Filhos de Itamar Assumpção e da poesia uni-vos para salvaguardar a beleza e ousadia da música brasileira. Esse desejo vive em ebulição em mim. Explico, saudosista: houve um tempo na década passada em que experimentar, reinventar a MPB era uma prática saudável e radicalmente instigante. De cabeças inconformadas surgiram provocações tão intensas e incompreendidas quanto os desvarios poéticos do negro Dito Itamar, o atonalismo canibal de Arrigo “Clara Crocodilo” Barnabé ou o caudaloso canto falado do Grupo Rumo. Os filhos dessa geração de 80, mesmo que mais comedidos, tentam hoje colocar suas garras pra fora. Aqui e ali, onde os cérebros foram irrigados pela inquietação. Privilegiados filhos, como Téo Ruiz e Estrela Ruiz Leminski, que beberam de rica fonte para fazer de sua arte um hiato em meio à indigência e trambicagem que marcam hoje nossa produção musical mais comercial. São Sons(2011) chega assim coberto de angústia criativa, honestidade e solta verbalidade. São sons e palavras a serviço de uma curtida sensibilidade.
Veja o vídeo da música "Ímpar ou Ímpar", do disco anterior da dupla:
Téo e Estrela não são parentes. Têm, coincidentemente, o mesmo Ruiz no sobrenome. São namorados de amiúde convivência, de levar a vida a dois colados no cotidiano das horas inteiras. Parceiros no trabalho e no amor, os dois têm berço e influências musicais invejáveis. Estrela, por exemplo, é, além de cantora, escritora e filha dos poetas consagrados Alice Ruiz, que tem participação no disco, e Paulo Leminski. Não é pouco. Téo é músico de carteirinha, desses talentosos que só conseguem viver à sombra das melodias. Arte aqui é oxigênio. O passado deu a ambos uma educação musical refinada. E, mais do que isso, entregaram-se ao micróbio da invenção. Em São Sons, o segundo e melhor distribuído álbum do projeto Música de Ruiz, é possível vislumbrar aquela busca pelo novo, presente nos grupos e artistas citados no primeiro parágrafo. Sem esconder uma certa angústia em acertar o alvo, o casal, com voz infelizmente pouco marcante, passeia por diversos gêneros musicais, procurando talvez encontrar a sua praia. Não encontram uma para ancorar o barco, mas mostram um inconformismo que enche o ouvinte da esperança de renovação.
Ouça "Chose":
Senão vejamos, o baião nervoso “Quirera”, com seu discurso raivoso sobre a indústria musical do jabá, aquela que paga os meios de comunicação para fazer “decolar” seus maquiados produtos, lembra o genial paulistano Itamar Assumpção, que marcou sua carreira pela verborragia e estrutura melódica singular. Percussão e sanfonas dão um falso ar nordestino a essa deliciosa música feita pelos curitibanos. “São Sons” tem musicalidade incômoda, com todos seus contrapontos e atonalidade. Os meninos usam bem sua metralhadora giratória e incansável. O jovem casal brinca com o samba em “Chapéu de Sobra”, entortando o ritmo, enriquecendo-o ainda com um trombone louco e experimental e com a fantástica voz de Ná Ozzetti, que integrou o grupo Rumo. Téo e Estrela vão de rock acelerado na muito boa “Chose”, que mistura violão, sanfona e guitarra pesada de forma magistral. Meu amigo de trabalho, Odeli Sampaio, que tem um super ouvido e é produtor de áudio, disse que a música foi mal mixada. Independentemente dos pecados técnicos, é uma composição impactante. Tem também melodia com jeitão de tango, envolvido pelo brega e pela brejeirice, na voz única de Kleber Albuquerque, na ótima “Verossímil”.
Tantos sonoridades diferentes são sons que os Ruiz oferecem como se quisessem expurgar as múltiplas influências. Como se tentassem decupar, ainda que de forma desordenada, toda aquela invenção musical que viveram em sua formação e que fez a cabeça dos dois. Só para contextualizar essa conexão criativa e mais experimental: Arrigo Barnabé é paranaense e sua música moderna tem raiz em Londrina. Itamar Assumpção foi parceiro de Alice Ruiz em composições maravilhosas. Ou seja, todos encontraram-se de alguma forma numa rica intersecção cultural. No caso de Téo e Estrela, é bom que se diga, contudo: não há intenção explícita de se fazer experimentalismo. O disco cede também espaço para canções com estruturas harmônicas simples, que podem tocar facilmente em rádios com programação dedicada à MPB, a exemplo das lentas e bonitas “Estilhaço” e “Reivento”. E se eles não provocam nenhuma revolução ou arroubos formais, mostram-se generosos na invenção das letras, destoando da pobreza poética das novas estrelas da música, tipo os jabazeiros Luan Santana, Cláudia Leite e outras bobagens congêneres que assolam as rádios e tevês brasileiras.
Se a juventude topasse ouvir canções bem estruturadas poeticamente como, só como exemplos rápidos, o rock “Chose” ou o lindo samba cadenciado “Parece”, sentiria que a palavra é um instrumento precioso para se fazer pensar e encantar. Na primeira música, Téo filosofa com propriedade e alguma raiva: “Se cada passo tem um tropeço, meu passado pelo avesso/Cada tempo seu invento, cada passo o seu intento/Eu faço desse passo o meu próprio alimento”. Na segunda, a letra com ecos políticos, ensina como criar rimas bacanas sem dificultar a leitura para os de vocabulário diminuto: “Parece muito fácil mudar a mente alheia, fazer reforma agrária, uivar para a lua cheia/ Parece fácil a beça distribuir a renda, curtir a natureza, mas a guerra tem pressa/Se é fácil, me diz, mudar para outro país, ver teu show sem pedir bis, entender o que fiz”. As letras são o que de melhor traz o disco, que têm sim melodias bem sacadas como “Ávida” e a já comentada “Chapéu de Sobra”, só para citar as que vieram mais ligeiro à minha memória. Mesmo que irregular, São Sons é um álbum que enxágua nossa alma, porque é irrequieto e tem conteúdo. Um trabalho que chama atenção pela energia criativa e as melhores intenções. Vale à pena acompanhar a trajetória promissora de Estrela e Téo. Acredito, cheio de fé: deve vir mais um punhado de boas composições por aí.
Cotação: 3
Tente baixar o disco por aqui, no controlCcontrolV:
O homem morto, ilhado por estilhaços e o sangue tingindo infame a parede, a cama, o lençol branco, testemunhas passivas de uma cinematográfica ação militar. Talvez isso. Talvez nada. Antes havia um fantasma de um homem vivo. Hoje paira o fantasma do homem morto maior do que era antes, fazendo sombra sobre nós. E surge imperioso o fantasma da dúvida se esse homem, com sua barba longa e passado entrincheirado, repousa mesmo debaixo de alguma terra em algum lugar desse mundo. Todos querem ver a foto do homem morto num mórbido e inquietante desejo de enterrar finalmente um capítulo sombrio da história da humanidade. Essa vontade coletiva, raivosa e tão loucamente humana de ver o terror selado dentro de um caixão imaginário, construído por milhões de pessoas que tremeram incrédulas diante de aviões suicidas jogados contra arranha-céus naquele fatídico dia em que o mundo também ruiu um pouco.
O homem sem o registro da morte estampado nas TVs, foi noticiado, teria sido jogado ao mar, desaparecido de vez de nossas vistas. Uma cerimônia fúnebre também sem registro, sem olhares curiosos. Sem choro nem vela à luz de holofotes. Insatisfação geral. Num planeta rendido à força intransigente das imagens, não bastava o anúncio verbalizado do assassinato por um presidente negro e poderoso, era necessária a visão ensangüentada da vítima perseguida por longos nove anos. Porque o mesmo mundo das imagens é o mundo do simulacro. A foto, o filme passou a ser cobrado aos brados, a parte perdida de um quebra-cabeças. A fotografia reclusa virou personagem, a estrela do noticiário depois da morte. Talvez guardada a sete chaves em um cofre. Talvez apenas arquivada na cabeça do estrategista que montou uma possível trama de grosso calibre. Estranha ironia. O homem barbudo e de turbante, até então coberto pela poeira do tempo, redivivo pela morte.
A morte sem foto e sem vela agora é também fantasma. Mais um fantasma do homem morto que assombrava os sonhos dos homens de bem. É o terror anguloso, cheio de surpresas, pregando, podem pensar alguns, uma piada de mau gosto em todos os que queriam cuspir em sua cara. Quem quer ver o rosto do homem morto? Prefiro pensá-lo longe de nosso mundo sofrido pelas guerras e atitudes insanas. Não quero ver a foto do homem morto e nem saber da notícia dela. Não quero me apegar a um papel com um rosto hirto estampado nele, uma face pálida endurecida pelo pó e enegrecida pelo sangue coagulado. Só quero um planeta melhor, sem violência e pânico, sem o preconceito que embrutece a alma, sem o terror que provoca choro em nome de ideais, quaisquer que sejam esses ideais. Sem nacionalismos extremados que produzem festas em cima de corpos sem vida no chão. Quero que a foto do homem morto permaneça enterrada junto com toda a tenebrosa história que se esconde por trás dela. Meu álbum de fotografias só admite fotos cheias de esperança de vida, de cliques de amizade ou de alguém que, mesmo que tenha partido definitivamente, só me faça lembrar a vida. Inteira e intensa como ela deve ser.
Foi incondicional como paixão que chega destemperada, deixando luminoso rastilho de fogo. Assim mesmo. Me tornei fã de imediato, presa do encantamento, quando ouvi o disco de estréia do Fleet Foxes, em 2008. Uma apresentação de gala desses músicos de Seattle, Estados Unidos. Um trabalho que parecia ter rompido a barreira do tempo, trazendo ecos de um mundo esquecido, de cores medievais, e sem cheirar, o que era melhor, a mofo ou ervas seculares. Mas, embriagante e mágico do mesmo jeito. Folk com referências de música barroca, apreendido sabe-se lá como por uma turma que ousava em investir no passado em meio a um planeta tão mergulhado na internet, redes sociais e cada vez mais entregue às batidas eletrônicas. Um som na contramão. Ainda assim, ganharam aplausos da crítica especializada, que listou o CD como um dos grandes lançamentos do ano. Voltam agora com Helplessness Blues(2011), obra de fôlego que não deixa nada a dever ao elogiado debut.
Assista ao vídeo de “Grown Ocean”:
São seis, os caras. Em comum, além desse gosto voluntário e desconcertante por uma musicalidade fora de moda, Robin Pecknold, Casey Wescott, J. Tilman, Skyler Skjelset, Morgan Henderson e Cristian Wargo gostam de melodias sinuosas, amparadas por uma instrumentação complexa, rica em detalhes, e vocalizações abundantes. São assim um tanto barrocos mesmo. Meninos malinos e incendiários. O folk do grupo ressurge com características semelhantes às já apresentadas no primeiro álbum. Contudo, soam mais grandiosos e deliciosamente pretensiosos. Há elementos novos, mas não surpreendentes em Helplessness Blues, como uma certa sonoridade árabe presentes na saltitante “Montezuma” e na cinematográfica “Bedouin Dress”. Surgem como uma cortina de fumaça, um pequeno e singelo aperitivo para o que de melhor a banda sabe fazer. E o melhor vem a partir da quarta música, “Battery Kinzie”.
“Battery Kinzie” remonta ao disco anterior, realinha o som do Fleet Foxes ao folk intenso e diferenciado, marcado pelo tom medieval e batidas fortes da percussão. Mas, com um peso maior dos instrumentos, pandeiros, violões acústicos e piano, entre outros, que elevam a potência da bela canção. Como essa composição, parte significativa das músicas do disco revela que os norte-americanos mostram-se menos sorumbáticos, mais próximos do calor do sol e seus raios animadores. E usam também, com o mesmo prazer e talento, uma das grandes virtudes da banda, coros afinados que servem de excelente companhia para o vozeirão privilegiado de Robin Pecknold. Esse coro, em arranjos espertíssimos, impressiona na excelente “The Plains/Bitter Dance”. As vozes soam como instrumentos, têm a tessitura etérea dos sonhos e casam com perfeição com violões, pandeiros e flautas que lembram, na raiz, um pouco o movimento armorial. A sobreposição dos vocais num crescendo ressalta ainda mais o lirismo dessa grande melodia, uma das melhores de Helplessness Blues.
Escute "The Shrine/An Argument":
The “Plain/Bitter Dancer” tem o mesmo vigor criativo da épica “The Shrine/An Argument”, com seus sete minutos e andamentos diferenciados. Pecknold acompanhado apenas de um violão acústico começa a canção de forma serena e depois abre as portas para que entrem, avolumados, a penca de instrumentos com sua sonoridade medieval. E ainda sobra espaço para esquisitices no final de tudo, guinchos atonais que parecem saídos da garganta de baleias. Essas duas canções, tão complexas e cheias de infinitos detalhes, dão a dimensão exata do exercício musical rebuscado do grupo. Essa arquitetura refinada exige paciência do ouvinte, que, em alguns momentos é poupado estrategicamente da robustez e preciosidade dos arranjos. Em pelo menos dois deles, na instrumental “The Cascades” e na plácida “Blue Spotted Tail”, um folk que lembra os emblemáticos Paul Simon e Art Garfunkel em seus momentos mais poéticos, os Fleet Foxes deixam que tudo flua mansamente, com estapafúrdia singeleza.
Helplessness Blues é enfim um desses álbuuns de cabeceira. Um Fleet Foxes fiel ao plano de se entregar ao barroquismo, aproximando-o da cultura pop. É um trabalho que não traz o elemento surpresa tão evidente e bem vindo no primeiro disco, mas que seduz pelo vigor das composições e cujos artífices mantêm, impressionantemente, uma até então inesgotável inspiração. Tem um cantinho do meu cérebro que se identifica com esse hibridismo passado/modernidade exercitado por algumas bandas e que, quando bem dosado, rende música de qualidade. É uma mistura que requer, contudo, equilíbrio de quem a experimenta. Esses caras de Seattle mostraram-se centrados nessa busca. Esse último álbum é uma elegia ao bom gosto, uma prova inconteste de que esses meninos ousam na medida certa. Uma obra de peso prontinha para se instalar no coração daqueles que estão predispostos s viver novas experiências e sensações. Viva, sem contra-indicações, o Fleet Foxes.
O country é quase sempre visto como um estilo musical popular, alegre, dançante, apesar das baladas melosas dedicadas a amores frustrados e às belas mulheres que pontuam a história desse gênero genuinamente norte-americano. Mas, como tudo no mundo evolui, excluindo a cabeça do bronco e preconceituoso deputado federal Jair Bolsonaro, aquela música recebeu injeções de modernidade que impuseram a ela novos tons e texturas. Bandas como Uncle Tupelo, Wilco, The Jayhawks e Drive By Truckers tiraram-na do circuito caipirão, agregando ao som um instrumental mais clássico, ritmo mais lento e poesias mais substanciais. Ajudaram a criar um subgênero que denominaram alternative country, ou alt country, como é mais conhecido. O grupo The Mountain Goats, ouso dizer numa análise bem pessoal, parece ter bebido claramente dessa fonte. E é deles um dos bons discos estrangeiros lançados no primeiro trimestre deste ano, o melodioso All Eternals Deck(2011).
Veja participação do Mountain Goats cantando no David Letterman:
http://youtu.be/CmBKKDxWJsk
Antes de ouvir o disco encare bem a capa do danado na foto do primeiro parágrafo desta resenha. As letras brancas sobre o fundo preto. Simplesmente. Nada de novo no design, é claro, mas quem conhece um pouco a banda imagina logo que a proposta impressa ali anteciparia mais um trabalho lento, introspectivo, estilo lo fi que marcou a carreira da banda, como em Get Lonely(2006) e The Life of te World to Come(2009). O que se ouve, contudo, é um John Darnielle, o cabeça do grupo, menos soturno, mais virado para o sol. Como se toda aquela melancolia anterior, feito cobra que muda de pele, tivesse se descarnado e se mostrado com novo brilho e cor. Essa pujança está inclusive naqueles momentos em que Darnielle, autor de todas as músicas, e seus amigos revivem a angústia curtida e explorada antes de forma admirável, a exemplo da envolvente “Outer Scorpion Squadron”, com seu piano leve contrapondo-se a violinos tensos, e de “Liza Forever Minelli”, homenagem em tom menor à, ironicamente, esfuziante e midiática atriz de tantos musicais hollywoodianos.
Naquelas duas músicas citadas antes, apesar do andamento mais lento, percebe-se um peso maior na instrumentação. Um amparo pra lá de providencial. Benza deus. Se antes, os norte-americanos do Mountain Goats eram conhecidos pelo minimalismo no trato dos instrumentos, agora se vê uma banda que parece ter se entregue de vez a texturas mais cabulosas, expansivas. Violinos, teclados, juntaram-se a pianos e violões para comporem sinfonias encorpadas que, longe de afastar o ouvinte das letras darks e ácidas de Darnielle, só contribuíram, a meu ver, para reforçá-las. Um exemplo clássico é a linda “Age of Kings”, uma de minhas preferidas, que começa acústica para tomar ares épicos mais adiante com a inclusão de violinos dramáticos. Grande arranjo de cordas para uma melodia arrepiante. Bela também é “Damn These Vampires”, puro alt country valorizado por uma poesia rascante, fragmentária e raivosa. “Deus amaldiçoe esses vampiros pelo que eles fizeram comigo”, canta o líder da banda.
Ouça a bela "Age of Kings":
A boa voz de Darnielle, grave e cheia de personalidade, é instrumento para outras canções de forte apelo musical. E leia-se aqui melodias inspiradas. Até naquelas composições com arranjos mais tradicionais, que lembram, mesmo que de longe, o estilo indie-country, como “The Autopsy Garland”, marcada por uma bateria pesada, quase tribal, e a mais alegrinha, apesar do título doentio, “Beautiful Gas Mask”, animada por um violão tão cheio de energia, é possível sentir a inteireza e modernidade de canções buriladas por músicos talentosos. E que mantêm a coerência, percebida em toda a carreira, ao insistir em letras carregadas de fantasmagorias e imagens cortantes, sem concessões aos mais fracos de coração e estômago. Temos, contudo, que nos desligar do universo tão próprio e denso de Darnielle e viajar em suas construções melódicas, que encantam a alma, como a lenta “Never Quite Free” e a mais hardcore “Estate Sale Sign”, que, pode ter certeza, caro amigo, não vai fazer feio em sua descolada festinha.
E por falar em peso, a nota curiosa sobre este All Eternals Deck é que quatro das músicas do disco, segundo noticiou a imprensa, foram produzidas por Erik Rutan, guitarrista de uma banda de metal chamada Morbid Angels. Dizem até que Darnielle é fã desse rock mais enfurecido. Curiosa porque em nenhum momento percebi uma mão mais pesada na produção levando o grupo a canções mais desarvoradas ou habitadas por gritos roucos e guitarras no talo. O décimo álbum de carreira dessa galera é, ao contrário disso, um trabalho cuja intensidade está centrada unicamente, e me perdoem se estou enganado, já que não sou fã do heavy metal e seus congêneres, naquilo que The Mountain Goats sempre soube fazer com maestria: peças para embalar ouvidos maturados pela qualidade musical. E, com esse último CD, pode-se dizer sem pestanejar: os caras não perderam a mão.
O que falar do rei Roberto Carlos que já não tenha sido dito? Mas, também, como não comentar uma data tão significativa quanto os 70 anos desse artista que espelha com tanta profundidade a alma romântica brasileira? Quando me entendi gente que gostava de música e precisava me posicionar diante de todos os gêneros musicais e seus múltiplos artistas que enriqueceram nossas mentes e aqueceram nossos corações nas últimas décadas do século passado. Quando precisei me instalar em uma tribo, atrás de juvenil identidade, logo me coloquei ao lado de gênios da MPB então em franca produção criativa. Eram fins dos 70 e início dos 80 do século passado. Fiquei do lado da intelligentsia, numa época em que gostar de Roberto Carlos era meio demodê. Me aquartelei entre as estrofes preciosistas de Chico Buarque, os rompantes tropicalistas de Caetano Veloso, os mergulhos tribais de Gilberto Gil e os sentimentos telúricos de Milton Nascimento. Roberto era vaga lembrança do passado, no máximo um símbolo do capitalismo e de um populismo viciante que arrastava milhões de brasileiros.
Ouça “Sua Estupidez”, com Ná Ozzetti:
Cego por um sectarismo típico do adolescente anti-norte-americano, cheio de ideais na cabeça, não enxergava que todas aquelas milhões de pessoas que se debulhavam em choro ouvindo “Detalhes” e cantavam a pleno pulmões “Amada Amante” estavam certas. E foram ironicamente meus velhos ídolos que me ensinaram a tornar o Rei um novo ídolo para mim. Gal Costa cantando lindamente o sucesso “Como dois e dois”, Caetano cercando-se de um coro arrepiante para construir uma versão fenomenal de “Muito Romântico”. E, no futuro, ouvindo ídolos ainda mais recentes, a certeza de que havia cometido uma imensa burrice, quando imberbe, desprezando o poder daquele cara. Ná Ozzetti intensa desfragmentando “Sua Estupidez”, Chico Science criando novo suingue para “Eles estão Surdos” e até Adriana Calcanhoto revelando uma insuspeitável leveza na canhestra “Caminhoneiro”. Roberto Carlos é sim, e não aventureiros como Romário, o “Cara”. Além do que, um homem que torce pelo intrépido Vasco da Gama tem, no mínimo, bom gosto.
Ouça “Como 2 e 2”, com Gal Costa:
O que o tempo foi me revelando, ao passar dos anos, a cada ponto que o Rei ganhava comigo é que em toda a minha vida houve a presença dele, como uma trilha sonora que continua rodando ininterruptamente até hoje. A memória obscurecida na adolescência foi clareando em minha maturidade. Lá estava eu, garoto, no cinema, ao lado de colegas ruidosos da escola Marista, vibrando com as aventuras de um Roberto Carlos indômito, a la Indiana Jones, esmurrando bandidos mal-encarados e vencendo a luta contra o mal, personificado pelo grande ator José Lewgoy. O Rei estava lá embalando suavemente, nas ondas de um radinho de pilha roufenho, os namoros de pé de muro, protegidos pela penumbra amiga, de minhas irmãs mais velhas. Estava na voz afinada de minha mãe, me ninando e amaciando o trabalho na máquina de costura no cantarolar de “Jesus Cristo”. Estava na voz da lavadeira, do peão de obra, na moça desiludida de olhos tristes, no violão do rapaz que trocava a tímida cantada pelo melodia sedutora de “Como é grande o meu amor por você” tocada, cheia de dedos, no violão. Tanta gente rendida ao seu gênio, às suas canções tão diretas e tocantes quanto pode ser um amor infinito.
Escute “Detalhes”, com Roberto Carlos:
Lembro depois, mais tarde, quando já havia absorvido sem chancelas a importância do Rei, do show dele que assisti fervorosamente ao lado de minha extasiada mãe. Lá pelos meios dos 90. Roberto estava numa entressafra criativa, que, aliás, se arrasta até hoje. Mas, isso não importava muito. Era um momento que cultivava e ansiava desde muito, como um encontro afetivo com o passado musical que negara por tanto tempo. Como uma declaração definitiva de amor a minha mãe. Nós dois ali num ginásio lotado. Na maioria por mulheres, pessoas com mais de 30 anos. Ele todo de branco. Elas todas perfumadas em seus vestidos de gala. E a orquestra de Roberto agigantando o romantismo das canções. O tremendão ainda não voltara, por um pudor besta, a cantar seus agitados rocks de jovem guarda. Naquele instante para mim, tudo o mais poderia ir pro inferno. E tudo me parecia tão mágico naquela noite que tive vontade de sair, qual louco, dançando com minha mãe nos braços. Ali fiz as pazes de vez com Roberto. Hoje, ele completa 70 anos e toda essa memória veio à tona volumosa, emocionada, me arrastando para perto do eterno Roberto. Posso quase tocá-lo agora, quem sabe roubar uma daquelas rosas vermelhas que ele arremessa para as fãs. Posso, sim. Saúdo o Rei. Longa vida ao rei.
Cotação: 10
Ouça "Todos estão Surdos", com Chico Science e Nação Zumbi:
Marcelo Camelo está apaixonado. E quem gosta da música do cara, ou acompanha o bestiário de fofocas que invadiu feito larva o dia a dia do brasileiro comum, sabe que a eleita é Mallu Magalhães, uma fofinha que canta músicas indie folks... fofinhas. E a moça parece ter feito muito bem ao barbudo que marcou o rock nacional dando inteiramente o sangue e a alma ao grande Los Hermanos. Mallu (Na foto em cena romântica com o amado) acendeu nele aquela chama exata, transformadora, que leva o nome de amor. Estar sendo devorado por esse fogo mágico que tudo molda gerou uma mudança na música de Camelo, afinou sua poética, afastou-o da imensa e sufocante melancolia que fez do seu álbum anterior, Sou(2008) um instransponível muro de pura e frio ensimesmamento. O amor esquentou o coração do artista que oferece ao público um álbum intimista, confessional, com uma carga de uma até então insuspeitada alegria e de instrumentação densa. Toque Dela(2011) tem o toque dela e toda uma consubstanciada paixão que ele carrega.
Ouça "Ôô":
O segundo álbum solo de Marcelo Camelo é todo esse seu momento de plenitude. Amor é um sentimento que não se basta e não se contem dentro do peito. Tomado por ele, o carioca, sensível como ele só, parece ter a necessidade de expô-lo, de compartilhá-lo. Tenta explorá-lo, decifrá-lo em canções intensas e repletas de achados poéticos. Amor é o tema comum a boa parte delas. Letras e melodias trilham caminhos de absoluta interação. Enamoradas, complementam-se harmônicas como se feitas uma para a outra. Como um casamento feliz, com o cheiro e a costura da eternidade. Inspirado, Camelo é capaz de construir espécies de hai-kais ultra-românticos, exemplo de trecho da lenta “Meu Amor é Teu”, na qual declara, como um Werther redivivo, “Meu amor é teu, mas dou-te mais uma vez”. Ou também de elaborar versos tão singelos, quanto criativos, exercitados na fantástica “Três Dias”, que já nasce clássica: “Se falta carinho, ninho/ Se tiver vontade, chama/Mas, se faltar a paz, Minas Gerais”. Ricas imagens poéticas a serviço de uma melodia pra lá de tocante.
Ouça a magnífica "Três Dias":
Muitos hão de achar que Toque Dela tem estrutura harmônica parecida. Impressão dos afobados. Diferentemente de Sou, que traz um minimalismo reforçado pela parca instrumentação e pela já comentada levada melancólica, o novo álbum impõe variações rítmicas que repetidas audições irão prazeirosamente revelar. É disco pra se degustar sorvido lentamente, como velhos e encorpados vinhos tintos. Daqueles esquecidos sabiamente em adegas seculares. Se composições como “Três Dias” e a também calminha “Tudo o que Você Quiser” remetem ao Camelo dos dias cinzentos, o restante revela um compositor que fez as pazes com a alegria e a serenidade. A sincopada “Acostumar”, por exemplo, tem uma leveza que nem a farta instrumentação usada consegue esconder. É melodia singela, frutada, uma das melhores do trabalho. “A Noite”, música de abertura, é outra que merece destaque. E aqui, Camelo já demonstra, de cara, que pretendeu vestir de gala suas ricas melodias. Intento conseguido por arranjos espertos e uma gama substancial de instrumentos.
Para dourar sua música, o ex Los Hermanos chamou a Hurtmold, banda paulista integrada por músicos talentosos e extremamente cultuados no underground. Vale dar uma passada pela discografia surpreendente e refinada desses caras. Eles são os responsáveis pelos metais e cordas que contribuíram para dar forma, ângulos inéditos ao espírito essencialmente solar e vivo de Toque Dela. Sax, trombones, guitarra, baixo “falam” alto, são atores ativo em arranjos que privilegiam a instrumentação. O instrumental chega mesmo a ser exagerado em alguns momentos, como na mais agitada de todas, a rocker, ou algo que se aproxime disso, “Pretinha”. Esta, uma canção ligeira com aura experimental, provocada por uma dissonância esquisita de guitarras e baterias, descompromissadas, intrigadas com a voz frágil de Camelo. Mas, no geral, a moçada do Hurtmold está a serviço do equilíbrio, baixando até o tom, quando necessário, como, por exemplo, no batuque e na simplicidade que fazem de “A Despedida”, composição que o público já conhecia na voz de Maria Rita, uma das mais diretas e saborosas faixas do álbum.
Toque Dela é desses álbuns de indiscutível coerência melódica, alcançada somente por quem entende do riscado. Marcelo Camelo resolveu ser mais assertivo e transparente. Canta o amor como raros, espanta soberano a solidão e entrega para os ouvintes um disco elegante, talvez até chato para alguns, principalmente para aqueles que não têm paciência de refinar a poética caudalosa proposta pelo músico carioca. Talvez você até encontre aqui e ali, em lampejos fugidios, ecos da banda que entronou camelo na história do rock nacional. Melhor mesmo é, fãs dos Hermanos, relaxar e absorver a entrega amorosa e cheia de significados que este trabalho traz. Tem que ter coração grande, aberto, para acompanhar essa obra. Ouça com cuidado. E mais uma vez ouça. É só sentir e se deixar levar. A recompensa vai vir no final.
Aquilo que antes era apenas uma penugem transmudou-se em penas fortes, lustrosas. Cada vez mais longe do ninho e afoita, aventureira em busca de novos horizontes, ela sabe que existe um grande e inescrutável espaço a conquistar. Mundo vasto mundo, se ela se chamasse Maria, que rima o poeta faria? Mais segura, Tiê, a cantora paulistana com nome de pássaro, alça agora vôos mais longos, definitivos. O segundo álbum está aí para provar que a promessa de uma artista de personalidade forte se confirma concretamente. Ponto para essa moça talentosa que chegou assim pianinho, passarinhando suavemente, e, sem mais avisar, como uma fera sorrateira, se agiganta diante da gente. A Coruja e o Coração(2011) é trabalho cuidadoso, pequena jóia barroca, feito para firmar Tiê nesse universo restrito de artistas brasileiros com assinatura e brilho próprios.
Veja o clipe de "Na Varanda da Liz”:
Há dois anos, Tiê entregou de forma independente um CD tão confessional e cheio de lirismo que logo chamou a atenção da crítica especializada. Poucos acompanharam os primeiros passos da artista que exibia uma sonoridade que logo tacharam de neo folk, ou algo parecido. Porque íntimo, acústico, econômico, feito daquelas palpáveis tristeza e doçura que caracterizam o gênero. Sweet Jardim(2009), que me inspirou uma resenha aqui mesmo no meu insensato blog, era diferente, não seguia as tendências da música brasileira. Meio assim deslocado com sua abusada simplicidade e sinceridade. Tanto que, por ser rara, a artista logo foi colocada no balaio do que recentemente denominaram de “Novos Paulistas”. Mania essa da imprensa de criar grupelhos, imaginários movimentos musicais, levada pelo surgimento de talentos contemporâneos, a exemplo dos conterrâneos Tulipa Ruiz,Thiago Pethit e Marcelo Jeneci, autores de discos incandescentes e marcantes em 2010.
Faça o download e ouça “Só Sei Dançar com Você”:
http://www.divshare.com/download/14536235-57b
No mesmo ano do lançamento de Sweet Jardim fui assistir a um show de Tiê num pequeno e abafado pub em Brasília. A primeira apresentação dela na capital. Bem no gargarejo, premiado pelo desconhecimento do brasiliense daquela moça postada ali, cheia de dedos, num diminuto e improvisado palco. Só ela e violão. Confirmei ali minha impressão de que aquela dona tinha algo de especial, encantatório. A mesma vozinha miúda que ouvia no headphone embalando aquelas canções tão delicadas. Fiz questão, numa desavergonhada ti(ê)tagem, algo que quase nunca faço, de comprar o CD e pedir que a baixinha autografasse. A Coruja e o Coração só reforça o encantamento. Gosto dos passos dados adiante sem que se perca o DNA, de quem não se acomoda e mapeia novos territórios com aquela típica sede do conquistador. Esse álbum tem um pouco disso, amparado pelo contrato da artista com a blockbuster Warner.
A ligação com a Warner, e muitas vezes isso acontece, não desfigurou o som e o canto de Tiê. Parece apenas ter lhe dado mais munição para produzir um trabalho mais encorpado, com recursos técnicos e instrumentais que a falta de verba não lhe proporcionara antes. A compositora e o aclamado produtor Plínio Profeta, que a acompanha desde Sweet Jardim, puderam contar com o auxílio de afinados músicos e a presença de um bom punhado de convidados. E esse é um dos diferenciais mais notados em relação ao primeiro álbum. Percussão, cordas, metais surgem inteiros nos belos arranjos da nova investida da paulista. E isso é percebido fortemente na música de abertura, “Na Varanda da Liz”, composta para a filha, embalada por muitos e intensos instrumentos que quase fazem a voz da cantora sumir. Aquela levada acústica que ganhou mentes e corações só aparecem nas lindas e mais cools, “Piscar o Olho” e “Te Mereço" e seu piano ensimesmado, que poderiam fazer parte naturalmente do primeiro CD.
Mas, o uso farto dos instrumentos serve apenas para amplificar a poética de Tiê. Tudo continua intimista e confessional como antes. A balada “Perto e Distante”, com a participação do uruguaio Jorge Drexler e um sax cortante, traz letra de diário que sensibiliza até os mais brucutus. “Quem garante que o que você é é o que o outro enxerga?”, filosofa a cantora nessa composição densa. Os ricos arranjos e todos os músicos contribuem ainda para adicionar a A Coruja e o Coração um elemento invisível no trabalho anterior, o pop. A já citada e radiofônica “Na Varanda da Liz”, talvez a mais radiofônica de todas, e as ótimas “Pra Alegrar o meu Dia” e “Hide and Seek”, essas com levada country, graças ao bandolim de Profeta, são assim: alegres, solares e prontinhas para seduzir um público, diríamos, menos exigente. Tem até uma versão flamenca e alienígena do forró “Você não Vale Nada”, que foi tema de novela das oito na Globo.
E tem ainda, em contraponto ao visceral e divertido forró de Dorgival Dantas, as versões das matadoras “Só sei dançar com Você”, de Tulipa Ruiz, e “Mapa Mundi”, de Thiago Pethit, que, se não acrescentam muito às originais, são conduzidas com brio e leveza. As duas contando com a participação daqueles “novos paulistas”, autores incensados e criadores iluminados. Para fechar essa alongada resenha, diria que, no frigir dos ovos, A Coruja e o Coração é um disco generoso, convincente, de vivo aconchego. Obra madura de uma artista veio para ficar. Avoé, Tié.
Os Estados Unidos são aqui? A morte e a tragédia se manifestam sempre vis e eloqüentes. Calam o cidadão, calam a gente. Calam um país. De que matéria é feita esses fatos que acordam nossa indignação e nos deixam tartamudos e nos fazem pensar, espantados, de que matéria somos feitos? O que leva alguém a entrar numa escola repleta de crianças, “brasileirinhos”, como os chamou a presidente Dilma, cheios de vida e planos e atirar contra eles? A tragédia no Rio, numa escola do Realengo, que aconteceu nesta quinta estranha é um soco no estômago. Uma lição de como estamos expostos a nossa loucura, a uma realidade cada vez mais parecida com uma fita de cinema. E, pessoas comuns, atores desavisados dessa doído filme cotidiano, viram manchetes incômodas, espelhos do que pode acontecer a todos.
Somos os Estados Unidos que testemunharam tragédias parecidas? Parecíamos tão longe disso tudo. Já não estamos agora. Podemos até ser mais afáveis que os norte-americanos, traço sempre realçado de nossa alegre personalidade, mas somos loucos do mesmo jeito. Morreram onze brasileirinhos. Com nomes, famílias, carrinhos coloridos, bonecas despenteadas, amigos, com pouca idade e tanta coisa pra fazer. Tanta coisa. Morremos um pouco todos nós, brasileiros e brasileirinhos, e também morre um pouco nossa santa ingenuidade. As tragédias não medem choro e perplexidade. São tsunamis em nossas entranhas que devastam um pouco de nossa já combalida humanidade. E toda essa inquietante tristeza que ela causa faz com que reflitamos sobre o que o tempo e uma moral sempre em cheque faz com nossa alma.
Perdemos onze brasileirinhos. Com dentes esbaldando sorrisos, com línguas aprendendo o vocabulário, com olhos abraçando o mundo, com pés miúdos aprendendo a dar passos largos. Perdemos tudo isso. Só não podemos perder a capacidade de transformar essa tragédia na promessa de que nunca vamos nos conformar com isso, nunca vamos deixar que isso pareça banal. Porque para cada louco que atira contra a humanidade, contra ser humano, tem que haver um milhão de pessoas prontas para defendê-la. Choremos e sejamos humanos. E vamos rezar também para que esta quinta-feira estranha tenha sido apenas um tropeço estúpido na história de nosso país rumo a uma arquitetura da paz. Aqueles brasileirinhos que, injustamente, não vivem mais entre nós merecem.
Os fãs costumam ser superlativos quando falam do barba grande Sam Beam. A superlatividade é um pecado daqueles cegos pela paixão. Pecado substantivo. Esses cometem excessos que o desconfiado, franzindo o cenho, sempre passa pelo pente fino da razão. E é bom que a humanidade seja sim, feita de apaixonados intensos e devotados cartesianos. Nesse caso específico, melhor mesmo é abrir bem os ouvidos para tirar a prova dos nove. Exageros a parte, temos um artista sensível que criou culto, sua igreja própria povoada por um tanto de pessoas que amam a poesia, a melancolia e melodias bem acabadas. Sam Beam e seu Iron & Wine são assim, amados radicalmente. Espécies de franciscanos, doutores em ética que conquistaram discípulos por uma certa ingenuidade musical, típica da folk music, e um ranço podiscrê, reforçado pelo visual barbudo, que caracterizaram seus três primeiros discos. Agora, o cara quer mudar um pouco essa história com Kiss Each Other Clean(2011).
Antes, o Iron & Wine era Beam e toda sua tristeza infinita em dois discos, The Creek Drank The Cradle (2002) e Our Endless Numbered Days (2004), com essência folk que cativou os de corações generosos. Tanta poesia e dor foram arrefecidas um pouco no elogiadíssimo e melhor dos três, The Shepherd's Dog(2007), o meu preferido. Aqui, a alegria deu o ar da graça. Sim, havia réstias de sol no mundinho intimista da banda. Em Kiss Each Other Clean, Mr. Beam se aproxima do universo pop de quem, além de se sensibilizar com harmonias barrocas, gosta também de bater o pezinho, de sentir a pulsação dos instrumentos que inspiram a dança. Calma, o disco não foi feito para as pistas, mas tem uma levada até então estranha ao grupo, harmonias mais dançantes e que revelam o interesse de seu mentor de alcançar um público menos cult. E talvez por trás disso há o fato de que agora o barbudo trocou o cool Sub Pop por um selo, digamos assim, mais capitalista, a Warner.
Tudo bem que o novo disco traga, cerzidos com linha forte, os elementos mais caros ao folk, as melodias com ricas harmonias, percussão cuidadosa e os corinhos casados com a voz principal. Tem um pouco do velho Beam do início de carreira em baladas trabalhadas com esmero para reconfortar espíritos carentes. São os casos da linda “Godless Brother in Love”, canção curtida na simplicidade do arranjo, com belos piano e violão servindo deliciosamente de base para uma delicada melodia, e a quase country “Half Moon”, com sua letra invernal e um coro feminino fazendo contraponto preciso à voz bonita e segura de Sam Beam. Mas, esses dois bons momentos de Kiss Each Other Clean não representam o que o trabalho tem realmente de mais emblemático e marcante, além dos já citados coros, presentes na maior parte das composições: a farta instrumentação, realçada por arranjos refinados e elaboradíssimos, e uma explícita pendência para o pop.
O pop de Iron & Wine não é da mesma matéria daquele fabricado a granel por gente como Michael Jackson e Steve Wonder. Desses dois, aliás, herda um certo suingue negro, vindo do soul e do funk, que tem similitude em outro branquelo, o bacana Dave Mathews. É mais cabeça, mais intelectualizado, som cheio de filigranas que demonstram que o grupo é amante da sofisticação. O ataque de metais vibrante é, por exemplo, um dos grandes baratos de “Big Burned Hand”, com seus momentos jazzy, acentuado principalmente pelo sax sensual e improvisos instrumentais. O diálogo de metais e corda também faz a diferença na soberba “Your Fake Name Is Good Enough for Me”, com uma melodia, no início mais acelerada, que se revela inteira e sedutora quando a música diminui o ritmo e se desnuda para o ouvinte. São sete minutos de sonzeira nos quais fica evidenciado ainda o arranjo preciosista da composição e a voz de Bean que, dobrada, nos faz viajar aos tempos áureas do folk de Simon e Garfunkel. Quem lembra?
Ouça "Your Fake Name is Goof Enough for Me":
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Nos dois exemplos do parágrafo anterior divisamos uma banda mais aberta para a possibilidade dos instrumentos. Flautas, percussão, metais, cordas, gaitas, eles estão em Iron & Wine muito mais vivos agora. E nas maos de uma trupe eficiente. Todos à disposição de uma farra elegante, da alma mais leve de uma galera e de um grande autor que encontraram sentido em satisfazer o lado mais leviano, desapegado, dos que gostam de música sem preconceito. Ouça “Tree by The River” e me diga depois se a concessão, mínima, tudo bem, à eletrônica é ou não um sinal de que os caras querem extrapolar fronteiras. Francamente desenvoltos, eles querem mais fãs. E isso não faz a música deles pior. Dez anos de carreira mudaram o modo do Iron & Wine encarar o mundo. E Kiss Each Other Clean, um disco acima da média e de capa deslumbrante, é bem a medida dessa pretensão.
Cotação: 3
Conte com a sorte, que o xerif web está mal humorado.Download aqui:
Eles têm uma musicalidade levemente esquisita, temperada com o ecletismo comum daqueles que mantêm os ouvidos escancarados para a viva produção global. Um biscoito fino com recheio insuspeitado. Prontinho para ser mordido e saboreado. Uma francesa, Olivia Merilahti, e um finlandês, Dan Levy, juntos numa banda chamada The Dø. Parêntese: Esse ø estrambøtico formata a pronúncia da palavra, que vira, assim, The “Dou”. Fecha parêntese. O duo binacional afina sua sensibilidade para botar na prateleira de música alternativa o interessante Both Ways Open Jaws(2011), o segundinho da carreira. Escrevendo isso, rio internamente porque sempre que a gente define algo como “interessante” é porque não encontramos um adjetivo que qualifique mais virilmente a coisa. Dessas expressões bambas e imprecisas que cobram explicações.
Veja o vídeo de “Slippery Sloope”:
A imprecisão do “interessante” é provocada e aí, meu caríssimo leitor, vem minha única explicação, pela salada sonora que The Dø nos oferece. Estamos aqui no terreno do inclassificável, exercício ao qual a tribo indie norte-americanos e a européia, mais culta e melhor informada, está bem acostumada. Não consigo rotular que tipo de som o duo pratica. É possível sacar de Both Ways Open Jaws essa mistura rítmica que faz o álbum parecer a uma colcha colorida de fuxico, esse artesanato tão comum a nós brasileiros. Tem eletrônica, world music, experimentações, country music, roquenrou em doses esparsas, estilos que fazem com que possamos ler o disco como um livro de contos. É como se cada faixa fosse uma história diferente. E isso faz a delícia e traz os maiores riscos à obra. Porque nem todas as “histórias” desse “livro” são bem resolvidas. Nem todas têm, infelizmente, final feliz.
Escute “Gonna be Sick!”:
Se, por exemplo, me concentrando mais nas faixas do álbum, o lado indie folk, em sua vertente mais onírica, tem ótimos resultados, como na envolvente “Dust it Off”, na qual a voz aguda e correta de Olivia defende bravamente a doce e bem construída melodia, bobagem, na mesma linha musical, como “Leo Leo” vai em direção contrária. É sedativo forte de efeito imediato. Melhor pular para a próxima música. Se, a melhor do CD, “Gonna Be Sick!”, composição com levada mais rocker e vibrante, engata bem, e muito bem, em nossos neurônios, “b.w.o.j” , letras iniciais do título do disco, fica entalada na garganta com sua mistura insossa de eletrônica, experimentalismo oco e batidas que remetem a tambores tribais. Quis o deus da música, em sua infinita sabedoria, que essa música transcorresse em pouco mais de um minuto, salvando nossos tímpanos dessa derrapada.
Temos mais algumas histórias de acertos nessa variada obra do Dou. “Slippey Slope” é descaradamente um decalque da batida forte, roots de M.I.A, a rapper londrina que conquistou a crítica do mundo inteiro com sua música engajada e provocativa. Boa música, ainda assim. Mexe com o corpo, inspira os músculos das pernas. Olivia e Levy aprenderam bem a lição de veia africana vinda daquela moça. A objetiva e transparente “Too Insistent” lembra, com sua guitarra displicente, o rock descolado das bandas independentes que fizeram a alegria da galera nos anos 90 do século passado, como “Pavement” e “Guided by Voices”. A baladinha pouco inspirada, ainda que suavizada pela voz de Olivia, “Was it a Dream” e “The Calendar”, uma espécie de country baleado de morte por uma bateria minimalista, depõem contra e provam que, apesar das boas intenções, o álbum dá sérias engasgadas.
Imagina você com um belo e cobiçado carro que, saído de fábrica, apresenta alguns probleminhas irritantes. Sinto que Both Ways Open Jaws vai por aí. A crítica argumenta que houve um salto significativo desse para a estréia, A Mouthful(2008), trabalho que, admito, falha minha, ainda não escutei. Fica claro que The Dø tem um potencial incrível para fazer canções memoráveis. Dan Levy, também ficou provado, é um arranjador e instrumentista valoroso. E Olívia Merilahti é uma cantora de voz marcante, característica realçada num trabalho que abre generosamente espaço para que ela brilhe. Mas, fica a sensação de que faltou explosão no disco, como se os dois tivessem represado sua força. Como um esboço para uma obra mais contundente que virá no futuro. E, acredito, virá.
Para ler ouvindo "Deus e o Diabo no Liquidificador", da banda Cérebro Eletrônico:
Tudo muito cinza, escuro. O ar sempre enevoado embaçando a minha vista, turvando os objetos e uma noite, longa noite, que parecia não ter fim, absurdamente ao meu redor. O mundo lá fora seria uma noite sem fim? Saudade de meu pai, de seu riso aberto, de meu pai com sua roupa branca no meio de sua casa negra. Seu castelo, nosso castelo de coisas enevoadas, vestido de teias e musgos, decorado de tubo de ensaios ensebados, esquecidos nos cantos. Homem engraçado meu pai. Ele me deu longas e afiadas tesouras ao invés de mãos. Não esqueço, ele me admoestava sempre: "seus dedos cortantes quando se mexem cortam". E me deixou a dor, o peito dilacerado quando, caído no chão, me fitou com olhos duros, secos, sem o reflexo de mim. Nunca mais meu rosto pálido nele, nos olhos dele. Depois disso meu pai nunca mais falou comigo, nunca mais ensinou palavras cheias de letras e sons. Depois disso, nunca mais ele. Mas, vejo meu pai todas as vezes que abro os olhos.
Meu nome é Edward. Pelo menos era assim que ele me chamava com uma voz mansa, como se ao chamar meu nome, grudasse à palavra algo a mais. Algo que não podia mensurar. Algo que me fazia bem. Um calor no peito na hora, como se meu nome dito por ele fosse um manto cálido a me cobrir, a me proteger do tempo sibilante que deixava tudo branco lá fora. A me proteger de algo que ele nunca ousou descrever pra mim. E esse algo era gigante e morava além do castelo negro que me encobria. Seria o mundo todo um grande castelo negro? Passava manhãs, tardes e noites usando minhas mãos para lembrar meu pai. Scissorhands. Eu sozinho no assoalho frio achando que tudo o mais não passava de mim sozinho. Meu presente era eu só. Meu futuro era eu só. Quem era eu nesse mundo sozinho? Até que um dia ouvi uma outra voz, diferente a de meu pai, fina e melodiosa. E eu nem imaginava, na minha sã inocência, que aquela voz mudaria toda a minha vida.
Corte. Segue o filme.
Aquela cena descrita lá atrás, antes do corte abrupto, é uma leitura livre de uma das cenas iniciais de um longa-metragem inesquecível. Tim Burton nunca mais faria algo parecido. Vinte anos depois, a fábula do jovem frankenstein amado e depois açoitado por uma sociedade cruel mantém seu frescor e magia. É assim com os clássicos. Eles vencem os dias, as décadas, incólumes às erosões e ferrugem que o tempo costuma provocar. Sem perder sua modernidade e vigor. O filme, que marcou a vida de muita gente nos anos 90, está sendo homenageado em uma bela exposição nos Estados Unidos. De 40 ilustradores, aqueles mesmos que, como eu, se encantaram com uma equilibrada mistura de poesia e horror. Edward Mãos de Tesoura(1990), a fita, é uma obra prima deliciosa, dessas que grudam na parede da memória.
Pra quem não viu, ta aí o trailer do filme:
Edward foi criado em laboratório por um cientista solitário, vivido por um fantástico Vincent Price em fim de carreira, humanizado e cativante. Surpreendente. Diferente de todos os monstros e personagens tenebrosos que marcaram sua cinegrafia. O cientista queria um filho para compartilhar sua solidão, alguém para conversar. Não conseguiu viver para ver a obra cumprir seu fim. Orfão e assustado, Edward é encontrado por uma vendedora da Avon, dessas que se multiplicaram pelo mundo afora, cheias de simpatia, em meados do século XX. A partir daqui entra em contato com um outro mundo, o dos seres humanos inconstantes e desconfiados, nosso louco mundo. Aí vem a perda da inocência junto com a paixão e a incompreensão. E aí vem o resto do filme, que prefiro deixar em aberto, para que você que está lendo essa resenha se interesse, talvez, em assistí-lo.
Garanto, do alto de minha mais inteira humildade: ver ou rever Edward Scissorhands é sempre um prazer. Tá lá o cineasta das esquisitices, Tim Burton, fazendo sua obra mais pop e intensa. Tá lá Johnny Deep mostrando todo o talento que o faria um dos atores mais cools e bacanas de holywood. Tá lá Winona Ryder linda, radiante, como o par romântico de Edward, despertando fantasias nos homens. E a palpável química dos dois envolvendo todos os 24 quadros por segundo do filme. Tem a cenografia dark, o humor negro, o figurino punk do personagem principal e o colorido contrastante de uma provinciana cidade norte-americana com todos seus habitantes provincianos e tão frivolamente norte-americanos. Enfim, todos os elementos que fizeram com que esse bacanéssimo filme ganhasse, 20 anos depois, a homenagem de talentosos ilustradores que colorem as paredes da Gallery Nucleus, na Califórnia. Eu não fui a Nucleus, mas pesquei na internet algumas das obras, que trato, com muito carinho, de reproduzir aqui. Para ver mais, vá em: http://scissorhands20th.blogspot.com/
Tinha 79 anos. Parecia menos. Com a cara boa daquele avô de fábula de cinema que todos nós gostaríamos de ter. De riso fácil quase sempre e, aqui e ali, imbuído de austeridade. Só quando a situação obrigava. Pelo menos parecia assim nos momentos em que as câmeras de TV pescavam-no em movimentos eternamente serenos, quase em câmera lenta. Acho que idade e um tanto de sabedoria. Talvez isso explicasse. Mas, quem tinha assim tantas décadas nas costas, devia mesmo ser amigo, até mesmo íntimo, da sabedoria. Gostava dele, assim, acredito, como a maioria dos brasileiros tinha simpatia por aquele velhinho, mineirinho que só, que teve participação discreta no governo brasileiro. Companheiro do companheiro Lula, ex-presidente que bem poderia envelhecer do jeito companheiro daquele homem que foi-se que nem passarinho,rememorando Mário Quintana, passarinhando.
Faço nesse momento, comovido pela notícia que chegou a alguns instantes, um esforço de memória, um exercício carinhoso a respeito desse homem a partir da questão fria e crua: como é que eu gostaria de lembrar dele? Acho que não lembraria como o empresário, homem de sucesso nos negócios, condição que o levou ao alto cargo público assumido sem estardalhaço. E esses são tantos. Não lembraria como o homem que desconheço, aquele que a minha ignorância sobre seu passado esconde sob muitos e muitos véus. Que fique no mistério e esquecimento. Não lembraria como o cavaleiro solitário lutando quixotescamente, nos hiatos que o poder lhe dava, a favor da redução dos juros que imobilizava nossa economia. Era dever da ingrata função. Não lembraria do velho já meio esqualido, castigado pelo câncer, tantas e incontáveis vezes levado aos panos frios de uma maca de hospitais,dissecado pelas máquinas, ruminado por medicamentos. Memórias melhores hão sobre ele.
Acho que lembraria daquele velho de cara boa nos seu momentos de bom humor. Imenso bom humor congelado agora em minha memória. "O bom escoteiro ri até nas adversidades", disse ele cheio de dentes num programa de TV, um pouco depois de uma daquelas vezes que passou dias no hospital enganando o câncer e a morte. Velho e bom escoteiro. Lembraria dele demonstrando uma positividade e uma alegria inacreditável, imensurável, diante de sua frágil condição de saúde. Lembro dele herói de todos nós nessa mesma guerra santa contra o câncer. Vontade imperturbável e exemplar de seguir em frente, se desviando dos males como se levitando estivesse. Nosso velho ninja. Lembraria dele cantando o hino de seu clube de futebol naquela mesma entrevista na TV citada nesse parágrafo, o desconhecido Nacional de Muriaé, e socando o ar com sua mão ao final da música como um torcedor cheio de vitalidade. Como um menino. Lembraria dele como um menino.
José Alencar morreu, menino, nessa tarde do dia 29 de março de 2011. O drible na morte dessa vez não deu certo. Almas boas deixam saudade. Com saudades já estou.
“Mulher, dance comigo esta noite”. O convite feito nos primeiros segundos da faixa que abre Olindance(2011), segundo CD do coletivo pernambucano Academia da Berlinda, é um ultimato. Mesmo aqueles que não têm samba no pé dificilmente vão resistir a metralhadora irresistível de ritmos que vem na seqüência. Sete malucos de Olinda investem pesado, sem dó nem piedade, na mistura de sons afro-latinos, como a cumbia, a guitarrada paraense, o bugaloo colombiano, o côco, o frevo, a rumba, e dão algumas bebericadas no rock, para produzir um álbum buliçoso, que cativa pela luxúria e pluralidade. É musica para bailinhos, bailes e bailões. Para quem nitidamente assume essa nossa apaixonada alma latina, irremediavelmente viciada em alegria.
Ouça Praia do L:
Olindance é fruto de um apanhado musical centrado na América abaixo da linha do equador. São ritmos que naturalmente provocam calor e que, devidamente misturados por artistas antenados e contemporâneos, ganham novo espectro, nova pulsação. Esses caras fazem parte de bandas que extrapolaram as fronteiras de Pernambuco, a terra natal, como Eddie, Orquestra Contemporânea de Olinda e Mundo Livre S.A. O combo só tem figuras de respeito e responsa. Sente só: Alexandre Urêa(voz, timbales), Tiné(voz,pandeiro, maraca), Yuri Rabid(baixo e voz), Gabriel Melo(guitarra), Hugo Gila(microKorg), Irandê César(bateria e percussão) e Tom Rocha(percussão e pateria) E o que se sente é uma entrega natural dessa galerada às sonoridades latinas, sem qualquer pecha acadêmica, longe de didatismo, do resgate cru e tradicional daquelas ricas musicalidades.
E é essa veia popular, essência de todos os ritmos latinos colocados na roda e mantida aqui com toda sua soberania, o que mais contagia no segundo álbum do Academia da Berlinda. A começar pela adrenalinada “Bem Melhor”, com suas congas, guitarra fervilhante e teclado minimalista escancarando com urgência as portas da pista de dança. E elas não se fecham em momento algum do CD. Pronto, salão cheio, pés teimosos e insubmissos, melhor mesmo é se render rogado à turbulência de canções como a manhosa “Lua”, essa cumbia casada fervorosamente com o carimbó, mas que se permite uma escapadela com um rock santaniano, e as deliciosas “Lágrimas”, uma das mais radiofônicas do disco, e “Filhinho”, toda provocante e lúdica.
Mesmo as composições com voltagem um pouco mais baixa levam você ao remelexo. Exemplo de “Gringa”, canção com forte influência do côco, ritmo nordestino muito bem defendido no CD, e que conta com a participação especial do impagável Peida das Olinda, folclórico guia turístico das bandas de lá. E também da cadenciada “E Então”, assim meio bolerega(um tanto de bolero um tanto de Alípio Martins), uma bela canção romântica. Essa ainda pra dançar agarradinho. De preferência bem agarradinho. E de “O Gole”, exemplar clássico dessa nova música pernambucana influenciada pelo romantismo e pelo brega. Nessas duas vemos o lustre moderno das composições, melhor notado nas instrumentais "Berliman"(repare no teclado tecno e pesado no início da música), com toques de surf music, na encantada “Praia do L”, uma das melhores do CD, e no sambinha de branco “Primeiro Plano”.
E tem ainda, para finalizar essa encardida resenha, as letras. “Cumbia da Praia” e seu ritmo caliente (perdão, não consegui fugir do lugar comum) revela outra característica popular do disco, a poesia enraizada no dia a dia daquele que se apaixona, que pega ônibus lotado, que tem tesão e não excitamento. O cara escancara: “Quando ela chega lá na areia/Bota logo a canga pra deitar/Pede pr’eu passar bronzeador/eu fico sem poder me levantar”. Vai me dizer que você não passou por isso um dia? Esse descaramento, ou, melhor traduziria, discurso direto, está presente também em outras músicas, como na irônica “Você me Humilhou”, que, em tom de desabafo, critica os interesseiros: “Desde pequeno fui humilhado/quando eu chegava nas gatinhas/não era considerado/só porque eu era magrinho, cara de marginal /agora que eu estou na mídia, sou um cara legal”. Papo reto de um disco direto e incisivamente dançante. Essa é a proposta de Olindance, do Academia da Berlinda. Seja pop. Entregue-se.
Cotação: 4
Bote pra ferver:
http://www.mediafire.com/?8qjg5cin13tehv1
Veja "Fui Humilhado", gravado diretor de um show da banda:
Este blog é uma manifestação de amor à música. Não tem caráter comercial, mas apenas o de compartilhar um gosto pessoal por grupos, bandas e artistas de todo o mundo. A idéia não é detonar a indústria fonográfica, como alguns blogueiros acreditam que possam fazer ao postar discos. Sugiro que esse blog sirva como mera pesquisa e, se gostar dos trabalhos comentados, procure comprar. É um mimo que você faz ao artista.
As cores da festa
Fantasiaram o Centro Cultural Casa de Taipa para a sua festa de aniversário de um ano. Tanto verde e amarelo tornaram nossa paixão pela cultura ainda mais vibrante.
Verão
As pranchas apontam o caminho do sol. Alegria refletida na areia, Verão pra não mais esquecer. Natal, dezembro de 2011.
Rio na boa
Rio da vida, que não ri de mim. Rio porque sei que assim eu sei que vivo melhor. Porque tudo o mais se ilumina em minha volta. Rio pra te fazer feliz. Catingueira - Sobradinho - DF - Brasil. Outubro de 2011
Lavrado iluminado
Um arco-iris no meio do lavrado e um fim de tarde banhado de luz. As vezes, a visão do paraíso está mais perto do que imaginamos. Mucajaí-RR. Agosto de 2011.
Missa do Vaqueiro
O vaqueiro do sertão nordestino, seco e encouraçado, carrega uma fé ardente como o sol que o incandeia. Exemplar de bravura que o Brasil precisa conhecer melhor. Suas missas em cidades do interior são rituais a parte. Meu amigo Flávio Aquino clicou esse momento mágico em Piranhas(AL), numa de suas muitas viagem Nordeste profundo adentro. Roubei essa de seu álbum no Facebook.