O nome já traduz um pouco a proposta. Mundialmente anônimo – O Magnético Sangramento da Existência(2010). Mimetismo e viagens, mixagem e experimentação. Ele já está acostumado a isso e cria seu som efusivo a partir de explosivas e suingadas referências. Hip hop, dub, Jorge Ben, Chico Science e Nação Zumbi, quase tudo música de negro. Da melhor e mais inspirada. Lúcio Maia, o guitarrista virtuoso do Nação, homem por trás do projeto Maquinado acaba de parir um novo disco, o segundo, depois de O Homem Binário (2007). O título é aquele viajandão lá de cima e o resultado, bem... quem tem ouvidos que escute. E se não há surpresas, há encantamento e uma coerência monstruosa.
Quem conhece Lúcio Maia, cabeça pensante e ativa do seminal Nação Zumbi, e do seu primeiro projeto solo, sabe que o cara é impulsivo e irrequieto. Se em O Homem Binário, ele desenvolveu potência criativa, mixando suas referências musicais em um disco mais cartesiano, na obra solo seguinte, radicalizou. Está mais experimental e cosmopolita. Daí, talvez, o mundialmente anônimo que aparece na capa do CD. É anônimo porque junto cacos da música global, cacos de sonoridades que fizeram e fazem sua cabeça. É também anônimo porque transparece o sentimento do mundo, a revolta com o caos ético, a violência e com o desrespeito acelerado ao planeta, nas linhas e entrelinhas das letras. Ideologia, Maia quer uma para viver. E ele reivindica isso num disco orgânico e difícil.
Não vai ser de cara que você vai gostar de Mundialmente Anônimo. Já na primeira faixa, Lúcio Maia demonstra que não vai oferecer feijão com arroz, nem que está muito disposto a fazer algo mais palatável. "Zumbi", de Jorge Ben, ganha uma versão torta, incandescente. Uma citação a Clara Crocodilo, personagem criado por Arrigo barnabé e que redundou num dos discos brasileiros mais conceituais e revolucionários da década de 80 do século passado, abre a sonzeira. Moderno e roqueiro, Maia se ampara em sua guitarra virulenta para dar peso a um dos clássicos de Jorge. A percussão e a bateria eletrônica, também densas, juntam-se ao carnaval cibernético proposto pelo pernambucano.
A carga sonora sem fronteiras produzida em "Zumbi" estão presentes também na discursiva “Provando a Sanidade”, com percussão e guitarra, sempre precisas, no talo. Ao fundo, Maia destila suas impressões sobre o mundo e sobre o homem, pobre de nós, no meio do tiroteio provocado pela nova ordem econômica. A tradução do louco mundo de hoje é feita também, dessa vez sem palavras, na interessante e emblemática "SP". Entre vociferações vocais inaudíveis e a palavra São Paulo, modificada por computadores, o músico descarrega barulhos de sirenes, de buzinas numa profusão experimental que mistura samba, hip hop e outros ritmos. A guitarra mais nervosa que nunca se sobressai nesse instrumental de primeira.
Tirando o pé do acelerador, Lúcio Maia, oferece ainda ao ouvinte, como pausa necessária, um som, digamos, mais normal. Na versão, longe da fidelidade, de "Super Homem Plus", do parceiro de mangue beat Mundo Livre S.A, o músico cadencia tambores, metais e guitarras, para dar uma sensualidade inesperada a uma das melhores e mais ácida música criada por Fred 04.A mediana “Girando ao Sol” e a instrumental “Recado ao Pio, extensivo ao Lucas”, reverbs e guitarras languidas são bases para viagens hipnóticas. O toque latino, com cordas que lembram o grande Carlos Santana, da pop “Pode Dormir”, e o rap chatinho “Tropeços Tropicais”, cantada por Lurdes da Luz, do Mamelo Sound System, destoam um pouco do projeto como um todo. Mas, aí, você já está rendido a arte maior de Maia, esses grande arquiteto da música moderna. Mestre da fusão rítmica, esse carinha fez de Mundialmente Anônimo, um disco de responsa.
Existe um gênero musical que marcou os anos 90 do século passado ao mergulhar consubstancialmente tristeza em um mar de eletrônica e estranheza. Sonoridade depressiva contraposta a grooves e batidas que produziam doce contraste e contundência. A proposta partiu do coletivo Massive Attack, um grupo da cidade inglesa de Bristol, e foi batizada na época de trip hop. Desde o primeiro álbum, Blue Line(1991), o grupo lançou apenas cinco trabalhos, todos cercados de grande expectativa. O último acaba de sair do forno, Heligoland(2010), um trabalho de fôlego que reforça a fidelidade do duo Robert “3D” Del Naja e Grant “Daddy G” Marshall, sobreviventes da formação original, a música viajandona que ajudaram a criar.
Não existem grandes novidades ou traços evolutivos em Heligoland, que chegou sete anos depois do bom 100th Window (2003). E isso, que fique bem claro, não é depreciativo. Quem conhece o Massive Attack sabe que a maçaroca climática que produzem é por si um belo presente para ouvintes de bom gosto. É uma fórmula complexa que, se bem repetida, já vale o dinheiro gasto no CD original. No último disco do grupo, os arranjos super bem elaborados, o alto nível da produção e a inspiração afiada de Del Naja e Daddy G Marshall, que se cercaram de convidados de estirpe nobre, garantem uma boa viagem aos fãs e a sobrevida de um gênero musical cultuado no passado, mas que veio perdendo espaço nesta década.
E a viagem começa muito bem com "Pray of Rain" que resgata toda a força do trip hop, da aspereza soturna da atmosfera que a melodia cria ao uso estudado dos barulhinhos eletrônicos. Acompanhado de uma bateria tribal e um baixo bem marcado, o convidado Tunde Adebimpe, da ótima banda Tv on the Radio, empresta sua voz para interpretar uma melodia que começa melancólica e ganha pinceladas mais alegres lá na frente, num delicado crescendo. É Massive Attack como antigamente. Mesmo espírito de “Paradise Circus”, marcada por palminhas, uma programação eletrônica minimalista e a voz suave, quase infantil de Hope Sandoval. Da mesma lavra da bela “Babel”, com uma Martina Topley-Bird, pioneira do trip hop, esvaindo-se em sensualidade na batida de um drum’n’bass viajandão em composição de arrepiar.
O Massive Attack explora com sobras o terreno do trip hop de raiz em quase todo o álbum. E belisca referências do groove negrão, da black music, que só ajudam a tornar as músicas ainda mais sedutoras e chapantes. Caso de “Splitting the Atom”, uma das mais legais desse Heligoland, com o jamaicano Horace Andy mesclando sua voz a batidas eletrônicas hipnotizantes em uma levada meio soul. Del Naja e Daddy G Marshall buscam ainda inspiração em outras praias, como na interessante “Girl I Love You”, na qual é possível perceber ecos de música indiana. No mais, encaram suas viagens de cara lavada e até com alguma leveza, como na bem arranjada “Psiche”, com um início arrebatador e a ótima Martina Topley-Bird mostrando mais uma vez sua afinada arte de encantar.
Heligoland só não é cem por cento porque há algumas viagens na maionese. A maior delas é a experimental “Flat of the Blady”, que destoa de todo o resto do álbum com seu opressor estranhamento e um Guy Garvey, da bacanuda banda Elbow, cantando desleixadamente e tornando a canção ainda mais incômoda aos ouvidos. Del Naja assume os vocais na tensa e arrastadíssima “Rush Minute”, outra decepção, que se perde na arrogância dark de sua construção. E por pouco Damon Albarn, do Blur e Gorillaz, fora do tom, não estraga a inspirada e contundente “Saturday Come Slow”. Nada disso, porém, tira o brilho dessa incursão musical profundeza adentro desses ingleses bons de bola. Valeu a espera de sete anos: Heligoland está a altura de seus criadores e a gente tem mais é que agradecer.
Cotação: 4
Entre na roda:
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Escute "Pray for Rain":
Vale a pena ouvir também "Psyche":
Assista a filme inspirado em "Saturday Come Slow":
Tem hora que a gente se sente assim com uma volumosa preguiça, uma vontade irregovável de se afundar em uma poltrona, a ela querendo se incorporar, como parte inseparável de sua malha de tecido. Assim mesmo, quieto, mudo, sem querer mexer uma palha. Como se algo, contra a nossa vontade, nos fizesse viver em câmera lenta, feito reprise de um gol, deixando que tudo o mais viesse solenemente se unir aquele inquebrantável reino de zenitude. O último do Beach House, Teen Dream(Subpop, 2010) me deixou desse jeito sem vergonha, meio aluado, confiscado pela serenidade de um som de baixa rotação, low fi clássico, amparado por melodias bem construídas e bom instrumental.
De Baltimore, nos EUA, a dupla formada por Alex Scally(guitarra) e Victoria Legrand(vocal e teclado) vive seus dias de glória e bajulação no universo paralelo onde mora a volúvel e radical tribo dos indies. O terceiro disco, lançado em janeiro, caiu de cheio também no gosto da crítica especializada, que dispensou quilométricos elogios ao dream pop do casal. E Teen Dream é sem dúvida o melhor e mais bem cuidado álbum do duo. É uma evolução natural, concreta e, claro, muito bem vinda, dos trabalhos anteriores, Beach House(2006) e o lindo Devotion, um dos discos marcantes de 2008 e que se tornou a chave mágica que abriu um mundo de possibilidades e conquistas para aqueles dois norte-americanos.
Apadrinhados pelo selo Subpop, cujos executivos costumam fazer sensíveis escolhas, e maquinados pela produção inteligente de Chris Coady, o Beach House aninhou-se em uma igreja para gravar seu som em um território perdido entre o onírico e o ensolarado. Alex e Victoria produziram dessa vez um som mais encorpado, sem perder o encanto e a ternura praticados com devoção nos trabalhos anteriores. Os fãs não hão de reclamar. Afinal, estão lá no mesmo lugar, ainda que mais comedidos, o teclado monolítico, meio oitentista da vocalista da dupla, presente com tanta intensidade em pequenas pérolas como “Walk in the Park”, decididamente uma das mais legais do álbum, e a cool “Lover of Mine”, e a guitarra lúbrica da cara metade, provocativa na correta “Silver Soul” e slide na medida certa na mediana “Norway”.
O que faz de Teen Dream bacana é a leveza carregada de seriedade que os dois impõem ao seu indie melódico. São melodias com letras românticas e imantadas de um poder quase mântrico. E aqui não se leia pesar ou angústia ou estupefaciência. Talvez torpor, mas um efeito prazeroso provocado pelas boas canções. É possível visualizar um padrão nesse trabalho que leva a essa sensação. A percussão e teclados são bases enxutas, muitas vezes repetitivas e lineares, para a guitarra mais intransigente de Alex Scally e a voz equilibrada de Victoria Legrand, trabalhada entre momentos explícitos de suavidade e outros de certo desespero. Tudo devidamente equacionado por arranjos que incorporam instrumentos e pesos antes estranhos ao trabalho do duo.
É dessa forma que o ouvinte é pego pela cabeça na terna “Used to Be”, na qual a melodia marcante é acompanhada de início por um pianinho confortável que volta num breque esperto depois de um refrão onde o crescendo do instrumental hipnotiza. Ou ainda em “Better Times”, que explora mudanças delicadas de andamento com uma guitarra que se mostra sensual, na maior parte da música, e viril, em raro instante. Em todas, contudo, prevalece uma ternura, aquela suavidade, muito bem traduzida na boa “Take Care”, que fecha bem o álbum, mantendo toda a aura low fi. Um clima que me fez ficar assim no remanso de minha poltrona deixando se levar, como tábua na maré, pela suavidade da proposta musical do Beach House. Um disco para ouvir na calma das horas.
A pernambucaninha de coração, de rosto delicado, jeito de menina desamparada, é um furacão. Nasceu na Bahia sim senhor, mas carrega nos ombros e dentro da cabeça as multiinfluências de uma parabólica Recife onde desenvolveu a arte de cantar e compor. E todo esse fogo e uma vontade intempestiva de fazer diferente ela vomitou de uma tacada só no instigante trabalho de estréia, Eu Menti pra Você(2010). Moça cheia de atitude, Karina Buhr, se apresenta como uma deliciosa e consistente novidade no interessante e pouco conhecido mercado de música alternativa. “Minha fúria odiosa já está na agulha”, canta a danada em “Esperança Cansa”. Fúria bem vinda. Do bem. Na agulha, uma revelação pronta e acabada para ser descoberta e digerida sem reservas.
Karina Buhr já tem algum tempo de estrada. Passou por maracatus, sorvendo influências e batuques, participou de CDs e fez shows com grande parte dos nomes mais marcantes da cena de Pernambuco, como Nacão Zumbi, Eddie, DJ Dolores, Mundo Livre e companhia ilimitada. Ganhou, contudo, mais visibilidade quando se reuniu a outras meninas endiabradas botando pra ferver e destilando cultura no radical Comadre Florzinha, banda moleque que revisitava e modernizava o cancioneiro folclórico nordestino. Foi pra São Paulo e deixou o santo baixar, cantando e atuando, com Zé Celso Martinez, dono do terreiro no seminal Teatro Oficina. Tudo em tão pouco tempo. De tantos volteios Brasil e mundo afora (esteve na Europa em várias apresentações musicais), de bicada em bicada na nossa arte de chão, a moça acabou criando seu tempero próprio e que pode ser sentido em Eu Menti pra Você.
O que se pode perceber no disco é uma Karina Buhr aberta pro mundo, fazendo uma música viril, mais cheia de força e personalidade do que aquilo se vê na maioria do rock machudo feito no Brasil e que chega até nós pelas grandes gravadoras. Porque no disco de estréia da pernambucana há um misto de candura e fúria, aquela de que ela falou na música que citei no início da resenha, que se complementam com harmonia ao discurso direto e pontiagudo das letras que compõe. No rock brando com suspiros de improviso instrumental, que dá nome ao trabalho, ela já de cara provoca o ouvinte: "Eu sou uma pessoa má. Eu menti pra você. Você não podia esperar ouvir outra mentira de mim, que pena eu não sou o que você quer de mim.
A faquinha da cantora corta amolada a carne tanto no verbo quanto na melodia. Em "Avião Aeroporto", um electo rock com guitarra mântrica, canta e fala em harmonia estrangeira a nossos ouvidos, moderna sem ser empertigada, propondo uma viagem concretista, seca: "Pelo avesso, vamos pro fundo. Arame farpado na cabeça, vento, catavento, vulcão, pâncreas, fígado, coração". A fúria se faz sentir ainda na ótima “Nassira e Najaf”, onde fala de uma guerra sem fim em Bagdá ou sei lá que vemos diariamente na televisão, cuspindo fogo no refrão assombroso: “Dorme logo antes que você morra”. Intensa como uma espécie de PJ Harvey dos tempos do vociferante Dry.
Mas, não é difícil que tenha em Karina Buhr um pouco de PJ Harvey ou também da experimental Laurie Anderson. Há semelhanças com a sonoridade cáustica desta última no diálogo claríssimo com a modernidade alinhavado em "Telekphonen", cantada em alemão. Há boas lembranças de um som eterno como o da banda paulistana Patife Band, na alucinada “Soldat”. Enfim, há ecos do mundo todo na moça. E para fazê-los ainda mais audíveis, Buhr conta com o apoio de músicos de primeira que ajudam a dar asas ao vanguardismo e as suas rupturas poéticas. Nomes como Guizado (e seu incrível trompete), Edgard Scandurra e Catatau, comandando as guitarras, Bruno Buarque(bateria), Mau (baixo), Dustan Gallas (teclado, piano), Otávio Ortega (bases eletrônicas), Marcelo Jeneci (acordeon e piano), sem falar na canja do percurssionista cubano Pedro Bandera e da atriz alemã Juliane Elting.
Essa intrépida trupe funciona também que é uma beleza no lado mais doce de Eu Menti pra Você. O rock azeitado e cheio de idéias da artista dá espaço para baladas agridoces que reforçam uma convincente veia poética. É o caso da elíptica "O Pé", uma quase ciranda em que sobressai mais uma vez o lirismo da letra: “O céu embaixo das nuvens, a terra por baixo do asfalto, o centro da terra que puxa a gente, a gente pula contra a vontade do chão”. Na mesma linha, salta aos sentidos a ainda mais lenta e linda "Mira Ira", na qual repete dengosa e sedutora: “Não miro a ira, não miro mas te acerto no peito, quando mudo meu amor de endereço”. E surpreende ainda quando larga de mão da poesia e parte para a informalidade, reta e ligeira, no ska reggae “Plástico Bolha”, em que decreta que não está a fim de corre corre: "Eu quero passar a tarde estourando plástico bolha". De um jeito ou de outro, a pernambucaninha fez um álbum bacanudo, honesto e que tem tudo para marcar o ano de 2010. Gostei muito e recomendo de peito aberto, pedindo desculpa, por fim, pelo longo, longuíssimo texto.
Delphic é uma banda esperta. Chegou cheia de gás, deixando bem claro que não brinca em serviço e está disposta a se firmar no animado segmento electro rock. Os garotos de Manchester estréiam com um CD, Acolyte(2010), que mexeu positivamente com a crítica neste começo de ano. A banda ficou recentemente em terceiro lugar numa lista do sistema de comunicação britânico BBC que arrisca nomes que podem marcar o cenário musical neste fim de década. Tanta badalação, é claro, deixa qualquer um com o pé atrás. Afinal, a mídia adora superlativizar o trabalho de alguns eleitos. O grupo em questão não é essa maravilha toda, mas até que teve competência para fazer um álbum redondo e com algumas músicas realmente pegajosas e bem produzidas.
Delphic é James Cook (vocal), Matt Cocksedge (guitarra), Dan Theman (drums) e Richard Boardman (programação eletrônica). O quarteto bebeu da fonte revitalizadora de grupos como o saudoso New Order e o superestimado, na minha opinião, Klaxons para produzir um electro rock sem grandes vôos mas com carisma, além de clips bem produzidos que fazem a alegria dos videomaníacos. Na verdade, essa galera ampara-se na utilização precisa de sintetizadores, em maior profusão, e guitarras para criar aquele clima dançante e com tons modernos que marcou os anos 90 da década passada. É, no fundo, mais electro que rock. “This Momentary”, que tem um vídeo rodando em alta rotação na internet, é um bom exemplo dessa pegajosa pegada eletrônica. O sintetizador se sobrepõe a uma guitarra climática numa canção melodicamente bacana, com vocoder e vozes marcando passo forte, seduzindo o ouvinte desavisado.
Esse lado mais electro se faz presente sintomaticamente em dois momentos bem diferentes no disco, que mostram um grupo experimentando suas ondas particulares. Se em “Red Lights” assume uma postura mais dance total, com sonoridade deja vu e feita desavergonhadamente para as pistas – “Eu não consigo parar as luzes vermelhas”, dizem, numa metáfora ao “verme” que se instala naqueles alucinados por um remelexo – na longa(8 minutos!) e quase instrumental “Acolyte”, revela engenhosidade e um talento promissor para compor. Nessa última, as vozes dobradas entram como mais um instrumento numa música e a tecladeira cheia de ginga invoca inapelavelmente os deuses da dança. Tensão que se repete, ainda mais elevada, na agitada “Halcyon”, uma das melhores e mais legais do álbum.
As guitarras, a porção rock, diz alô de forma mais explícita e estanque em composições interessantes. Uma delas é “Doubt”, que, aliás, com seu refrão pegador, foi a primeira música de trabalho de Acolyte. Pulsante e bem acabada, como todo o disco, diga-se de passagem, o petardo tem realmente alma rocker e um bom equilíbrio entre cordas e sintetizador, que, afinal, caracteriza o gênero musical que a banda defende. Os demônios do rock and roll passeiam ainda em “Clarion Call”, que começa calma e aos poucos vai explorando efeitos eletrônicos, como de um telefone ocupado, num amálgama crescente e eficiente de sons, e na boa “Counterpoint”, num raro momento em que a bateria e o vocal expõem mais virilidade.
A excelente produção do álbum não esconde porém uma certa frouxidão musical, sentida nas entrelinhas de músicas dispensáveis como “Submission”, uma balada sem graça e pouco inspirada, ou ainda em “Ephemera”, com seus dois minutos de clima estranho e robótico, composição que é exatamente o que seu nome diz, risível. Essas derrapadas, somadas a sensação de que há um certo maniqueísmo e cerebralismo no engenho dos arranjos, é que me fazem ficar com a pulga atrás da orelha. Posso estar sendo com isso, eu mesmo, estupidamente cerebral. Se livrando desse ranço e olhando para Acolyte de forma mais serena e menos dura, dá para dizer, contudo, que é um disco que merece uma escutada. O grupo tem, com certeza, ziriguidum para fazer os viciados nas “luzes vermelhas” se esbaldarem.
Sherlock Holmes é uma figurinha fácil do cinema. Dessas repetidas. Para garantir interesse das platéias pelo esquemático personagem, é necessário tentar um bom diferencial, ter uma boa carta na manga. O britânico Guy Ritchie, mais conhecido como o ex-marido de Madonna, autor da nova versão em cartaz nos cinemas, Sherlock Holmes(2009), tinha uma proposta mais radical e pelo menos dois bons trunfos: os atores Robert Downey Jr., redivivo depois do sucesso de O Homem de Ferro(2008), e o sex simbol Jude Law nos papéis principais do longa-metragem. Bem amparado pelo elenco, o cineasta pode ficar livre para exercitar seus maneirismos, com alguns dispensáveis excessos, e dar corda a grandiosidade e tom espetaculoso que a história contada exigia.
O filme de Ritchie se passa na Inglaterra vitoriana, em fins do século XIX, ambientada numa Londres cinza e em pleno desenvolvimento industrial. Essa cidade é uma das personagens da história que encontra Sherlock Holmes(Downey Jr.) e o fiel escudeiro Watson(Jude Law) devidamente entrosados. As quase duas horas da fita se concentra em um dos casos do detetive criado pelo escocês Sir Arthur Conan Doyle, no qual se misturam suspense e boas doses de magia negra. Os dois investigadores se esfalfam para desvendar o mistério que se esconde por trás da assustadora ressurreição de lorde Blackwood (um caricatural Mark Strong), líder de uma seita secreta, que pretende dominar o mundo depois de subjugar o país britânico.
O que é notável e digno de aplauso no longa-metragem do diretor britânico é a forma como ele nos apresenta um alucinado Sherlock. Não espere encontrar aquele detetive almofadinha e asséptico presente em obras como O Cão dos Baskervilles(1959), com Peter Cushing no papel principal, e o mais recente e risível Sherlock Holmes e o Caso das Meias de Seda(2004). O personagem em sua última aparição cinematográfica não poderia ser mais trash. Autoritário e compulsivo, o investigador, interpretado por um afiado Downey Jr., passa semanas enfurnado em um quarto de hotel barato testando teorias e fazendo experiências com moscas e componentes químicos. A aparência de Holmes é, durante todo o filme, invariavelmente suja, assim como a intolerância e um certo ar blasé são igualmente elementos fortes na caracterização do protagonista. O ator por trás da máscara empresta uma angústia e ansiedade inesperada ao tipo vivido por ele, o que só aumenta o desconforto daqueles que preferem o tradicional e frio jeitão britânico que marcou a clássica figura da literatura policial.
Watson é a antítese de Holmes. Jude Law se investe das virtudes e lugares comuns do quase submisso parceiro do investigador. Guy Ritchie chega a brincar com o espectador na primeira terça parte do filme, sugerindo um relacionamento homossexual entre os dois. As primeiras discussões dos dois parecem briga de amantes. A resistência de Sherlock ao namoro entre Holmes e Mary (Kelly Reilly) seria ciúmes ou apenas uma forma de se afastar de uma orgânica solidão, mantendo o amigo mais próximo? A brincadeira se desfaz quando entra em cena, para dar um tempero a mais na elétrica história, a engraçada e atlética Irene Adler, uma trapaceira vivida com correção por Raquel MacAdams. Law, um bom ator, vive seu personagem com brilho e acerto, num contraponto talentoso à efusividade cobrada pelo Sherlock imaginado por Ritchie e inspirado na HQ de Lionel Wigram.
O que aproxima os dois personagens, na verdade, além do amor pelo mistério, é mesmo a adrenalina. Sherlock Holmes é um filme de ação. Muita ação. O elemento investigação não é o forte dessa obra de Ritchie(o cara da foto). O famoso raciocínio lógico e dedução engenhosa, marca maior da criação imortal de Doyle, só aparece aqui mais delineado em momentos de puro exibicionismo do detetive, como quando ele descreve cruelmente, cara a cara, a personalidade da Mary de Watson. Ou de forma muito célere no final, quando explica os pontos mais acabrunhantes do caso que desvendou com sua genialidade. Essa opção pela correria vista no longa-metragem é uma maneira de ir pra galera. De alimentar o público com a carga de eletricidade que os estúdios hollywoodianos imprimem, como aditivo indispensável, em seus filmes. É a dinâmica de um mundo acelerado cada vez mais pelos meios eletrônicos como a televisão e a internet.
E ação, com estilo, é um dos maneirismos de Guy Ritchie. Nessas horas, o cineasta se sai muito bem e coloca o filme no nível de excelência de outros produtos bem acabados de Hollywood. Os traços estilosos das tomadas das lutas e tiroteios vistos em seus trabalhos anteriores, como os bacanas Jogos, Trapaças e Dois Canos Fumegantes(1998) e Snatch (2000) repetem-se aqui, com o auxílio, é claro, de efeitos mais impactantes. A cena da luta de Box de Holmes com um brutamontes num ringue fétido de Londres, com nauseantes câmeras lentas, é exemplar. As brigas se sucedem com constância no filme, o que, na verdade, cansa um pouco e abre espaço para alguns excessos visuais aos quais Ritchie está acostumado. É tudo muito espetacular na Londres movimentada e em franco crescimento representada com preciosismo no filme. Por isso, é bom ver com a fita com desprendimento e pronto para muita ação.
Vale assistir a fita menos pela história em si (o roteiro se perde em meio à suntuosidade das imagens e cenas de ação) e mais pela tentativa bem sucedida de Ritchie de surpreender o espectador com um detetive mais mundano, diferente daquele apresentado anteriormente, um tipo extremamente humano na fronteira que divide a genialidade da loucura. Pela precisão da interpretação de Downey Jr. e a ótima química com Law, reforçada pelos diálogos ácidos e inteligentes dos dois personagens. Pelas estudadas cenas de luta e por uma grande direção de arte(forte candidata ao Oscar desse ano), com uma Londres extravagante e figurinos marcantes. Ainda prefiro o Ritchie de início de carreira, nos dois filmes citados acima, mas, esse Holmes é diversão garantida, uma boa pedida para domingos modorrentos.
Uma feira musical colorida e divertida, onde de tudo tem um pouco. Tem ska, dub, jazz, blues, salsa, polca, bolero e outras cositas mais, tão amalgadas e finamente misturadas que é impossível resistir ao seu esperto groove. Os meninos do Sobrado 112 já haviam ameaçado fazer um bom disco com a estréia, emblematicamente chamado de Desmanche(2007 - Leia resenha aqui no blog), com essa salada sonora. O rascunho virou arte final em Isso Nunca me Aconteceu Hoje(Oi Música), lançado no ocaso de 2009. Aqui, os seis integrantes do grupo(todos na foto de João Salomão) criado no bairro carioca da Glória refinam a fórmula e encontram o ponto de equilíbrio desse substancioso angu onde a brasilidade, no final das contas, é o maior e melhor tempero.
A proposta da mistureba feita pelo Sobrado 112 é reforçada pelo próprio grupo. Eles gostam mesmo de fazer uso, e um bom uso, das influências rítmicas produzidas na Jamaica, Caribe, sul dos Estados Unidos, a retorcida música dos balcãs e, é claro, na terra mater. E é o talento brasileiro de dosar tantas referências com suíngue incomum que faz a diferença. Porque o batuque, o DNA do sangue negro que formatou a música genuinamente verde amarela, é que acaba orientando a folia da banda. É uma espécie de farra orgiástica, onde a efusividade das melodias, com mudanças bruscas de andamento, surpreende ao mesmo tempo que seduz. Esses loucos do Sobrado sabem mesmo se divertir, e, para gostar do álbum basta ter disposição para provar todos seus sabores.
E por falar em sabores, o “dia” de Isso Nunca me Aconteceu Hoje começa com um bom café, “preto do bom, para acordar”, como diz a letra pragmática e pueril da música de abertura. Os metais dão o tom e o brilho, característica detectada em todo o álbum, da canção que mistura sons caribenhos e ragga. O skacore come solto depois da introdução funkeada da bacana "Eu não Quero ter Razão", bom aperitivo para a catártica, na seqüência, "Duas de Cinco", onde a suruba do funk, reggae e polca fazem uma delirante festa. Na letra emaconhada desta última, as senhas esfumaçantes estão em todos os lugares. “Camarão”, “pilão” e “seda” fazem parte da encomenda pedida a um tal de Marco, intimado a trazer também “duas de cinco”, aproveitando que o cara está mesmo descendo o morro.
Mas, no segundo disco do Sobrado 112, não se apegue muito as letras idiossincráticas das composições. Elas são despretenciosas e dispensam a preocupação, presente de leve no primeiro álbum da galera, com a temática social. Tipo: relaxe e, simplesmente, sinta o groove. Elas são algumas vezes como espécies de elementos percussivos para a folia de ritmos proposta pela banda. Ouça, por exemplo, “Grajaú”. Nessa divertida música, a galera explora a rica sonoridade do português, aproveitando ainda a ludicidade das gírias, para contar a história de duas pessoas que passam um perrengue na periferia: “Eu e tu lá no Grajaú, sem tutu, tu para o buzú(tradução pra quem não sabe: ônibus)”. Tudo soa como um grande batuque. Ou seja, siga o ritmo.
Dessa forma, legal mesmo é se deliciar com o mix musical de petardos como a ótima “Amoroso”, onde o Sobrado, amparado num “riff” soberbo construído pelos metais chama pra dança. A fervura da latinidade, com direito a uma desbragada declamação em espanhol no final da canção, casa com perfeição à contagiante e elétrica polca. Ou no dub com pitadas de jazz de “Cabeça de Nego”. Ou até mesmo no elegante samba jazz de “Narcisa”. Enfim, deixe-se levar, aceitando que em nós, brasileiros, há mesmo essa condescendência rítmica que nos amamentou desde tenra idade. O Sobrado 112 assume essa tendência e faz de seu Isso Nunca me Aconteceu Hoje um trabalho digno. Mas ainda não definitivo. Se continuarem a progredir, como mostraram no último álbum, temos muito a ganhar.
Em tempo: parte dos louros desse bom disco pode ser creditado a BID, produtor que ajudou a construir, entre outros, Afrociberdelia, obra-prima de Chico Science e Nação Zumbi. O cabra é talentoso. Sobrado 112 é habitado pelos também talentosos Vitinho(violão, guitarra e voz), Leandro Joaquim(trompete,flugelhorn e voz), Claudio Fantinato(percussão), Pedro Dantas(baixo), Maurício Calmon(bateria) e Miguel Martins(guitarra e vocal).
Todas as vezes que ponho para escutar o som, me vem à cabeça imagens de uma era profunda, barroca, não feita de monstros e seres mágicos, mas de homens e mulheres brutalizados, corroídos pela ignorância e falta de perspectivas. Assim como num filme repetido em pleno século 21, nessa brincadeira sem graça de Deus, nos grotões de nosso sertão mais enraizado na penúria e castigado pela inclemência da natureza. Corações medievais submissos a poderes espirituais, que cria lendas, e aos mistérios de um mundo casto da tecnologia e da ciência que tudo clareia. O som de que falo é de uma banda cada vez mais ensimesmada em sua busca por um som radical, que desafia modismos e se aventura em sonoridades datadas. Bem vindo ao passado traduzido no folk impiedoso dos norte-americanos do Midlake e seu The Courage of Others (Bella Union Records, 2010).
Lembro bem de quando ouvi The Trials of Van Occupanther, o trabalho de 2006 do Midlake, forjado por seus cinco integrantes Tim Smith (vocal, teclado e guitarra), Paul Alexander (baixo e teclado), Eric Nichelson(teclado e guitarra), Eric Pulido (guitarra e backing vocal) e Mckenzie Smith(bateria). Toda aquela trama delicada tecida em cima de canções doces e inspiradas chamou minha atenção e a de muitos outros fãs de uma música mais orgânica, que valoriza principalmente a melodia. Herdeiros de Van Morrison, Nick Drake, Tim Buckley e afins, esses new hippies deram um passo a frente do mediano Bamnan and Silvercork(2004). A estréia abusou de um teclado modernoso que prejudicava a sinuosidade das composições. O trabalho seguinte, mais sereno, trouxe lindas músicas e o equilíbrio de arranjos que ao contrário do anterior faziam com que o alicerce melódico se revelasse em sua plenitude.
The Courage of Others é uma guinada na curta carreira da banda. Não se pode dizer que é um avanço. É uma mudança centrada na construção de uma música refinada, atmosférica, mergulhada intensamente numa sonoridade que remete aos tempos medievos. Algo que podia ser antevisto, de leve, no álbum anterior em músicas como a vigorosa “In this Camp”. Assim, flautas, o aumento da presença do coro, os violões dedilhados, o baixo e bateria coesos e comportados, e, acima de tudo, as melodias injetadas com boas doses de um sentimento chamado melancolia, passam aquela impressão. Um disco invernal, no qual as melodias convidam o bucolismo e a espirituosidade para uma contradança. E o ouvinte torna-se invariavelmente, pelo menos no meu caso, um parceiro dedicado nessa coreografia.
"The Acts of Man", primeira música do álbum, dá a senha do que vem a seguir. O folk com sotaque barroco, clássico até a medula, faz lembrar trovadores medievais. “Se tudo o que cresce começa a se desmanchar, começa a enfraquecer, deixe-me entrar, deixe-me entrar”, canta o afinado vocalista Tim Smith, prenunciando a ode à melancolia. Tudo soa meio diáfano, como um fundo musical para o encontro de centauros e fadas no noturno da floresta. Repare no solo de flauta e tente não se reportar aquela longínqua era. Nem o contraponto da guitarra levemente distorcida com o violão acústico na linda "Winter Days" consegue afastar a sensação de que estamos diante de um som com linhas melódicas fincadas no passado. Cheira a terra, dragões e espadas, como na gótica "In the Ground", talvez a mais emblematicamente hard folk de todas.
A opção dos caras do Midlake pelo folk classudo perpassa encantatoriamente todo este The Courage of Others. É um trabalho coeso, quase conceitual, com suas canções lentas e belas que parecem ter saído de um baú com especiarias de aspecto idêntico mas com sabores próprios e diferenciados. É preciso ouvir o disco com paciência, sentir a sua tessitura, a leveza dos arranjos e o instrumental competente para descobrir a riqueza escondida nas finas melodias. Não desista fácil. Tente concentrar-se na seqüência sublime de "Bring Down", a mais tocante do CD, "The Horn" e "The Courage of Others". Ouça pelo menos três vezes com um fone de ouvido. Feche os olhos e viaje na beleza dessa música passional e inspirada como o inverno sereno que nos faz meditar casmurros. Um grande disco no início de um ano que, musicalmente, parece promissor. Que os deuses corroborem esse sentimento.
Cotação: 5
Vá de folk:
http://uploaded.to/file/snk6k9
Escute "Winter Days":
Para ouvir Bamnan and Silvercork:
http://www.mediafire.com/?mzdndm2ejt4
Para ouvir The Trials of Van Occupanther:
http://www.megaupload.com/?d=XFFJCZ07
Ouça “The Courage of Others” em vídeo independente que usou trecho de um filme japonês sobre samurais:
Ontem chorei copiosamente no cinema. Não tenho travos para isso. Acredito que é porque deságuo lá no escuro, escondido dos olhares alheios, aquilo que não tenho coragem de desaguar diante de um olhar prescrutador, ainda que amigo. Assumo minha dificuldade estranguladora para o choro, uma inapetência que me persegue e me domina. É um fato e contra ele não consigo lutar, apesar dos poucos e destrambelhados esforços. A sala de cinema me dá essa possibilidade, uma via transversa, generosa, que abre em mim as comportas das lágrimas. E não precisa ser nenhum grande filme sedado de emoção, basta que tenha uma chave que destranque alguma emoção perdida, que encontre algum vão na minha alma e lá se acomode. Foi assim na noite da terça-feira assistindo Sempre ao seu Lado (Hachiko: A Dog's Story, 2009, EUA).
Esse filme leva a assinatura de um sueco, Lasse Hallström, de quem já havia visto Minha Vida de Cachorro, que garantiu sua passagem para Hollywood, e Chocolate, um longa-metragem com algumas boas idéias e uma má realização. O primeiro marcou minha memória pela extrema poesia e delicadeza com que o diretor conta a história de um menino que vai morar com os tios em uma pequena cidade do interior depois que a mãe morre. Em Sempre ao seu Lado, Hallström acerta novamente a mão e se utiliza de uma história real para trabalhar sentimentos comuns com uma sutileza e, principalmente, serenidade que termina por conquistar o público. Foi a despretensão e a poesia bruta da história de Hachiko que me pegou de cheio e me levou a nocaute.
Hachiko é um akita, raça de cachorro de origem japonesa que servia aos shoguns, os senhores feudais em tempos imemoriais. Seu nome de batismo era Hachi, ou na tradução para o português, oito, provavelmente o oitavo de uma ninhada, como deduziu um amigo orientalde Parker, personagem vivido por Richard Gere. O filhote Hachi foi enviado para uma cidade interiorana dos Estados Unidos, e, por um acidente – ou capricho do destino, possibilidade aventada pela trama – perde-se numa estação de trem. Dá de cara com Parker que o leva para casa e resolve cuidar dele até que o dono apareça, o que não acontece. Adotado, o animal cresce alimentado pelo carinho e amizade do professor universitário, e de sua família, que o encontrou. Essa amizade se perpetua até ineditamente depois da morte de Parker, por quem o cão passa a esperar todo os santos dias em frente a estação de trem.
A história de Hachiko, que aconteceu realmente no Japão, é assim simples, objetiva. O filme transcorre lento e gradual em cima de um cotidiano sem surpresas de uma família classe média igual a milhares de outras. O roteiro é coberto de veleidades, de momentos comuns, desses que recheiam o relacionamento quase maternal de quem cuida e ama bichos de estimação. É a tentativa de fazer com que o cão pegue uma bola de borracha, o companheirismo do animal naquelas horas mais bestas, enfim, o mais do mesmo. Mas, há na forma como Hallström leva o filme, uma seriedade e despretensão que ajuda o filme a fugir da pieguice. O cineasta narra a amizade sincera de um cão e seu dono, marcada pela surpreendente fidelidade, com a vantagem ainda de ter um akita expressivo dividindo o papel principal com um apenas correto Gehre.
Para laçar ainda mais o espectador, há nas entrelinhas do filme, uma espiritualidade exposta em momentos estanques do longa-metragem. “Você achou o cão ou foi o cão que lhe achou?”, pergunta em determinado momento o colega oriental(Cary-Hiroyuki Tagawa) de Parker. É como se entre os dois houvesse um laço programado pelo destino, um diálogo mudo e terno que emociona. A parte final da fita, quase sem diálogos, na qual a fidelidade imperiosa do cachorro se mostra por inteiro, é de cortar os pulsos. Difícil, até para os corações de pedra, não chorar. Ponto para a escolha do elenco, que tem uma boa química. A esposa de Parker, vivida por Joan Allen(na foto com Hachiko), ajuda a levantar, por exemplo, a interpretação contida e linear de Richard Gehre.
Sempre ao seu Lado não é uma obra-prima. Diria que é um grande filme menor de Hallström, mas que se supera pelo desprezo a uma moral da história e pelas lições de vida ocultas em suas entrelinhas. Mais um longa-metragem de cachorro? Não. Seria injusto querer compará-lo, por exemplo, a dramas como Marley e Eu, blockbuster no qual a temática é parecida. Dentro de cada coração bobo, como o meu, é possível encontrar um valor diferente emaranhado nesse trabalho. E é bom acompanhar de vez em quando um roteiro simples, tratado com zelo quase oriental pelo diretor ocidental. Por isso, deixando de lado análises frias e intelectuais, vale chorar. Afinal, como disse o poeta português, tudo vale a pena se a alma não é pequena.
Electropop sem vergonha. Esses caras já arrebanharam uma legião de fãs fazendo uma música onde reina um teclado revivalista, melodias simples e letras levezinhas. O pulo do gato do Hot Chip – era, mesmo com o uso de uma velha fórmula, a pulsação contida nas canções que levava invariavelmente o abduzido para a pista de dança. Um pop dançante com boas composições e muita catarse. Dance rock inteligente e fora do padrão baticum emburrecedor. Foi assim que seus dois primeiros trabalhos, Coming on Strong(2004) e, principalmente, The Warning, alçaram esses ingleses “nerds”, como são apelidados pela crítica, ao hall da fama. Eles voltaram agora com One Life Stand(Emi, 2010), o quarto álbum de carreira, mais equilibrados, românticos e, desculpem o lugar comum, amadurecidos. Traduzindo: o Hot Chip faz agora o que bem quer sem o medo de decepcionar seus seguidores.
O que se vê em One Life Stand é uma banda se afastando do carimbo indie que marcou o início de carreira. Despiram-se do véu do simulacro, daquele ranço que emprestava à sua música um certo cerebralismo, destilado em um electroindie com referências rítmicas abusadas, para serem adoravelmente objetivos e pop na medida do possível. Fizeram um disco mais perto do cidadão comum, que necessita de canções menos discursivas e que toquem a alma. Nesse caminho, produziram baladas carregadas de sentimento. “Slush”, que começa mântrica, com vozes sobrepostas, e segue melancólica fluindo sua bela melodia. “Agora eu sei que existe um Deus em seu coração”, canta um doído Alexis Taylor, resgatando a memória de uma paixão. “Brothers” é outra que soa triste, apesar da programação eletrônica um pouco mais animada. A cool “Alley Cats” finaliza essa trilogia das composições emotivas que podem afastar um pouco o Hot Chip dos fãs que preferem a energia dance do grupo.
Essa energia dance quando exposta, contudo, não comparece no álbum com a esperada voltagem toda. O electropop refinado do Hot Chip parece ter ficado um tanto mais elegante. Músicas como “We Have Love” e “Take it In”, foram feitas para a pista, mas estão mais para um chillout do que para a ferveção. São os momentos mais mornos e pouco inspirados do disco, ao lado de "Keep Quiet", balada inspirada, segundo o vocalista e tecladista Joe Godard, no fenômeno internético Susan Boyle. Mas, isso não empana a fase pop e direta presentes em músicas que só comprovam a fama e o talento conquistados pelos londrinos. As canções que abrem o disco são exemplares finos e bem acabados de um grupo sereno e senhor de sua arte. “Felicidade é tudo o que queremos / afastando sentimentos que não queremos”, avisa o vocalista, nadando de braçadas em uma batida seca de bateria e um teclado limpo e com cara das décadas de 80 e 90 do século passado.
Com a mesma alegria e inspiração, os cinco integrantes do grupo desfilam uma seqüência de três petardos para as pistas. A começar com “Hand me Down You Love” que, mais hardcore, traz uma bateria forte e marcada que permeia uma melodia cheia de personalidade. Esta só perde em animação para a ótima “Feel Better”, com destaque para uma programação eletrônica pomposa e a entrega dos vocalistas. Biscoitos finos que abrem alas para a melhor música do disco, exatamente a que leva seu nome. Difícil ficar parado diante do electropop contagiante de “One Life Stand”. Uma série arrasadora que garante ao Hot Chip, mesmo sem ter feito seu melhor álbum, um lugar na constelação das grandes bandas do gênero. Um trabalho para quem não tem frescura ou preconceito musical poder se refestelar nas pistas ou entre quatro paredes, naquelas horinhas do aconchego. Renda-se aos caras porque eles, definitivamente, são bons.
Pronto, 2010 começou. Mas, será se estou pronto para 2010? O danado já chegou meio esquisito. Lá pras bandas do triste Haiti, a terra resolveu engolir gente num regurgito talvez da nossa própria antropofagia. A gente come a terra e a terra come a gente. Que o fato seja uma ilha de profundo pesar – sem que nunca nos esqueçamos da lição dolorosa da natureza – no meio de um continente de notícias boas que hão de se multiplicar nos vindouros dias. Façamos uma corrente de fé, como devotos fervorosos da esperança, para que as tragédias não se repitam nesse ano e nem nos próximos. É uma figa que pessoalmente faço neste 20 de janeiro, dia de meu padroeiro, São Sebastião, que, como guerreiro, pode ter sucumbido às flechadas, mas que como homem – longe da auréola – se perpetua na memória dos que acreditam que temos que lutar até o fim por aquilo que mais acreditamos.
Nessa cruzada do credo que está começando, devemos assim ter fé no Brasil. E 2010 é um ano bom para isso. Porque nesses tantos e centenas de dias que vão vir por aí cheios de expectativa, o guerreiro Bastião, padroeiro também de Boa Vista, há de estar do nosso lado. Torcendo e acreditando no talento dos pés e no suor da camisa de 22 jogadores brasileiros que nos são devedores de uma copa verdadeiramente santificada, daquelas cujas vitórias não deixam um rastro sequer de dúvida. Ou que, não sejamos merecedores dessa graça, que ela seja dada aos africanos, nossos irmãos de sangue e de esperança. Uma vitória da negritude e do berço que nos fez uma nação musical e alegre, eles que tratam a bola com a mesma energia e relação mágica com que nossos velhos craques negros tratavam.
E mesmo que alvejados com a flecha de uma derrota na copa do mundo, que continuemos em pé com a mesma fé e esperança para encarar o futuro nas urnas. Mais firmes do que nunca. E aí a cabeça mais que o coração deve se fazer presente. Sejamos nessa fantástica festa da democracia torcedores convictos e, mais do que isso, jogadores e juízes serenos desse embate no imenso campo da política. Porque teremos o país refém daquele que escolhermos para ocupar palácios e câmaras, refém de nossa decisão. E mais do que pregar nas paredes cartazes dos políticos nos quais acreditamos serem dignos do voto, as pintemos com as cores da fé de um Brasil mais íntegro e feliz. E que essas cores sejam verde e amarela, que nosso coração seja verde e amarelo e que Sebastião possa ser um dos nossos guias nesse caminho verdadeiramente espinhoso que é escolher as pessoas certas no tão perto outubro de 2010.
E que quando chegar o fim de 2010, possamos principalmente olhar para trás felizes do que fizemos, orgulhosos de cada ato, de cada pequena frase dita, dos amores conquistados e plenamente conscientes, como um monge purificado, dos erros assumidos e honrosamente corrigidos. E ainda com a doce certeza de que essa nação melhorada que conquistaremos em dezembro deste ano tenha a ver um pouquinho com o que fizemos, com a comunhão catártica dos esforços dos filhos dessa nação por um Brasil vitorioso. Seremos sim felizes em 2010 e teremos a nossa alma enxaguada com o perfume da decência e renovada assim em nós a essência da vida. São Sebastião, olhai e torcei por todos nós brasileiros de coração grande, amantes da liberdade e guardiães da esperança. Esse ano, é nós, inteirinho e completamente felizes, na foto. Amém.
Créditos das obras de arte:
Tela 1 - São Sebastião, de Ronaldo Mendes Tela 2 – A Fera, de Aldemir Martins (1966) Tela 3 - Sem nome, de António Ely Silva Tela 4 - Sem nome, de Everenice Tamanini
Lulina tem um mundo próprio. Feito de minhocas, carneiros, de príncipes encantados que preparam a janta enquanto as princesas caem bêbadas nas baladas. De casais abertos a relacionamentos menos tradicionais e margaridas que se apaixonam por girassóis. A pernambucana expôs seu universo lúdico para um público mais amplo quando teve seu Cristalina(2009 – YB Music), um dos lançamentos mais interessantes do ano passado e o primeiro trabalho da artista gravado em estúdio, distribuído em território nacional. Antes havia feito oito álbuns(!) caseiros com nomes tão esquisitos quanto Bolhas na Pleura(2004) e Aos 28 Anos Dei Reset na Minha Vida (2008), alguns deles gravados no laptop albino da compositora batizado de Hermeto(referência ao grande músico Hermeto Paschoal).
Intransigente e viajante, o primeiro álbum oficial de Lulina (a Luciana Lins, como foi registrada em cartório) é um apanhado das músicas “com roupa nova”, como disse em uma entrevista, que compôs durante seus anos de longa transição para uma gravadora. A recifense, como defende o título do disco, é cristalina em suas composições. Desnuda memórias afetivas de sua infância, como em “Do You Remember Laura”, onde fala de uma época em que achava em que o “sol era feito de neve por dentro”, ou mete o pé na jaca no surrealismo mais desfraldado, visualizado em “Criar Minhocas é um Negócio Lucrativo”, na qual criou uma cama sonora feita de estranheza para contar como um cadáver conversa, a sete palmos abaixo do chão, com essas iscas para peixe. Tim Burton se orgulharia da moça.
As letras diretas, confessionais ou simplesmente amalucadas, são um dos pontos fortes de Cristalina. É engraçado ouvir Lulina cantando sobre problemas de “bolhas na pleura” na música “Biebs”. Um diagnóstico médico que fez com que a paciente, personagem da canção, ficasse “com medo de estourar e nunca mais voltar”. Ou em “Sangue de ET”, na qual convida todos a beber o líquido com “gosto de jujuba e jatobá” para curar todo o mal. “O sangue de ET tem poder”, brinca parafraseando uma velha máxima católica. Viagens a parte, a cantora também fala sério, quando dá um tempo de sua Lulilândia para falar de sentimentos e filosofar sobre o cotidiano. Papo reto. Como em “Nós”: “A vida é desfazer nós, nós de nós mesmos / A linha da vida fica maior se você consegue tirar o nó”. Faz sentido.
Sem vergonha, Lulina trata os assuntos de maneira explícita e que faria as menos moderninhas corar. Não existem tabus para a pernambucana. Em “Meu Príncipe”, canção romântica com roupagem brega, o apaixonado da mocinha gulosa lhe “dá múltiplos orgasmos e são treze no total/ limpa o banheiro, lava a roupa suja e eu bebo, bebo, bebo (...) Ele quer discutir a relação e eu não”. No roquezinho “Balada do Paulista”, ela sacaneia com os maneirismos linguísticos dos paulistas com seu sotaque carregado de pernambucana: “Puta meu. Tipo, nossa cara”, repete o refrão no meio da história de um casal aberto no qual a mina encontra outra mina que lhe oferece um baseado: “Logo no primeiro pega, ela já olhou pra mim e disse que era de outro pega que ela estava afim”. Impossível não se divertir com o bom humor explícito da composição.
Relação aberta é o que a autora tem também com as melodias. A voz um pouco grave de Lulina, que lembra as vezes a de Fernanda Takai, adorna canções com influências do indie a la Belle and Sebastian, como na graciosa “Bichinho do Sono”, ou pegada folk, a exemplo da fabulística “Margarida”. Em outros momentos belisca o dream pop como em “Mi gosta de Musga” ou se esbalda no rock básico, como em “Jerry Lewis”, uma homenagem ao bom e velho comediante, provavelmente um dos ídolos da cantora, que aqui ela tenta ressuscitar. Cristalina é o cartão de visitas definitivo de uma cantora plural que é a cara desse novo século, que abusa das referências e do diálogo mais direto e verdadeiro. Uma grata surpresa em um Brasil, graças a todos os santos e batuques, cada vez menos careta.
Este blog é uma manifestação de amor à música. Não tem caráter comercial, mas apenas o de compartilhar um gosto pessoal por grupos, bandas e artistas de todo o mundo. A idéia não é detonar a indústria fonográfica, como alguns blogueiros acreditam que possam fazer ao postar discos. Sugiro que esse blog sirva como mera pesquisa e, se gostar dos trabalhos comentados, procure comprar. É um mimo que você faz ao artista.
As cores da festa
Fantasiaram o Centro Cultural Casa de Taipa para a sua festa de aniversário de um ano. Tanto verde e amarelo tornaram nossa paixão pela cultura ainda mais vibrante.
Verão
As pranchas apontam o caminho do sol. Alegria refletida na areia, Verão pra não mais esquecer. Natal, dezembro de 2011.
Rio na boa
Rio da vida, que não ri de mim. Rio porque sei que assim eu sei que vivo melhor. Porque tudo o mais se ilumina em minha volta. Rio pra te fazer feliz. Catingueira - Sobradinho - DF - Brasil. Outubro de 2011
Lavrado iluminado
Um arco-iris no meio do lavrado e um fim de tarde banhado de luz. As vezes, a visão do paraíso está mais perto do que imaginamos. Mucajaí-RR. Agosto de 2011.
Missa do Vaqueiro
O vaqueiro do sertão nordestino, seco e encouraçado, carrega uma fé ardente como o sol que o incandeia. Exemplar de bravura que o Brasil precisa conhecer melhor. Suas missas em cidades do interior são rituais a parte. Meu amigo Flávio Aquino clicou esse momento mágico em Piranhas(AL), numa de suas muitas viagem Nordeste profundo adentro. Roubei essa de seu álbum no Facebook.