palavras de ordem. E a galera, que não queria pensar muito e só bater cabeça, respondia: “Sim, isso acontece com a gente”. Acredito que a explosão de Nevermind, que entra fácil fácil na lista dos melhores dos anos 90 e também nas grandes obras do rock do século passado, tem a ver um pouco com isso. Em 1991 eu não era mais jovem, pelo menos na idade. Mas, fiquei encantado pelo disco e por um motivo que, acredito, ajudou a fazer daquele disco uma incontestável obra-prima: a entrega de Cobain. O que conta é a sinceridade do que o cara canta. Aquela angústia desbragada que senti em “Lithium”, a força dramática do hino “Smells Like Teen Spirit”, a cadência e o peso bem medido de “In Bloom”, com Cobain derramando seus versos bêbados, que fazem também a força de uma das minhas canções preferidas, “Come as You Are”, com seu impagável riff de cordas. Lembro de um amigo daqueles idos, mais novo que eu, que nem inglês falava, cantando desafinado, a plenos pulmões e com sentidas almas e concentração, “Drain You”, ou de outro colega imitando com mãos nervosas e baquetas invisíveis a bateria matadora de Grohl em “Territorial Pissings”. Lembro também de uma enlouquecida Cássia Eller no Rock in Rio, em 2001, cantando com garra e mostrando os peitos debaixo da camiseta surrada “Smells like...”, depois de dizer para a multidão que seu filho pequeno, de poucos anos de idade, adorava a música. Tudo isso me fazia pensar que Nevermind tinha um poder congênito, a magia daquilo que podemos chamar de clássico.

Nevermind é assim, de cabo a rabo, um disco repleto de hits, belezas e magias insuspeitas. Um cara de confusa psiquê que grita como se o mundo fosse acabar no dia seguinte, que chora como que quisesse compartilhar sua dor com o resto da humanidade, com coragem suficiente para entregar tudo isso de bandeja para o ouvinte e que, depois de se tornar ídolo, se matou. Composições trabalhadas com extrema inteligência pelo produtor Butch Vig, o quarto homem da banda e peça importante nessa história toda, que domou a virulência incontida de Bleach(1989), primeiro e anterior fruto do Nirvana, equilibrando em doses democráticas raiva e suavidade. Canções com melodias fáceis, riffs grudentos, tocadas como se numa garagem. Vinte anos depois, o álbum mais tocante do Nirvana nasceu para ser disco de cabeceira. É atemporal em sua franqueza. Um trabalho que ainda vai fazer merecidamente a cabeça de muita gente que tem o rock no coração. Esse eco ainda será ouvido por longas décadas. Há quem ache que depois de Nevermind nenhum grupo lançou uma obra tão significante. Não sou tão radical, mas essa obra-prima tem argumentos suficientes para que se pense assim. Agora, com licença, vou ali colocar meus fones de ouvido e me deixar levar mais uma vez por esse discaço.

Cotação: 5

Comemore com o Nirvana:

http://www.mediafire.com/?ncntmznd4bn

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Verbo soberano

Desse eu de cara com Chico caminhando no calçadão do Leblon, e ele, por um motivo qualquer, me chamasse a atenção, devolveria ao seu azul e manso olhar o meu melhor sorriso, cheio de verbos nos entredentes (palavra que não há), costurando em silêncio, na respiração breve e suspensa, as entrelinhas do não dito. E seguiria feliz com o encontro assim mesmo, sem dizer nada, com medo talvez de dizer a palavra errada, ele que é tão cheio das mais certas delas. Penso sempre em Chico vagando na beira mar carioca e na minha memória, entre um e outro susto diante da poesia construída por ele, como imensos e sólidos castelos que visito de quando em vez no som provocado pela nostálgica agulha de diamante riscando a bolacha preta em seus volteios mágicos. E quando me deparo com o ídolo num novo disco, depois de toda aquela intimidade que criou em meu coração, fico com medo de que ele tenha errado a mão das palavras. Fico amuado sem querer ouvi-lo, ao mesmo tempo em que a vontade, maior do que a gente, leva-me em direção ao aparelhinho digital para dessa forma revisitá-lo e quem sabe conversar com ele, como antigamente, deslizando no mar de palavras e poesias.

Veja vídeo de “Sinhá” com Chico e João Bosco:



A gente que viveu uma vida mais demorada e tem algum tempo e histórias para contá-la fica assim meio perdido diante de quem é autor de parte da trilha sonora que embalou tantas horas vividas. E aí, estamos num outro momento, mais maduros, provavelmente menos românticos, com os antigos sentimentos dilapidados pela rudeza da humanidade, pelas torres gêmeas implodidas, pelos amores naufragados, pelos tsunamis devastadores, mas, mesmo com toda Brahma e toda lama, ainda vivos e esperançosos. Já passado o pesar da ditadura, os suspiros das alcovas, o drama de Genis, a intempestividade de Anas e Bárbaras, consumado o tempo da gente, Chico Buarque retorna com Chico(2011). Não sendo os mesmo admiradores e apaixonados de antes, não tendo a mesma condescendência, teríamos a mesma reação diante da nova obra? Se já perdemos a noção da hora, será que aqueles belos seios ainda estão em nossas mãos? Difícil responder. Difícil comentar o trabalho de quem parece ter se doado tanto a um universo musical sem comparações e que está tatuado em nossa alma, como aqueles barrocos dragões coloridos que envolvem os braços e seguem por toda a gravada epiderme como um manto a nos proteger. Chico é grande. Seu repertório tão grande quanto ele. Por isso, o cara não me surpreende mais e também não exijo mais, justiça seja feita, do que ele me deu.

Tudo parece, assim, déjavù nesse novo Chico. Tudo parece Chico, o bom e velho Chico. Tudo parece datado, deitado na cama das velhas notas musicais cansadas, mas bem acomodadas, bem casadas, como num bom e velho Chico, senhor soberano de rimas e poéticas completamente assentadas, como equações ricamente elaboradas e cheias de si. E leia isso, por favor, como um elogio. O que se vê em seu mais recente álbum não é um artista renovado, mais um cantor e compositor que se renomeia, que brinca com um novo vocabulário tirado de páginas da internet e do cotidiano corriqueiro dos jovens, e também que se vê no espelho, apaixonado, fazendo declarações de amor ao cotidiano. Em “Tipo Baião”, faz troça com a linguagem dos mais moços, repetindo a expressão “tipo” para cantar um romance “tipo festa sem fim” prometido por uma jovem cheia de vida e amor pra dar, numa canção vestida como um baião moderno. Na belíssima valsa “Nina”. A moça da vez namora o homem da poesia pela internet, explicando que ele pode ver, em um mapa na tela, “a cidade, o bairro, a chaminé da casa dela”. Toque novo numa poesia que nunca perde o lastro de desmedido encantamento como em seu fecho espetacular: “Nina anseia por me conhecer em breve, me levar pra noite de Moscou. Sempre que essa valsa toca, fecho os olhos, bebo alguma vodka e vou”.

Escute a valsa “Nina”:



O Chico que não mede as palavras passeia pelas ruas do Rio, como eu sempre o vejo. E eu o vejo assim passeando e observando o mundo e as pessoas para fazer registros em seu “Querido Diário”. Nessa música, que inicia o disco, Chico Buarque, como fez em suas últimas obras, destila sua apurada poesia num exercício musical e estético que prescinde até de refrão. A música, cuja melodia parece que já ouvi em algum outro momento de Chico, e isso nem importa muito, traz frases enigmáticas como a do cão recolhido na rua e que de “hora em hora me arranca um pedaço” ou impactantes como na passagem em que ele, falando em religião, pensa em “amar uma mulher sem orifício”. Esse artista que faz as palavras crescerem faz crescer também a memória, exibindo filmes passados entranhados nas novas composições. O Chico jazzístico da lúdica “Essa Pequena” já mostrava os mesmos dentes em “A História de Lily Braun”, música de O Grande Circo Místico(1983). O sambinha “Barafunda”, por sua vez, reprisa em um certo momento o amor de Chico pela escola de samba Mangueira, numa levada que lembra, sem tanta inspiração, a verde e rosa “Chão de Esmeralda”, do disco As Cidades(1988).

Esse Chico, com certeza, não vai ser mais um grande disco de Chico de minha vida, ainda que num ou noutro momento, como nas vigorosas “Se eu Soubesse”, em dueto com a namorada Thais Gulin(ainda é ou estou desatualizado?), e “Sinhá”, bela parceria com João Bosco, incite minha paixão. Não vai embalar memórias, como aquelas de outros tempos, que ainda se arrastam solenes diante de mim sempre que meu coração pede arrego. Mas, é um Chico autêntico em toda sua carga poética, com o DNA, a identidade de quem faz música como quem risca mapas de orientação. Ele sabe dos caminhos e, mesmo que não tão iluminados, vale sempre enveredar por eles. Todos nós devemos esse passeio por suas sendas. Sempre vai existir algo a aprender.

Cotação: 3

Não fique vendo a banda passar, linke-se:

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ou

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P.S.: Texto dedicado ao meu sobrinho Marcelo, que sempre gostou de música boa

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Mergulho no rock direto

Aquela incerta agressividade e o cheiro permanente de cachaça no ar, provocando conversas ao pé do ouvido, o constrangimento e seu efeito silenciador corroendo a amizade de tantos anos, como aquele cilindro na ponta do cano da arma, aquele tiro contra o próprio peito. Toda a violência arde, mas antes que tarde é bom que se diga nesse caso, para que não se faça julgamento precipitado: nem toda a violência é planejada. O tiro contra o próprio peito acionado pelo involuntário, palavra bala saída da boca ácida de Craig Nicholls tinha a ver com Asperger. A síndrome. A Síndrome de Asperger que quase pregou o cara na cruz. Suas brigas e explosões, os tabefes no assustado fotógrafo, imagem que caiu nas graças da imprensa, os vitupérios e a dificuldade de se comunicar, a obsessão por um assunto determinado, mas também pela música, o encanto desmedido pela música, tudo tinha a ver com Asperger e com Craig Nicholls. O vocalista do The Vines era homem de inesperados extremos, do radical vigor do álbum Highly Evolved(2002), que deixou meio mundo de calças arriadas, ao rock aberto, que deixou meio mundo decepcionado, no atual Future Primitive(2011). Tudo isso é o cara. E tudo isso vale o seu tempo.

Veja o clipe oficial de “Gimme Love”:



No tempo em que Highly Evolved foi lançado, Strokes e Hives eram duas das bandas que polarizavam a atenção de milhares de jovens nos quatro cantos da Terra. Momento rico do rock, quando guitarras distorcidas e no talo pegaram a molecada de assalto. O disco dos australianos comandados por Nicholls era cru, garageiro, endiabrado como aquele gênero musical deve ser. De 2002 para cá, The Vines foi perdendo o vigor, tropeçando em trabalhos menos inspirados e de insuspeitada leveza, como o bacana Winning Days (2004), e o apascentado e não tão bom assim Vision Valley(2006). E trombando também na maldita Síndrome de Asperger, que, mesmo sem impedir o vocalista da banda de encarar o mundo, o deixava algumas vezes desarmado diante da moral vigente. Até porque o mundo é realmente cruel com quem desenvolve comportamentos inconstantes. Com esse quinto trabalho, o anterior é o risível Melodia(2008), os australianos dão um passo a frente e revelam uma maturidade e serenidade que nenhuma síndrome pode abafar.

Future Primitive foi achicalhado por boa parte da crítica institucionalizada. É, o mundo continua cruel com quem desenvolve comportamentos inconstantes. Nicholls(o segundo da direita pra esquerda), muito mais calminho que antigamente, pelo menos até a próxima explosão, deixa claro, contudo, que esses jornalistas e blogueiros patinam em um velho e injusto ranço. The Vines voltou diferente, menos elétrico e vigoroso, é verdade, mas fazendo um rock and roll tão limpo e direto que bem merecia um olhar mais cuidadoso e menos patético desses críticos de plantão. Sem se arvorar em fazer o inédito, o grupo, com a voz de Nicholls mais afinada que nunca, busca nos anos 60 a inspiração para um álbum com boas melodias e uma energia que se renova a cada audição. Não buscam de forma alguma impactar ou engendrar um novo Highly Evolved. E é no explícito prazer dos caras de exercitar o rock puro e básico, de fazer o simples que se revelam as delícias do mais recente álbum dos australianos.

Ouça a pedreira “Weird Animals”:



Essa simplicidade está escrita nas entrelinhas da grande maioria das 13 músicas que compõem um álbum ligeiro, curto, espertíssimo. A eletrizante “Gimme Love” abre o disco botando os sentidos para chacoalhar. Bublegum com cheiro de naftalina, traz os acordes dos anos 60, da efusividade que fizeram a fama de bandas como Beach Boys, The Monkeys e The Kinks. Essa mesma musicalidade, com ecos concretos do típico psicodelismo da época, se faz presente em “Candy Flippin’ Girl, com a batida marcada da bateria, o sintetizador manso e a guitarra ditando o ritmo. Essa moldura sessentista continua impressa na convincente "Cry", com seu pandeirinho e barulhinhos eletrônicos hippie-chiques, e no folk datado da linda balada “Goodbye”. E há quem veja ainda os Beatles dos anos 60, uma das influências mais marcantes do The Vines, em “All that you Do”. Enxergo melhor essa bendita herança, ainda que só pincelada, em “A.S.4”, lenta e graciosa melodia que bem poderia fazer parte do repertório do Oasis, quando este extinto grupo tentava imitar com medida competência os ídolos Paul e Lennon.

Afastando-se um pouco dos 60, os caras do The Vines - além do emblemático Nicholls(voz, guitarra), Ryan Griffiths(guitarra), Hamish Rosser (bateria) e Brad Heald(baixo) - encaram algumas viagens por sonoridades mais próximas da geração deles. E isso em algumas das melhores músicas desse injustiçado CD. “Weird Animals”, com sua pegada punk, é suja e feroz. A guitarra distorcida e melodia ganchuda levam o ouvinte à lona. Música tão legal quanto “STW”, que tem um quê de Nirvana, outra das explícitas influências do grupo, e quem sabe um elo com o futuro, uma linha a ser seguida no próximo trabalho do Vines. Os acertos ajudam a relevar a única grande bobagem do disco, a instrumental e paranóica “Outro”, um deslize aliás até compreensível e perdoável para quem vive a sombra da Sindrome de Asperger, né mesmo? Deixando a ironia pra lá, e desafinando o coro dos descontentes, recomendo, sem restrições, Future Primitive, esse regular e despretensioso Vines em sua honesta busca do mero prazer de cantar e nos fazer feliz.

Cotação: 4

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segunda-feira, 5 de setembro de 2011

Álbum iluminado

Gui Amabis é um operário dos bastidores. O músico talentoso e requisitado tem um trabalho que muitos já ouviram por tabela, mas raramente buscaram saber quem é. Pudera. Esse paulista é autor de trilhas sonoras para o cinema, arte normalmente subestimada pela maioria. É dele, entre outros, as malhas instrumentais que embalam as ações do norte-americano O Senhor das Armas, filme mediano de Andrew Niccol, e a apimentada carreira de Bruna Surfistinha, dirigido por Marcus Baldini, em versão de cores fortes e grande apelo popular. Amabis é um bom construtor de climas, aqueles que entram capilarmente pelos nossos ouvidos e contribuem para o sentimento completo das imagens. Esse exercício transpira por todos os poros do primeiro trabalho assinado pelo artista, o impactante Memórias Luso/Africanas(2011), um álbum que busca unidade no passado do autor e encontra potentes ecos no presente com sua estrutura moderna e marcante identidade.

A bela “Doce Demora”, com a não menos bela Céu no vocal:




Memórias Luso/Africanas
inspirou-se, segundo o próprio Gui Amabis, nas histórias de seus antepassados contadas por uma querida e inestimável avó, que o deixou há poucos anos. Retrospecto da trajetória de negros e portugueses, testemunhal intenso da miscigenação que gerou a vívida e complexa raça brasileira. Essa genealogia da qual Amabis faz parte transparece nas atmosferas e raízes de um álbum difícil de qualificar musicalmente. A alma negra, a febre imantada no medo de homens e mulheres que vieram da África em navios sinistros para moldar nosso jeito de ser, a relação com os lusos brutos e desgarrados da Europa, as tensões sociais do Brasil colonial transpiram em parte das composições do CD. Esse longo filme que conhecemos tão pouco é exibido em cenas musicais de arranjos exuberantes que beliscam múltiplas influências culturais, do batuque ao jazz, passando pela música árabe. O resultado é uma obra maiúscula, rica e de encantadora entrega.

O cuidado com a programação dos arranjos salta logo na primeira música do CD, a soturna “Dois Inimigos”, a única em que Amabis solta a voz pequena, com um teclado pesado, marcial e toques climáticos de sinos para contar uma luta que remonta a um Brasil ancestral, a uma “batalha que continua franca e aberta e trava na goela”. Trilha perfeita para cenas de navios negreiros. A memória de uma África colonizada que herdou seus filhos ao nosso país volta pulsante e imagética em “Imigrantes” em seu arranjo de sopros atmosféricos numa história de desilusão e dor e despedida. “Vou me embora daqui, por que aqui já não tem mais flores não/É irmão contra irmão, é o espinho da intenção”, canta com alma Tiganá, arrendondado pela participação da bela Céu, esposa de Amabis. E esse cinema de sangue negro está mais evidente ainda em “Para Mulatu”, com forte percussão, batuque explícito que serve de cama para um “causo” dos tempos de colônia brasileira, em que “mama fugiu do sinhô e a correnteza levou mama pros braços de avô”. Essa linda composição conta com um impressionante e equilibrado vocal do grande Criolo, que debutou recentemente em CD solo com o ótimo Nó na Orelha(2011).

Ouça a potente “O Deus que devasta mas também Cura”, com Lucas Santtana:



As memórias e heranças lusas, presentes nas letras das canções citadas acima comparecem sonoramente em menor grau no disco. Essa presença é mais sentida em “Orquídea Ruiva”, com letra e voz de Criolo. “É praticamente um rock árabe. A música portuguesa tem essa origem por conta da invasão moura que durou aproximadamente 800 anos”, explicou Amabis ao falar da música. As cordas sinuosas e flautas crescem aos poucos para desembocar num refrão forte e que lembra a pulsação do visceral Nação Zumbi. A música ajuda a dar essa liga, uma unidade que torna o CD quase temático em torno desse rastro luso-africano. Disse “quase”, porque Amabis sai dessa linha em algumas outras ótimas composições. Caso da linda “Doce Demora”, uma homenagem a filha do músico, canção que mergulha em plástica delicadeza, com as participações de Céu, mais uma vez no vocal, ao lado dos pernambucanos Siba e Dengue, baixista do Nação. Sem dúvida, uma das mais belas do disco.

Céu, na foto ao lado com o maridão, volta uma terceira vez para brilhar com sua voz roufenha na fabulosa e jazzística “Swell”, talvez a mais contemporânea e moderna do álbum. Tem a cara da cantora e de uma leva de artistas que soube muito bem explorar e misturar inteligentemente as sonoridades mais refinadas do planeta para construir um relicário de canções de difícil audição, mas de claro bom gosto. Parte dessa trupe está no disco de Amabis. Juntos, sob a coordenação desse compositor, engendraram o projeto do grupo Sonantes, com um álbum homônimo lançado lá fora e que ganha versão nacional este ano e que tive o prazer de resenhar aqui. O trabalho, de 2008, comungava a grande fase do irmão Rico Amabis, Céu, Pupilo e Dengue. Além desses e os outros já listados anteriormente, Memórias Luso/Africanas agregou outras feras que seguem essa trilha moderna e mais ousada, como a revelação Tulipa Ruiz, que brilha na leve “Ao Mar”, Regis Damasceno (do ótimo Cidadão Instigado) e Lucas Santtana, criador dos cortantes versos da poderosa “O Deus que Devasta mas também Cura”, a mais linda e emblemática música desse CD que já nasce clássico. Para ouvir e reouvir e destrichar aos poucos, como merece a obra, as tessituras e belezas propostas por um Amabis pra lá de inspirado. Vá com força.

P.S.: Fotos dos artistas que ilustram esta resenha foram feitas por Ariel Martini (www.flickr.com/photos/arielmartini/ ou www.arielmartini.com) em show de 9 de agosto de 2011 no Sesc Pompéia(SP).

Cotação: 5

Memórias ao seu alcance:

http://www.4shared.com/file/f-cbpk8A/DNA_Gui_Amabis__2011_-_Memrias.html

ou:

http://www.mediafire.com/?4nyrgbd1gbhbk7g

quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Allen à antiga

O texto em preto e branco xerocado, tímido, grudado ao lado da porta do cinema desmerecia aquela oportunidade rara. Era o anúncio do último do Woody Allen. Uma única sessão noturna, citada num papelzinho escondido no meio da vibração colorida dos cartazes vendendo Capitão América, Lanterna Verde, Dylan Dog, heróis dos quadrinhos que ganharam versões estufadas de efeitos especiais nas telonas. E um de meus heróis da adolescência, o workaholic Allen, estava ali perdendo feio a luta no ringue do marketing. Quase passou despercebida aquela xerox com a sinopse quadrada e vazia de informações de Meia Noite em Paris(2011). Não iria me perdoar se a passagem do icônico diretor no único cinema da cidade passasse em branco, afinal exibição de filme de arte em Boa Vista é artigo de luxo, especialmente no Super K, único complexo cinematográfico de Roraima, com 8 salas de cinemas, todas tomadas normalmente pelas produções populares, regadas a muita pipoca, refrigerante e gritaria da molecada, visão do inferno para quem gosta de se concentrar no clima e luzes mágicas da sétima arte.

Trailler de Meia Noite em Paris:



Tive sorte assim de me deparar com o longa-metragem de Woody Allen. E, o que é melhor, numa privilegiada e silenciosa sessão exclusiva para esta pessoinha que escreve agora e um colega. Dois na fita. Senti-me como a solitária Cecília, personagem de A Rosa Púrpura do Cairo(1985), um dos clássicos daquele mesmo diretor, em meio às suas ritualísticas incursões em salas de exibições quase sempre vazias. Cinema pra mim é religião, lugar sagrado de interação radical com a arte, de preferência refinada, ou pelo menos sincera, de diretores, atores, fotógrafos, cenógrafos, enfim todos esses trabalhadores que suam a camisa para fazer você se sentir especial naquela poltrona dominada pela tela. Como Cecília. Ou seja, tive espaço e concentração para mergulhar em mais uma aventura elegante e mágica de Allen, que com Meia Noite em Paris, retornou ao humor inteligente e cheio de referências que marcou uma das melhores e mais palatáveis fases de sua longa e pródiga carreira.

O filme em questão se contrapõe a algumas obras marcadas pelo intelectualismo e marra psicológica, talvez uma tentativa ainda de Allen de se aproximar do universo do sueco Ingmar Begman, um dos seus maiores ídolos e influência confessa. Com Meia Noite em Paris, o diretor parece se distanciar cada vez mais de filmes severos e com conteúdo denso, bons para discussões de cineclubistas (esses seres ainda existem?), amantes empedernidos do cinema indiano e alunos de faculdade, como, em menor grau, Ponto Final – Match Point(2005) e, em maior grau, O Sonho de Cassandra(2007). É a volta a leveza, não destituída de fisiologia intelectual, presentes em antigas e charmosas produções do diretor, a exemplo da obra-prima Manhattan(1979) e no já citado A Rosa Púrpura do Cairo. O que há em comum entre essas duas e a fita atual é que Allen valoriza, com mesma intensidade, os personagens principais do filme assim como o cenário onde ele se desenrola. Paris, a cidade luz, é filmada com toda exuberância e beleza, assim como o diretor fez com boa parte dos longas rodados em sua amada Nova York.

Paris é uma personagem que dialoga febrilmente com os atores do filme. Aquele que foi e permanece como um dos centros culturais mais efervescentes do planeta é um sedutor pano de fundo e leit motiv da inteligente trama, uma deliciosa e fantástica comédia. No roteiro, Allen se aproxima de filmes como A Rosa Púrpura e Simplesmente Alice(1990), nos quais os condutores da história misturam magicamente o real à fantasia. Nela, Gil (Owen Wilson, de Marley e Eu e Uma Noite no Museu) é um roteirista de Hollywood de passagem em Paris com sua noiva Inez(Rachel Adams, de Te Amarei para Sempre e Sherlock Holmes, numa interpretação burocrática) prestes a casar. Alimenta ali dois sonhos, um possível, o de escrever um romance sério, em contraponto aos seus roteiros risíveis, e outro utópico, o de reviver pessoalmente um dos auges da cena cultural parisiense, os anos 20 do século XX. Por um desses gatilhos sem explicação, e nem precisamos dela, ele, perdido na cidade à meia noite, pega uma carona num velho Peugeot e vai parar numa festa de arromba na década na qual sempre quis viver.

As viagens de Gil ao século passado são os pontos altos do filme. Allen aproveita para resgatar alguns de seus maiores ídolos. E aqui o telespectador tem que ficar bem atento e esperto para não perder todas as referências históricas e, especialmente, as sutis piadas que gravitam em torno dos personagens ilustres. O escritor entra em contato com seus maiores mestres, ninguém menos que os romancistas norte-americanos Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, representantes da literatura moderna norte-americana, e dos poetas T.S Eliot e Gertrud Stein, esta responsável na trama por avaliar criticamente o livro com o qual Gil pretende debutar no mercado. E a plêiade não para por aqui, o roteirista dá de cara espantado com pintores do naipe de Pablo Picasso, de quem quase rouba a amante Adriana(Marion Cottilard, de Piaf e Contágio, em atuação digna de nota, talvez a melhor do filme), Manet, Degas, Toulosse-Lautrec, Gauguin. É impagável o encontro de Gil com Salvador Dali e os cineastas Luis Buñuel e Man Ray, numa conversa, claro, surreal e divertida. Dali, egocêntrico, só fala, por exemplo, em rinocerontes, animal que fez parte de seu cardápio pictórico. Belíssima homenagem de Woody Allen a esses monstros da arte.

Nos encontros e diálogos do escritor com seus ídolos não há condescendência, obviedades ou discrepâncias culturais entre passado e presente, entre amadores e profissionais. Inteligentes e ferinos, como nos melhores textos de Allen, o tête-à-tête de Gil com aqueles geniais artista é nivelado por cima, bem humorado e surpreendente. A visão da louca Zelda Fitzgerald, esposa de Scott, de um compulsivo Picasso e de um estranhíssimo e lacônico Man Ray, só como exemplo, contribui para enriquecer o imaginário coletivo em torno desses inquietos mestres. O diretor faz assim um divertido inventário daqueles que admira usando como alterego um jovem escritor, vivido com correção por Owen Wilson, que repete trejeitos e a personalidade afobada e neurótica de antigos personagens vividos pelo próprio diretor. Gil é auto-referencial, o porta-voz de Allen fazendo muito bem, e com inspiração, aquilo que mais gosta: cinema inteligente para agradar antigos fãs e, de quebra, conquistar novas gerações.

Meia Noite em Paris pode não ser o melhor filme desse diretor veterano e prolixo, mas é com certeza um longa-metragem para se ver e rever com prazer. Uma pequena grande obra, concisa e perene. Um Allen à moda antiga.

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

Marquinho chiclete

Meu amigo Marquinho faz arte. Da melhor qualidade e com uma técnica fantástica, segundo ele muito usada em Nova York e Europa, de nome bonito e chamoso, acho que francês: giclê. Lembra chiclete e o fato é que a danada gruda mesmo. "Estou criando essas artes em grande escala e imprimo em Canvas (tela) num processo chamado Fine Art", disse ele ainda num textinho carinhoso de facebook que me abriu o dia e os olhos. Coisa de quem entende. Tudo muito chique e impactante, com muitas referências cotidianas e culturais. E Marquinho generosamente as tem. Cabra bom de direção de vídeo, computação gráfica e pincel. Em minha amadora análise, vejo na sua fina arte reflexos da pop art de Andy Wahrol e Roy Lichtenstein, Mas, prefiro não analisar muito. Melhor é cair de cabeça na beleza e vibração de sua obra moderna e urbana.

Meu amigo Marquinho também tem blog. Gosto do blog dele, objetivo e direto. Nele, de cara limpa, a arte diz tudo, fala alto e faz refletir. Lá está o "homem sentado", de barbicha a la bode orelana, fitando o passarinho preso na gaiola, na mira do garoto armado, na mira da televisão e da mosca flutuante. Tá também a moça bonita e serena ao som de uma música qualquer, à beira de uma velha máquina fotográfica, prontinha pra voar. Marquinhos é danado mesmo. E não vou descrever o que mais o blog tem pra que você já curioso vá lá e veja tudo ao vivo, em carne e cores. E esse meu amigo avisa que faz trabalhos encomendados com uma foto sua em boa definição. Fez isso com o ótimo Seu Jorge. O resultado é de babar. Olhe aí embaixo. Bom chega de papo e acesse agora o blog do cara. Recomendadíssimo.Vá lá: http://marcosfariamiguel.blogspot.com/p/foto.html.

Cotação: 5

Seu Jorge nas ondas de seu Marquinho:









Marquinho posando de ator em um VT de 2006. Ele é o adorável bêbado:

terça-feira, 23 de agosto de 2011

Reciclagem de luxo

Mal se passou um ano depois do lançamento de um dos melhores discos brasileiros do ano passado e olha eles de volta. Tudo bem que retornam num projeto sem ares de novidade e lambendo a poderosa cria que agradou a crítica e arrebanhou uma batelada de fãs. Mas, é sempre bom ouvir novas versões de composições inventivas num formato lúdico e completamente despretensioso. Estou falando da banda gaúcha Apanhador Só, que, vergonhosamente, não ganhou espaço merecido entre as resenhas que escrevi na época, mas que pelo menos entrou na lista dos discos nacionais realmente tops de 2010. Aproveito agora para me redimir comentando o divertido Acústico Sucateiro(2011), álbum que traz a reconstrução de nove músicas do debut do grupo e mais uma inédita. O quarteto de Porto Alegre segue a linha criativa dos mineiros do Pato Fu no muito bom Música de Brinquedo(2010) e se utiliza de instrumentos feitos pra crianças e muita, mais muita bugiganga e inimagináveis objetos caseiros para gravar, em ritmo de confraternização, um CD admirável.

Veja o clipe de “Prédio”:



Acústico Sucateiro impressiona primeiramente porque é um trabalho apurado de produção em cima de uma proposta com cara e levada de brincadeira. E das mais divertidas. É possível sentir nas entrelinhas e vinhetas e conversas entre uma música e outra a despretensão do grupo em recriar as músicas do seu primeiro disco. O refinamento veio palpável com a pós-produção, que nem de longe, mascara a leveza desse belo produto. E surpreende também porque, mesmo sem o peso dos instrumentos e de arranjos mais elaborados, as músicas mantêm o carisma que conquistou tanta gente em 2010. Ou seja, não há aqui douração de pílula, gatilhos ou efeitos especiais tão comuns hoje em dia na gravação de discos, mas sim uma oferta sincera do que poderíamos chamar do Produto Interno Bruto dessa moçada do Rio Grande do Sul. E é por aí, acho: o impacto do trabalho vem das boas harmonias, belas melodias e alguns achados poéticos que fazem da curta obra do Apanhador Só uma das boas revelações musicais dos últimos anos. E tudo isso, diga-se de passagem, injetado de simplicidade e muita objetividade, talvez o pulo do gato de Alexandre Kumpinski(voz e guitarra), Felipe Zancanaro(guitarra), Fernão Agra(baixo) e Martin Estevez(bateria).

A reciclagem desse Acústico Sucateiro se sustenta assim na força das canções, mas também na curiosidade provocada pela “instrumentação” utilizada nessa vigorosa brincadeira. O quarteto gaúcho muniu-se de gaiolas, facas, conduítes, latas, panelas, aro de bicicleta, piano e violão de brinquedo, aqueles baratinhos mesmo, entre outras esquisitices, para impor uma sonoridade completamente desapegada na reinvenção das músicas gravadas anteriormente. A banda não buscou a fidelidade com o registro original nessa verdadeira festa entre amigos. E as comparações entre uma e outra versão são, obviamente, inevitáveis. Se no primeiro trabalho, que leva o nome da banda, os arranjos apóiam-se num instrumental cheio, em uma trama sonora bem engendrada na qual a guitarra se sobrepõe e empresta um ar mais rocker ao trabalho, no segundo, o que vale é a experimentação e o predomínio da poesia. Explico: o som minimalista e econômico das sucatas e brinquedos utilizados trouxeram à tona, realçaram a força e a beleza das melodias e letras criadas pela banda.

Ouça a linda "Nescafé":



Ainda prefiro o álbum lançado o ano passado, porque, mais inteiro, alternava zonas de tensão a momentos de leveza trabalhados com invejável equilíbrio nos arranjos inteligentes. Mas, é muito legal ver o talento de o Apanhador Só rebatizado em versões cujo grande mérito é a tentativa de serem diferentes, de causarem novas impressões. Não há preguiça na brincadeira proposta pelo grupo, e sim uma energia vital das releituras que dá frescor à obra. A ótima, e uma de minhas preferidas, “Baião de Vira Mundo”, por exemplo, que tem no álbum de estréia um apaixonado sotaque argentino, emprestado pelo tango que marca a harmonia, ganha tons regionais e vibração na percussão enxuta criada por tambores com batidas secas. E ganha também um andamento mais ligeiro, ao contrário da fantástica “Nescafé” que perde na claustrofobia incitada pela letra e muito bem aproveitada na primeira versão, mas mantém a dramaticidade e sua dolorida carga, aumentada pela ironia e artificialidade dos toques eletrônicos, de raladores e pianinho de brinquedo. Do mesmo jeito, “Jesus, o Padeiro e o Coveiro”, mais cadenciada, menos eletrônica, permite uma melhor leitura da poesia de viés concretista.

E, realmente, retirado um pouco o véu sobre as letras, podemos perceber melhor a sutileza e simplicidade das composições. Na já citada “Nescafé”, que meu amigo Thiago Vekanandry Bala de Icekiss acha de estrutura verbal surpreendentemente estranha, a explícita incomunicabilidade está exposta em signos fortes e cotidianos: “Eu cuspo Nescafé e você chora leite de manhã/Amarro o meu sapato e tu veste o sutiã”. Em “Prédio”, uma das criações mais poéticas do grupo, a acepção de nossas ilusões de óticas emocionais diante da vida: “Não é o prédio que tá caindo/São as nuvens que tão passando/Não sou eu que não tô sorrindo. É teu olho que, lacrimejando”. E na única inédita do disco, também de bela melodia, “Na Ponta dos Pés”, outra característica das canções do grupo, o texto direto e por isso, pegador: “Ei, você: você me deixa na ponta dos pés./E eu, que não sou besta, me estico todo e tento enxergar lá longe, onde tu costuma mirar./Lá longe, onde não consigo nem ver, mesmo que na ponta dos pés”. Acústico Sucateiro é reciclagem sábia que dá sustentabilidade aquilo que já vinha sendo usado e consumido por uma parcela de gente antenada com a boa música do Apanhador Só. Uma obra que apenas sublinha o talento de uma turma que merece ser ouvida. Diversão garantida e gratuita para quem acessar o site da banda: http://www.apanhadorso.com. Ah, e dá pra baixar também o primeiro álbum lá. Se aproxime. Caia nas graças desses gaúchos.

Cotação: 4

Outras formas de baixar Acústico Sucateiro:

http://www.4shared.com/file/9aJIe2Lw/DNA_Apanhador_S__2011_-_Acstic.html

ou

http://www.mediafire.com/?f7ppketb1b9g9df

sábado, 20 de agosto de 2011

Tomou todynho

Essa postagem bem que poderia ser uma continuação da anterior tantos os pontos coincidentes entre aquela boa banda e o projeto sobre o qual escrevo agora. Poderíamos apenas trocar os nomes dos personagens e um ou outro detalhe, mas a trama seria praticamente a mesma, como nos livros de espionagem de bolso que muito fizeram sucesso nos anos 80 nas bancas de revista. Assim como a britânica Metronomy, o cara por trás da norte-americana Memory Tapes demonstra uma nítida evolução e a necessidade de ampliar seu público com um trabalho mais coeso e chegado ao pop, nesse que é também o segundo registro fonográfico do projeto, Piano Player(2011). Estamos falando aqui de um homem que ajudou a cunhar o que seria mais um subgênero da música indie, uma tal de chillwave, que não é mais do que um som lo fi que se ampara na tecladeira(olha outra característica do Metronomy!). Mas, esqueçamos o rótulo e nos prendamos ao que mais vale a pena, a proposto musical e dançante do Memory Tapes que, se não chega a empolgar, pelo mas traz algumas boas idéias.

Assista ao clipe de "Yes, I Know":



Memory Tapes veio à luz publicamente quando lançou Seek Magic(2009), álbum que teve boa repercussão junto à crítica especializada. Era o projeto de um homem só, Dayve Hawk, em elocubrações, viagens umbigo adentro, diante de seu computador e as múltiplas possibilidades musicais e matemáticas que aquela maquininha infernal oferece. Hawk mostrou talento em construções harmônicas nas quais a eletrônica estava a serviço de viagens transcendentais e certa introspecção. Nada demais, contudo, como a ponta do iceberg, era possível vislumbrar potencial no cara de New Jersey tão cheio de boas intenções. Piano Player é como peças rearranjadas da obra anterior do músico, uma correção de rumo, na qual as melodias ficam mais evidentes, os arranjos melhor elaborados porque com alma mais coletiva e um espírito inapelavelmente pop. Memory Tapes, lembrando uma velha criação publicitária, “tomou todynho”, fortaleceu suas pretensões musicais e ganhou um frescor que elevou sua sonoridade alguns níveis acima da notada estréia.

Quem ouve a primeira música do disco, a calmíssima “Music in box(out)”, que, como diz o título, imita a caixinha de música, invadida aqui por uma sonoridade oriental, nem imagina o que vem a seguir. A programação musical de Hawk(o maluco aí da foto) ganha a partir da segunda música, a marca que estará presente em praticamente todo o repertório do álbum, um synth pop solar, feito para agradar aos mais turrões e mau humorados ouvintes. “Wait in the Dark” é “fofinha” com seu teclado e a bateria no tênue limite do brega que imperou na música eletrônica dos anos 80. O músico quase acerta no alvo com essa melodia de apelo popular mas que peca pelo arranjo repetitivo. Se redime logo depois com “Today is our Life”, primeiro single do disco e uma das melhores, que começa com percussão e teclado climáticos para cair no dance. Repare no refrão ganchudo, momento em que a guitarra aparece mais, equilibrando um pouco a supremacia do piano eletrônico. O tocador de piano, volta aliás, com gana e brilho na instrumental “Humming”, na qual o teclado ganha ares celestiais, barroco, para depois cair numa viagem mais experimental, deixando claro que o músico está entupido de referências sonoras, destiladas aqui sem parcimônia.

Ouça a instrumental "Humming":



Outra composição que merece destaque é “Sun Hit”, com solo inicial que lembra a oitentista The Cure em sua fase mais alegrinha. Com um coro mais lento e atmosférico e mudanças de andamento, estética que, com certeza, faz a cabeça de Dayve Hawk, é uma das mais bacanas do disco ao lado da balada “Yes, I Know”. Aqui, a bateria sincopada convida o teclado para uma contradança onírica, realçando a beleza e suavidade da melodia. Linda canção com vestígios da música folk para fazer os mais sensíveis, entre os quais me incluo, babarem. E o que é bom vai se escasseando. Um mergulho mais profundo em Piano Player termina com o incauto mergulhador batendo a cabeça em uma zona arenosa. As boas idéias se perdem no limbo do exercício eletrônico do one man band da Memory Tapes. Apesar de impor um ar orquestral a seus arranjos, a proeminência dos teclados começa a incomodar. A atonalidade de “Fell Thru Ice II” e sua apoteose instrumental e a dançante “Trance Sisters”, na qual o solo de teclado fala alto e cala a poesia da música, são exemplos, que se repetem em outros momentos, de que Hawk precisa de alguma impulsividade emocional em contraponto ao racionalismo de seu synth pop.

Player Piano, álbum que ganhou versão nacional graças ao esperto e antenado selo Vigilante, da Deck Discos, é um passo a frente do Memory Tapes. Um álbum mediano que não esconde, contudo, o potencial de um músico de incontestável talento, que sabe utilizar muito bem suas longas horas em frente ao computador. O cara afinou sua arte nesse segundo trabalho e tem tudo para aperfeiçoá-la, sem sombra de dúvida, ainda mais em sua próxima elocubração sonora. E aí quem sabe ele seja exato e definitivo como a bela ilustração da capa do disco, do designer japonês Kazuki Takamatsu, que esbanja sensualidade em suas criações de aspecto tridimensional em acrílico e guache que privilegiam diáfanas e esbeltas mulheres. Vale conhecer os dois, Hawk (http://www.myspace.com/memorytapes) e Takamatsu (http://kazukitakamatsu.web.fc2.com). O mundo cheio do talento dos artistas é bem mais bonito e vibrante.

Cotação: 3

Toque piano com Memory Tapes:

http://www.mediafire.com/?6d9fdx5qdm8li6s

Um pouquinho da grande arte de Kazuki Takamastsu: