quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Movimento sem tradução

Tem anta, caititu, jandaia-sol, buriti. Tem taperebá, murici, bacaba. Misteriosa pedra pintada de arquitetura graciosa e o canto dos índios, invocando deuses. Nações múltiplas, tantas cores e etnias. Wapixana, macuxi, taurepang, waimiri-atroari. Penas de arara. Caxiri e pajuarú, vinhos indígenas para ver melhor a lua. E antes do almoço, para ficar pensando melhor. Tem rios volumosos repartindo verdes. Sei pouco da cultura seminal de Roraima. Mas, rio e mata, terra e peixe, natureza com DNAs expostos e outros a serem descobertos por cientistas sedentos por conhecimento, definem a alma desse estado tão pouco conhecido. Sou um ignorante assumido, uma partícula imberbe no meio de toda essa impactante roraimeira.

Roraimeira é o nome do documentário de Thiago Briglia, um jovem jornalista aqui de Boa Vista. O segundo longa dele, também contemplado (o único do estado) pelo projeto DOCTv, uma bela iniciativa da TV Brasil de estimular visões documentais da realidade. Roraimeira é também o nome de um pretenso movimento cultural que floresceu aqui no começo dos anos 80 da década passada, capitaneado por três músicos, três verdadeiras instituições boavistenses: Eliakin Rufino, Zeca Preto e Neuber Uchôa (os caras ao lado em foto de Jorge Macedo). Sou também ignorante nessa história e por isso fui com muita expectativa assistir à pré-estréia do documentário no Palácio da Cultura, um prédio com traços modernos encravado nas margens da Praça dos Três Poderes local.

Quis entender, mas saí cheio de interrogações. Qual a real dimensão da Roraimeira? Até que ponto aquele momento cultural pode ser considerado um “movimento” na acepção plena da palavra? De que forma ele repercute nos dias de hoje? O documentário me frustrou com todos seus hiatos e sua capa tendenciosamente bairrista. Havia uma claque na hora da exibição. Amigos. Amigos dos amigos dos produtores, do diretor, dos fãs dos artistas – agentes centrais da obra -, do diretor, ovacionado efusivamente durante vários momentos. Havia autoridades, preparadas para aplaudir com sua postura oficial. Um acontecimento e um final feliz: aceitação geral da obra. E a consequente pergunta na minha cabeça frustrada com o que viu: o diretor fez Roraimeira para aquele público previamente conquistado?

Mais perguntas. Que público Thiago Briglia quis atingir? Por que aquela sensação inquietante de que Roraimeira, o filme, não fez jus ao tema que quis destrinchar? Adianto: sou ainda estrangeiro aqui. Vivi algumas temporadas intensas no estado e conheço algumas poucas características do roraimense e sua cultura. Mas, tenho um carinho muito grande por Roraima e quero estreitar esse relacionamento afetivo. Pensei que Roraimeira podia ser uma dessas portas. Oba, pensei, vou me enraizar um pouco mais na história do estado e assim me arvorar no futuro em falar de onde escolhi morar com alguma propriedade. Mas, para um estrangeiro como eu – e, por favor, contabilizem minha capacidade de compreender o mundo ao meu redor – o documentário não funcionou.

Explico. Roraimeira teria sido, a grosso modo, um movimento cultural cujo objeto de devoção é a cultura e a natureza exuberantes do estado. Frutos, peixes, árvores, índios, as cores e belezas naturais cantadas e expressadas em versos, prosa, dança, telas. Esse caudaloso objeto, e suas infindas possibilidades, ficou contudo mascarado no vídeo. Senti falta das aspas, de respiros que traduzissem objetivamente a inspiração que levou Eliakin, Zeca e Neuber a criar o dito movimento.

Que peixes, frutos e pássaros de nomes sonoros são esses, que paisagens deslumbrantes são essas que recheiam e alimentam a cabeça dos poetas? As imagens ficaram sobrepostas ao discurso. Um discurso que a ouvidos estrangeiros somente instiga a visualização da cultura “roraimeira”. Ao sair do território local e viajar pelo Brasil, o filme vai perder a força por não clarear – ou pelo menos tentar – o universo que ele indiretamente trabalha. O documentário, enfim, não parece ter sido feito para todos os brasileiros, apenas para a geografia local com sua bela gramática roraimense, com todos seus signos ali sem tradução.

E aí, eu volto para uma outra questão, já colocada antes. Se o movimento teve mesmo a força de um acontecimento do tipo – e me permitam o direito da dúvida por, insisto, desconhecimento de causa – ele com certeza teria se refletido em outras expressões artísticas, além da música, onde pelo visto fincou o pé com mais fortaleza. Mas, a participação reduzida no filme de uma coreógrafa e de uma artista plástica não contribuiu muito para testemunhar a verdadeira extensão do movimento. As intersecções entre música, dança e artes plásticas não ficaram muito claras. Faltou assim, a meu ver, uma unidade, uma homogeneidade na mensagem proposta. Como peças de um móbile sem os fios para as interligarem.

Legal as cenas dos talentosos artistas do movimento cantando para uma platéia abancada em beira de rios, em pedras à margem de aldeia. Bacana a honestidade despudorada de Zeca Preto e a verbalização de Eliakin que erroneamente – pausa para um contraponto – disse que o Roraimeira teria sido o último movimento cultural do século passado no Brasil. Eu lembraria do mangue beat, de Pernambuco, no início da década de 90, que, com seus tentáculos, ainda ecoa até hoje. Valeu ainda pela coragem de Thiago Briglia que encarou o desafio com as inúmeras dificuldades que, com certeza, teve pela frente. Mas, a Roraimeira ainda espera uma tradução mais precisa de sua existência. O tempo e a força da idéia, acredito, vão se encarregar disso.

Atenção para os dias e horários de exibição do Roraimeira na TV Brasil e em Boa Vista. Não deixem de assistir:

27.08.2009 (quinta-feira)
22h na TV Brasil - Canal 2 - Exibição Nacional

28.08.2009 (sexta-feira)
16h na UNIVIRR

31.08.2009 (segunda-feira)
19h no Cine Sesc

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

O retorno das almas barrocas

Falar de João Bosco é de uma responsabilidade tremenda. Eu, quando jovem, me perdia na encruzilhada rítmica do cantor e compositor mineiro que me turbilhonava ainda mais a cabeça com seus floreios vocais esquisitos que, soube depois, tinham sabor negro. Fazia músicas lindas, eternas, ele e o parceiro de guerra Aldir Blanc. Lembro de escutar “Mestre Sala dos Mares” e “De Frente pro Crime”, na época ainda do velho vinil compacto, o único disco levado junto a uma vitrolinha portátil à base de pilhas para um sítio no interior do Ceará num fim de semana besta. Uma noite inteira ouvindo aqueles dois clássicos a luz de lampeões e embaixo de um céu opressivamente estrelado. Primeiro contato catártico com a poesia urbana e amorosa dos dois.

Virei fã de Bosco e de Aldir. Acompanhei a carreira dos caras e fiquei até um pouco enlutado quando, no fim da década de 80, os dois, por incompatibilidade de gênios, romperam a parceria. Um pra lá, o outro pra cá. 22 anos depois veio a notícia que os dois reataram, enterraram enfim as diferenças e resolveram fazer um bem necessário à música popular brasileira. Os primeiros lampejos de luz desse auspicioso retorno estão registrados no novo álbum de João Bosco, de nome comprido, mas belo e definidor do seu conteúdo: Não vou pro Céu, mas já não Vivo no Chão (2009).

Uma boa notícia em dose dupla. A outra é que Bosco pôs no mundo um CD de inéditas depois de longos sete anos de gestação. A dupla ajuda a fazer de Não Vou pro Céu... um dos grandes disco do artista mineiro, uma obra maiúscula e tão prenhe de elegância e sensibilidade que chega a emocionar. Meu pobre coração é bobo para tamanha carga de beleza que o álbum oferece. Uma beleza que parecia perdida na carreira do compositor, cujos últimos trabalho de estúdio, Na esquina (2000) e Malabaristas do Sinal Vermelho (2003), pelos menos a mim, não convenceram. Eram bons discos, mas não tão inspirados.

E agora, junto com Blanc, a inspiração voltou. Intensa. Com o antigo parceiro, fez quatro biscoitos finos que estão no disco. Três deles recuperam o brilho e a harmonia dos tempos de “Bala com Bala”, “Gol Anulado”, “Linha de Passe” e tantas outras grandes canções. O samba lento “Navalha” mistura espiritualidade e paixão em uma letra e melodia felizes. “Ai, eu fui crucificado nos cravos do teu amor/Não me lembro de outra coisa que causasse tanta dor”, canta um Bosco comedido e maduro.

“Navalha” nasce clássica assim como a delicadíssima “Mentiras de Verdade”, que cita frase de "Cansei de Ilusões" música de Tito Madi com pequena mudança de letra e que traz ainda um belo diálogo entre violão e guitarra. A terceira é “Sonho de Caramujo”, por meio da qual entendemos um pouco o silêncio de sete anos de Bosco. “Cumpri o astral de caramujo musical: eu gripo ou canto/ não vou pro céu mas já não vivo no chão eu moro dentro da casca do meu violão”. Menos inspirada, a intimista “Plural Singular”, não desmerece de qualquer jeito essa reunião.

Francisco Bosco, o filho do cara, é o parceiro mais corrente no disco. Bom poeta, Chico, como o pai lhe chama, é co-autor de outra grande composição do álbum, “Tanajura”. Aqui, o velho Bosco volta com suas junções de expressões sonoras que parecem criar uma nova língua, uma herança assumidamente negra. “Se bole seu balaio/Me bate na moleira/Me abala feito raio/Seu bumbo de primeira”, canta ao som de uma percussão e violão monocórdicos que hipnotizam como um batuque. É da mesma lavra da sensacional “Jimbo no Trio”, parceria inusitada com Nei Lopes, que fala sobre um tocador de trombone que bota todo mundo pra dançar com suas fusões rítmicas. “E o jazz e o samba e a milonga e o tango e o candombe/E a rumba e o mambo, tudo é lá do congo”, interpreta Bosco em composição moderna e suingada.

O que se vê no último Bosco, por fim, é um homem amansado pelo tempo, sentado serenamente à sombra de seu imenso talento. Um artista que recupera o refinamento de outrora, refreando os floreios vocais que eram uma assinatura pessoal, explorando mais as linhas do sambajazz e buscando na simplicidade do arranjo o ponto de interseção com a harmonia melódica. A quase valsa “Desnortes”, dele e do filho Chico, e a linda “Pronto pra Próxima”( essa dividida com Carlos Rennó) traduzem uma complexidade e elegância musical que ajudam a garantir a inscrição de Não vou pro Céu... na lista dos melhores discos do MPB do ano. Eu diria mais, do alto de minha inquestionável rendição, é um dos grandes álbuns de música brasileira da década.

Cotação: 5

Vá pro céu:


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quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Trilha pra fantasias

É porque a gente não pára pra pensar. Mas, esse mundão imenso é como uma caixinha de surpresa musical, tal é a quantidade de ritmos, gêneros, batidas, tambores, cordas, barulhinhos exóticos e inusitados. Faz-se rock do Brasil à Cochinchina. Da Estônia à Bariloche. E, muitos de nós, dentro de nossos casulos, não nos plugamos no que é produzido lá fora. Mas, apertemos a tecla “se ligue”. A internet taí para nos aproximar de todo esse universo. Conheci há dois anos uma banda islandesa chamada Múm, que faz post-rock, música experimental ou algo que o valha. Grupinho legal, que vale o investimento de nossos ouvidos, e que acabou de lançar Sing Along the Songs you Don’t Know(2009).

Pois é, alguns leitores desse blog devem pensar: rock da Islândia? Temos alguns exemplos relativamente famosos de bandas deste país que conquistaram renome internacional. Para lembrar: Björk e Sigur Rós. Como esses dois, a Múm faz um som experimental, cerebral, onde a utilização de instrumentos diferenciados e a melodia quebrada e que explora a atonalidade tornam a audição mais complexa. Mas, é um desafio que vale a pena encarar. Afinal, somos ratos ou homens? E Sing Along... não está exatamente entre aqueles trabalhos chatos nos quais o artista fala mais pro seu umbigo do que pros tímpanos de nós, pobres mortais.

Desde 2000, quando lançaram Yesterday Was Dramatic - Today Is OK, a Múm caminha pelo terreno do experimentalismo, de um rock que luta contra rótulos. O primeiro álbum que ouvi deles foi o elogiado Go Go Smear the Poison Ivy (2007), no qual a instrumentação e canções chegaram a me assustar. Coisa de doido, pensei logo ao primeiro impacto. Neste quinto trabalho, a turma parece ter arrefecido um pouco a sanha experimental. Há, inclusive, instantes em que eles soam até mesmo convencionais (como se isso fosse possível em se tratando desse grupo), como em “Blow Your Nose”, uma linda canção de ninar com um violoncelo cortante, e “If I were a Fish”, toda climática e com tessitura de sonho.

Múm faz uma espécie de trilha sonora para filmes de fantasias, do tipo O Labirinto do Fauno e da encantadora série O Senhor dos Anéis. As canções são quase todas delicadas, algumas beirando a melancolia, como a quase folk “Last Shapes Of Never”, uma das mais bonitas do CD, e a estranha “Illuminated”, com uma orquestração de cordas de arrepiar. Mas, a grande maioria do álbum é feita mesmo de canções serenas, que não invocam tristeza, apenas magia. Casos do samba de criolo doido "The Smell Of Today Is Sweet Like Breastmilk In The Wind” e de “Show Me”, na qual ficam evidentes os toques de eletrônica sutis – e que fazem algumas publicações rotularem erradamente o grupo como “eletrônico” – que permeiam todo o trabalho da banda.

Colaboram para esse clima mágico e sedutor(prepare-se para nomes impronunciáveis), a voz fantástica e aveludada de Kristín Anna Valtýsdóttir, acompanhada em vários momentos pelo coro masculino de Ásthildur Valtýsdóttir e Olof Arnalds, este responsável também pelos trompetes e teclados, e ainda os bons instrumentistas Hildur Guðnadóttir (cello e vocal) e Samuli Kosminen (percussão).

Toda essa galerada e mais alguns convidados são os operários, a base instrumental das canções de Örvar Þóreyjarson Smárason e Gunnar Örn Tynes (os dois caras aí do lado), os únicos integrantes fixos do grupo, criadores da sonoridade às vezes onírica às vezes estranha do Múm. São os artífices talentosos dessa banda que fez de Sing Along... um álbum de música experimental delicioso e cativante. Desses que vale a pena ser tocado no amanhecer e no crepúsculo tardinho, horas em que estamos mais propensos para refletir, quer seja para instigar o cérebro quer seja para domar o espírito inflamado. Uma pausa certeira para a delicadeza nesta nossa mui corrida e aloprada vida.

Cotação: 4

Experiencie os islandeses:

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terça-feira, 11 de agosto de 2009

Mould no tempo certo

Mister Bob Mould é um sujeito iluminado. Cabeça de duas das bandas alternativas mais legais e elogiadas dos anos 80 e 90, respectivamente Hüsker Dü e Sugar, o carinha tem talento incomum de criar belas composições que buscam a batida pop perfeita, desenhadas com linhas melódicas robustas e arranjos que valorizam a guitarra e a objetividade. Som direto, sem meio termo. Desde 1988, quando lançou seu primeiro álbum solo, o excelente Workbook, ele vinha apurando sua veia roqueira e popular. A experiência no Sugar é uma prova disso. O ápice, depois do ensaio que foi District Line(2008), é este definitivo Life and Times (2009), uma aula de bom gosto e equilíbrio musicais.

O último do novaiorquino Mould é cheio de bons achados em sua simplicidade. Arranjos eficientes e canções inspiradas fazem de Life and Times um feliz exemplar de coesão sonora. Tudo está aqui na medida certa. O álbum tem criações roqueiras pops feitas pra dançar, com um gostinho, de leve, dos anos 90, como as bacaninhas “City Lights(Days go by)”, “Mm 17” e “The Breach”, com bom solos de guitarra e um discreto teclado criando clima para a pista. Mais acelerada e compulsiva, “Argos” traz uma energia como não se via no artista já há algum tempo. Um pouco mais calma, “Life and Times” chega a lembrar a cena grunge com o peso das cordas e o vocal urgente do artista.

Vire o disco e encontramos o compositor e guitarrista Bob Mould ainda melhor, assinando baladas arrebatadoras, sem açúcar e com muito afeto. Destaque para pelo menos duas obras-primas do artista, a inebriante “Bad Blood Better”, que começa com acordes de violinos dissonantes e emenda numa melodia deliciosa, que abre espaço generoso para uma guitarra lancinante. A outra é a sensual “Wasted World”, com tocante interpretação de Mould que parece destoar do instrumental no refrão um tanto barulhento, mas que, no fim das contas, soa totalmente adequado à composição. Vale ainda citar “Spiraling Down”, que remete a Pearl Jam em seus melhores momentos. Rock dos bons.

A lentinha “I’m Sorry, Baby, but you Can’t Stand in My Light Anymore” e a climática “Lifetime” – a que mais destoa da linha roqueira do álbum - mantem, ainda assim, o nível de um grande álbum que tem tudo para colocar Bob Mould no lugar que merece estar: na linha de frente do rock mundial. Que as novas gerações e ouvintes fiquem espertos para esse compositor talentoso e que ainda vai dar muita alegria para saudosos como eu e para aqueles que se interessam por um som honesto. Life and Times é, até agora, o melhor trabalho solo desse cara. E que venham mais desses pela frente.

Cotação: 5

Não pense duas vezes e vá:

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quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Depois do chá

Resisti com todas as minhas forças em escrever sobre o último trabalho do Arctic Monkeys, o bem produzido Humbug. Até porque a banda já é bem conhecida e, com certeza, tem espaço garantido na mídia. E, pra mim, blogs que falam de música são como organismos alternativos que servem para abrir flancos pros grupos que não conquistaram ainda seu lugar ao sol. Mas, fui fraco, admito. De vez em quando caio na tentação de tecer comentários, fazer resenhas, principalmente quando sou fã da galera. E é esse o caso.

Humbug é o terceiro trabalho do Arctic Monkeys, aquela banda britânica que tornou-se notícia por ter virado um fenômeno da internet. Os músicos caíram, com todo mérito, nas graças dos internautas com milhões de acessos, levando uma gravadora a bancar o bacana Whatever People Say I Am, That’s What I’m Not (2006). Consistente, o grupo amparou-se em riffs poderosos de baixo (Andy Nicholson) e guitarra (Jamie Cook), numa bateria vigorosa(Matt Helders) e nos inspirados canções e vocais de Alex Turner para conquistar crítica e público. O talento da moçada confirmou-se no irretocável Favourite Worst Nightmare(2007), um álbum afiado e repleto de hits instantâneos.

Dois anos depois veio este Humbug que traz elementos que podem causar cissões entre os fãs. O som dos ingleses está mais sereno, menos ensandecido, mais elaborado e “soturno”, como apontaram vários blogueiros de plantão. É como se Turner e cia tivessem tomado um bom chá de erva cidreira, um calmante natural. E é essa desaceleração da levada, antes mais juvenil e urgente, que pode desagradar e dividir a opinião dos apaixonados pela banda. Chamaram a mudança de “maturidade”. Prefiro chamar de evolução e experimentação.

O que se ouve é um Arctic Monkeys concentrado em fazer um som mais denso e técnico. Por trás de Humbug há a produção de James Ford, do projeto eletrônico Simian Mobile Disco, e Josh Homme do visceral Queens of the Stone Age. Os dois, cada um do seu jeito, encorparam o som da galera. De um lado, Ford, antigo colaborador, manteve o apelo pop, mais leve e radiofônico do grupo. Do outro, Homme influenciou na gestação de músicas mais viajandonas, experimental sem perder a medidado palatável, e com cordas mais pesadas, na linha stoner rock, a praia onde o cara surfa bem.

A fronteira entre a parceria de Ford e Homme com o Arctic Monkeys muitas vezes sê confundem, o que faz a diferença em Humbug. Músicas mais cerebrais e menos desacelaradas como as boas “My Propeller”, com o usual riff de baixo e guitarra em conversa afinada com a bateria marcial, e “Fire and the Thud”, que começa sensual, com um coro climático, e se desenvolve lenta, para desaguar num cortante e pesado solo de guitarra, mostram que os garotos da banda querem experimentar sonoridades novas. Querem fazer um discurso musical mais adulto, com referências de um rock psicodélico, com raízes no passado, pero sem perder, lógico, a identidade.

É interessante ver como há uma tendência do grupo em fazer músicas com mudanças de andamento. Não há uma linearidade clara, como se viu nos dois discos anteriores. São os casos da já citada “Fire and the Thud” e de “Dance Little Liar”, lisérgica no início, lembrando as trilhas sonoras dos westerns spaghetti e surpreendente no final, com a entrada da guitarra nervosa. E falar em urgência, quem quiser matar a saudade do velho Arctic Monkeys pode pular direto para “Pretty Visitors”, pedreira boa para se dançar. Pop do mesmo jeito é a empolgante “Crying Lightning”, a cereja do bolo, não à toa a escolhida para música de trabalho.

O que achei, por fim e sem mais delongas, de Humbug? É um grande álbum. Eficiente em sua pretensão de experimentar novos rumos, bem tocado e produzido, mas sem a coesão de Favourite Worst Nightmare, ainda o meu favorito. Ainda assim, altamente recomendável.

Cotação: 4

Vá enquanto é tempo:

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segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Macaco Bong na veia

Lá estavam o mesmo visual e marra de sempre. Camisetas pretas, a maioria, entregavam os ídolos da molecada cheia de gás. Muita estampa de Slipknot, Linkin Park, Limp Bizkit, Korn, essas bandas de new metal que os surdos pra boa música endeusam, poucas meninas e um ou outro saudosista com velhas bandeiras no peito, Led Zeppelin, Iron Maiden, todos circulando, peitos estufados, num espaço amplo. Um ginásio espaçoso que tornava o minguado público presente ainda mais desapontador. Noite de cinco bandas locais e a atração nacional, a sensacional Macaco Bong. Bem vindos à primeira noite do V Roraima Sesc Fest Rock.

Um parêntese necessário: o Sesc em Boa Vista é um reduto, heróico, para os fãs do rock and roll. O som que circula à exaustão na cidade é o forró e o sertanejo, daqueles mais bregas, invasivos e românticos, com alguma sobra nas ondas radiofônicas para o axé music, pagode e o reggaeton, uma buliçosa mistura de música caribenha com rap. Os roqueiros reúnem-se nas noites de Sesc para bater cabeça com bandas covers de grupos famosos, principalmente na linha do hard rock, hardcore, death metal e afins(se estou errado que alguém daqui que faça parte desse seleto grupo, por favor, me conserte).

Voltando ao Fest Rock. Tirando a seqüência de bandas que caracteriza um festival daquele tipo, tudo o mais ali não apontava para um evento que se arvora como um... festival. A estrutura oferecia uma barraca para vender cervejas e duas outras, uma vendendo algo relativo a motos, que logo descartei por não gostar do veículo (que em Boa Vista prolifera), e uma outra vendendo CDs. “Oba”, pensei. Gosto de barracas de CDs em festivais de rock porque vendem álbuns de bandas alternativas que você não costuma encontrar nas lojas oficiais. Mas, decepção, a oferta era reduzidíssima e acabei me contentando com um Cascadura dos idos de 2003. A vendedora, cascadura, não cedeu aos meus argumentos de “trabalhador que ganha pouco” e me deu um desconto bem aquém do que tinha oferecido.

Concentrando no som do festival. Nota dissonante: cheguei tarde ao evento e tive ao azar de pegar logo de cara uma tal de Kadima, uma banda gospel de metal ruinzinha que tentava, entre uma música e outra, evangelizar a pobre platéia lendo trechos da bíblia. Nada contra a religião de cada um, mas aquele tipo de festival não deveria, a meu ver, ser instrumento de pregação, ainda mais em um nível tão explícito e truculento. Sem preconceito, acho ainda que o apresentador do festival também não deveria sugerir, com toda sua lábia, que a platéia ouvisse essa ou aquela banda evangélica. O palco e suas luzes não estavam ali, num festival de rock, armados para discursos tendenciosos. Isso não faz parte da cultura rocker. Atitude sim, pregação, não.

Mas aí, depois, veio a remissão de todos os pecados praticados antes no V Fest Rock. Macaco Bong, em sua primeira aparição em solo roraimense, entrou em cena. Afiada como sempre. O que acontece quando depois de um som desprovido de identidade vem um outro carregado de paixão e talento? Claro, êxtase. E foi isso o que se viu na minúscula platéia, grande parte, provavelmente, virgem do som dos caras: um transe comedido, mas coletivo e catártico. É o que se dá normalmente quando a guitarra virtuosa de Bruno Kayapy, o baixo elegante de Ney Hugo e a bateria demoníaca de Ynayã Benthroldo tocam os primeiros acordes. Técnica apurada e raçuda a serviço de composições inspiradas.

A matogrossense Macaco Bong já havia feito estardalhaço nos maiores festivais independentes brasileiros com seu som exclusivamente instrumental, do Rec Beat, em Recife, ao Porão do Rock, em Brasília. Instrumental, sim, e esse sucesso de público e crítica, num país onde, infelizmente, as bandas e artistas que dispensam o vocal não são valorizados, é extremamente louvável. No palco, o power trio mostrou para o público local porque fizeram, na estréia, um dos melhores discos de rock – se não o melhor – de 2008. Artista Igual Pedreiro é um petardo roqueiro onde psicodelismo, progressivo, stone rock e jazz misturam-se num som robusto e convincente.

No primeiro show em Boa Vista, mesmo sem um público tão receptivo, a Macaco Bong entregou-se de corpo e alma ao espetáculo, curto mas eficiente, com direito a corda de guitarra quebrada e solos delirantes. Os dreads de Bruno voaram alto em músicas instigantes como “Fuck You Lady” e “Amendoim” e carregaram junto nesse voo uma platéia antes curiosa e depois atônita. “Tu toca pra caralho, véi”, ouviu-se aqui e ali de um espectador mais afoito apontando o dedo para Bruno. O elogio deveria valer, contudo, também para os outros dois músicos que incendiavam o palco com suas composições bipolares, com suas mudanças de andamento surpreendentes e performance honesta.

Fim do show. Aquela sensação de missão cumprida dos músicos da banda, que devem ter sentido a energia da platéia parada ali na frente deles, com aquela cara de quero mais. Som que é bom ecoa. E no ginásio do Sesc o rock consistente do grupo ficou pairando por um tempo no ar até que a banda seguinte, Sic Maggots, num tributo(?!) a Slipknot aparecesse, com os integrantes vestidos a caráter, para fechar a noite e esfumaçasse tudo. Mas, aí, já era tarde demais. A Macaco Bong já tinha dado seu recado e arrebanhado, com certeza, novos fãs. Pelo menos aqueles com neurônios a mais. Uma noite para ficar na memória.

Fotos deste post: Jotapê Pires (valeu, fi, pela força. Sorte e fortuna em Brasília). Conheça mais o trabalho do cara. Vá em: http://www.flickr.com/photos/heaven_hills/

Para baixa Artista Igual Pedreiro:

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sábado, 1 de agosto de 2009

A paz invadiu o meu coração

Quando coloquei Fanfarlo para tocar no meu CD player não esperava absolutamente nada do que ia ouvir. Cérebro em branco doido para ser surpreendido. Para ser sincero, não tinha ouvido falar um “a” dessa banda londrina de nome exótico. Era uma noite em que estava meio pra baixo com problemas no trabalho e com o espírito inquieto. Sabe aquela história da alma em turbilhão buscando um conforto externo para deitar no berço esplêndido da calmaria? Aí, Reservoir – esse é o nome do disco – foi acontecendo, criando corpo devagarzinho e trazendo o interesse e a quietude que eu buscava. Ah, o poder transformador da música!

Reservoir, pesquisei depois, é o primeiro trabalho desse grupo pilotado pelo sueco Simon Balthazar. O cantor de timbre parecido com o do cigano Zach Condon, mentor da fascinante Beirut, banda que ganhou visibilidade no Brasil graças à minissérie Capitu. Ah, o poder massificador da televisão! A sonoridade do projeto Fanfarlo, aliás, tem algumas semelhanças com a perpetrada por Condon e sua rapeize. Isso porque, como nesse caso, a turma de Londres se apropria generosamente e de forma inteligente de um instrumental diverso e vigoroso.

Pegue aí uma voz calorosa e diferente, como a do sueco Balthazar, e junte com a guitarra de Mark West, o trompete e o violino marcantes, respectivamente, de Leon Beckenham e Cathy Lucas, o baixo de Justin Finch e a bateria de Amos Mermon, todos bons instrumentistas, e você tem uma banda azeitadinha. Tempere tudo isso ainda com a produção esmerada de Peter Katis, que tem no currículo nada menos que as excelentes The National e Interpol, e aí tudo fica mais redondo. Pense em espírito de grupo, em um coletivo trabalhando afinado e apaixonadamente em torno de um projeto querido. Essa é a sensação que tive no final da apascentadora audição do disco.

O debut do Fanfarlo é (desculpem, mas adoro essa palavra) orgânico. Você tem um par de instrumentos incomuns na maioria das bandas de rock – o violino e trompete –, e outros incidentais, trabalhados com precisão e a serviço de arranjos bem construídos. Repare na delicadeza de “I’m a Pilot”, que abre surpreendentemente o disco, e seu trompete melodioso contrastando com a bateria minimalista criando uma massa sonora costurada pela voz também incomum de Balthazar. Uma bela canção que emenda na melhor ainda “Ghosts”, com suas cordas dedilhadas, bateria marcial e instrumento de sopro perfeitamente coadunados.

As músicas seguintes reforçam a boa sensação causada no início. As composições mantêm o nível de beleza e cuidado das primeiras, navegando entre canções mais animadinhas, como a boa “Fire Escape” ou mais calmas, como a linda “Luna”, com um quê de Interpol, e a viciante “If It Is Growing”, com um refrão mais definido e melodia que tende a ficar dando voltas em sua cabeça. Reservoir cai um pouco nas duas últimas faixas, mas nessa hora você já está vencido e convencido pelo que ouviu antes. Uma estréia superlegal com argumentos suficientes para que Fanfarlo figure irremediavelmente entre os meus grupos queridinhos do ano. Escute sem medo.

Cotação: 5

Vê se você concorda comigo e vá:

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sexta-feira, 31 de julho de 2009

Luz no fim do tunel

A personalidade de um homem às vezes se sobrepõe a de sua banda. E aí a visão pessoal transcende o trabalho coletivo, revelando marcas próprias. No Brasil, um exemplo disso foi o atormentado Renato Russo, kamikaze e cérebro da saudosa Legião Urbana. Outro caso típico é o de Mark Oliver Everett, a alma da cultuada Eels. Depois de quatro anos de silêncio, o discurso obsessivo desse norte-americano volta a tona com o mediano Hombre Lobo:12 songs of Desire (2009) .

Para quem não conhece, a Eels é uma banda que desde a obra-prima Beautiful Freak (1996) faz uma mistura de folk, pop e indie (no que esse termo tem de experimental) à sombra do espírito introspectivo de Everett. O álbum citado acima tem um título que o definia à perfeição: belas melodias cercadas de estranheza por toda a parte. De lá para cá, o grupo foi tentando aparar arestas, aproximando sua música de uma sonoridade mais casual, mais comum aos ouvidos da maioria.

Mas, o pulsante Electro-shock Blues (1998) e, principalmente, o soturno Blinking Lights and Other Revelations (2005) indicavam que essa tentativa caminhava no tempo e no processo interno do líder da banda. E, aqui, o processo, como diria o rapper brasileiro B Negão, é lento. Até porque Everett passou pela barra pesada de vivenciar o suicídio de uma irmã e de acompanhar a agonia da mãe na batalha contra um câncer. Os anos sem um álbum de estúdio serviram provavelmente para expurgar um pouco essas dores.

E Everett deve ter saído um pouco mais leve desse diálogo que teve com o sofrimento. E veio Hombre Lobo, provavelmente aquilo que de mais pop o Eels pode se aproximar. O lado rocker e folk está mais transparente e amigável, como em “Prizefighter”, um rock caipira à moda antiga inspirado e gostoso de ouvir. “Lilac Breeze” é rock and roll básico, com a guitarra pedindo licença para passar e a voz rouca de Everett soando urgente. E a melhor de todas, “Tremendous Dynamite” aproxima-se do blues, com baixo e bateria em conversa instigante valorizando a boa melodia.

Essa brecha aberta para o mundo pop está evidenciada ainda na música de trabalho do disco, “Fresh Blood”. Esse rock cadenciado é trilha sonora para filme de terror, daqueles blockbuster, com direito a uivo de hombre lobo, o lobisomen que dá nome ao CD. Canção movimentada e bem acabada para tocar no rádio e na MTV. “Sweet Baby, I need fresh blood”, canta um lupino Everett, no limite pop de suas criações.

A face lunar da banda dá também o ar da graça. O lo-fi que ajudou a fazer a fama da banda entre os mais antenados volta capenga em “That Look You Give That Guy”, uma baladinha downtenpo e linear com o vocalista cantando de forma propositadamente desleixada. Um recurso natural, aliás, de quem não tem lá uma voz muito atraente. Mais atonal, “Longing” é canção desesperada, aquela que apenas ensaia um retorno à tendência depressiva de Everett. Melancolia exposta como uma ferida aberta. E é nas mais lentas, uma dos pontos fortes do grupo, que o álbum derroca. Faltou apetite e inspiração para o aparentemente cansado e intenso band leader liberar seu discurso de perdedor. Quem sabe é o sinal para uma mudança mais radical na sonoridade do Eels. É aguardar para ver.

Cotação: 3

Vá de Eels:

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segunda-feira, 27 de julho de 2009

Baita negona

Quando morava em Brasília, notava que o nome de Ellen Oléria era uma constante na agenda cultural dos telenoticiosos. Incansável, a moça parecia onipresente nas noitadas dos fins de semana candangos. Muitos falavam para mim que a cantora e compositora era talentosa, mas nunca havia aparecido uma oportunidade mais clara de vê-la para comprovar a teoria dos amigos. Até que um dia me vi ali, em frente ao palco, bem no gargarejo, hipnotizado pela intensidade daquela baita e maravilhosa negona.

Ellen é negra e não nega. Os grooves, a black music, o rap e o jazz incidentais nas musicas suingadas comprovavam isso. Toda aquela incandescência no palco estava para sentar praça em um disco, informou ela naquela noite fria e chuvosa de maio em que me vi, pela primeira vez, presa do talento daquela mulher. O álbum aconteceu, enfim, fruto de uma experiência musical de quatro anos e muitos bares afora. Peça é o nome da peça, um CD bacana, mas que infelizmente não faz jus à eletricidade e alegria que a artista incorpora em seus shows ao vivo.

Peça tenta trazer a energia intransigente de Ellen Oleria para o registro definitivo de um álbum. E até consegue em certos momentos nas faixas mais iluminadas e vibrantes do trabalho. É o caso das duas elétricas versões da ótima “Senzala(A Feira da Ceilândia)”. A primeira puxa por um irresistível acento funk, com a metaleira chamando para dançar. Mais dançante ainda, a versão remix promove a fusão do funk com o rap, com a participação do ótimo Gog nos vocais. “Sinto necessidade, uma vontade grande de dançar”, canta a artista na música. A gente também, Ellen, com certeza.

Também boa pra fazer dançar é “Pedro falando com o reflexo”. É outro funk com letra e refrão espertos. A composição, sobre um trabalhador com urgência para curtir a noite depois de uma semana de muito suor, engata, a exemplo de “Senzala”, na mistura black music, funk e rap, com invejável suingue. Difícil, para os mais afoitos, não rebolar o esqueleto. Mesmo caso de “Forró de Tamanco”, uma versão deliciosa para um xote do Três do Nordeste. Aqui o pé de serra do trio ganha uma cadência roqueira e pop, com destaque para a sanfona sedutora e uma guitarra pesada, num inimaginável casamento, e a interpretação vigorosa de Ellen.

Há ainda sambinhas legais, como “Só pra Constar”, com levada jazzy e melodia mais candente, mesma linha de “Posso Perguntar?”, que abre o disco apresentando estrategicamente para os incautos a voz negra, forte e limpa de Ellen Oléria. Mas essas canções e as baladas intimistas que se espalham pelo disco, todas compostas pela artista, assim como 90% do disco, não criam um corpo orgânico e nem traduzem a robustez da música e negritude inflamável da artista. Irregular, Peça peca pela escolha do repertório. Mas, da artista não há o que duvidar: o encantamento começou.

Cotação: 3

Funke-se:

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quarta-feira, 22 de julho de 2009

O céu que desaba sobre nós

Chove demais neste período do ano em Boa Vista. Água aos borbotões, copiosa. Tanta água cai, e tão insidiosamente, que percebi, invernada adentro, que a população da cidade tem uma relação amigável, consensual com esses minidilúvios. Uma espécie de política diplomática com o tempo instável, até porque não adianta fazer cara feia ou esbravejar porque ela vem desabonadora sem pedir desculpas, ensopando os desavisados, liberando guardas-chuvas coloridos, aglomerando gente debaixo de marquises, fazendo-se imperiosamente dona do dia e de nossa liberdade de movimentos.

A chuva faz a gente parar. E pensar. Refletir que somos reféns da natureza e que há um céu que desaba lá fora. Um céu tão imenso - maior do que o mar que nos aparvalha pelo gigantismo – e opressor que nos sentimos inexpressivos, prisioneiros inquietos nos pequenos e débeis espaços de concreto que nos abriga. A chuva que cai nos coloca em nosso devido lugar, seres humanos indefesos diante daquilo que é maior, incontrolável, sem qualquer poder de mudar paisagens e climas como fazemos em casa – senhores de si – com um controle remoto na mão. Não existe tecnologia que interfira no céu que desaba. Somos nós, sozinhos, e a água dona de tudo lá fora, ser e chuva em diálogo mudo.

Render-se à força da chuva é a solução mais sábia num lugar onda a abundância da água é realidade líquida em invernos amazônicos. Daí, imagino em minha vã filosofia, essa complacência respeitosa e ancestral do povo de Boa Vista com a chuva. Nesse relacionamento amistoso, todos dançam a valsa com ela, pianinhos, sapateando no toró. Abraçando a água para curar ressacas, com a moça molhando um pouco os seis voluptuosos para provocar suspiros, com o rapaz enfrentando, num gesto animal, gotas impiedosas da longa tempestade para vender virilidade aos amigos. Cena que se repete: a água seminal corre nas ruas, empoça avenidas e, sempre em algum lugar, encontra-se com o Rio Branco, o pai dos sonhos e paisagem inspiradora dos macuxis. Encontro de águas. E, no meio, nós.

Fui a uma festa num sábado. Chácara do Tomé a uns poucos quilômetros de Boa Vista. Lugar agradável, repleto de palhoças para abrigar os festeiros e festeiras espevitados, doidos para serem felizes naquela noite. E lá estava ela lá, intermitente. A chuva fremia a paisagem sem dó e descanso, desafiando a vontade de todos de se divertir. Mas, havia ali no fundo a complacência enraizada, a combinação tácita, subliminar, entre homem e água. E a cada segundo corrido ficava bem claro para mim: a enxurrada era mais uma convidada da festa, a mais comentada e reverenciada delas. Irmã fiel da lama e poças que adornavam toda a área da chácara, do estacionamento pastoso e escorregadio ao gramado quase invisível em volta da pista de dança.

No começo da noite, a chuva dominadora lavava e levava as moças, entre gritinhos animados e enconjúrios, a enfiar penosamente os saltos elegantes no lamaçal, instigava os homens a arregaçar as calças engomadas, tentando evitar o inevitável. Uma resistência venal que logo dava lugar, com a ajuda de goles generosos de cerveja e uísque e expectativa alvoroçada de namoro e momentos de luxúria, a uma entrega sem cerimônias à toda a água que imantava o lugar.

E aí a festa se fazia desapegada. Entregues ao prazer das águas e dos risos, homens e mulheres caíam lúdicos no forró da chuva. Tiravam o excesso de umidade dos olhos para enxergar melhor a noite e o alvo escolhido, e, assim, como moleques brincando ao relento, perdiam a elegância sem culpa. Eles corriam de uma palhoça para a outra, pescando as gotas vadias ou andavam em passos lentos, deixando que a pele se banhasse frivolamente. Elas bailavam no meio da chuva, escorregadias, para se secarem depois resolutas e fingindo carência nos braços sempre abertos dos namorados e das amigas. Desse modo companheiro e compreensivelmente servil, eles e elas cortejavam promiscuamente a chuva, de bem com a vida numa Boa Vista chorosa, prenhe de água e promessas de felicidade.

Fotos de chuva em Roraima: Thiago Orihuela

terça-feira, 21 de julho de 2009

Contundência e beleza

Estão lá as músicas longas, o indubitável virtuosismo do guitarrista Omar Rodriguez-Lopez e a voz vigorosa e técnica do excelente Cedric Bixler-Zavala, pontas de lança ferozes acompanhados de uma zaga competente, formada por Thomas Pridgen (bateria), Juan Alderete de la Peña (baixo), Isaiah Ikey Owens (teclado), Marcel Rodriguez-Lopez (percussão) e Adrian Terrazas-Gonzales (flauta, sax tenor, clarinete baixo e percussão). Mas, o que se ouve em Octahedron(2009), o quinto CD do excepcional The Mars Volta, não é o mesmo e esfuziante som com o qual aquela turma costuma embebedar os fãs.

A mudança na sonoridade do último trabalho da banda pode até parecer estranha, mas nem de longe é decepcionante. Pelo menos para mim. Tentaram inclusive – os fãs e críticos mais radicais – desmerecer a obra exatamente pelo o que ela tem de melhor, a sua construção mais pop e acessível. Diferentemente do difícil e esquizofrênico, The Bedlam in Goliath(2008), álbum anterior, neste o The Mars Volta está mais lúdico, melodioso e, podemos até arriscar, afetivo.

O que não falta no disco são belas melodias, devidamente ilustradas pela guitarra matadora de Omar e encorpadas por arranjos inteligentes, levados com maestria pela banda inteira. Octahedron tem baladas definitivas, dessas que vão certamente marcar a carreira o grupo, como “Since we’ve be Wrong”, que abre o CD tensa e progressiva, com guitarra agridoce, para envolver depois com uma lancinante interpretação de Cedric em emocionantes sete minutos e meio. Tão intensa quanto “With Twilight as my Guide”, uma composição tristíssima, valorizada até a última nota pelo afinado vocalista. De corroer a alma.

Entre as viagens psicodélicas e progressivas, tão próprias do grupo, há intervenções sonoras mais pesadas, outro traço característico, mas, a exemplo das baladas, do mesmo modo bem digeríveis. São os casos de “Teflon”, um rock acelerado e com direito a falsetes de Cedric, e da curta “Cotopaxi” (3’38”, um flash dentro da prática de prolixidade da rapaziada), canção explosiva e com guitarra e percussão numa levada alucinada. Repare na transição da mudança de andamento da composição feita com extrema harmonia dentro do contexto da música.

Tudo o que foi dito aqui, essa mudança de tempero e agressividade do The Mars Volta não quer dizer que a banda perdeu seu caráter irrequieto e contemporâneo. Aqui e ali há pinceladas de experimentalismo, daquela “velha” modernidade dessa turma do Texas. Isso pode ser visto nos teclados viajandões e nas guitarras distorcidas em “Halo of Nembutals” ou no progjazz da bacana “Luciforms”, que fecha de forma magnífica o disco.Octahedron é um disco de responsa, um The Mars Volta mais careta, mas igualmente contundente.

Cotação: 4

Conheça os oito lados de Octahedron em quatro tentativas possíveis:

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segunda-feira, 20 de julho de 2009

Nasce um pequeno clássico

The Fiery Furnaces é uma daquelas bandas que despertam inegável interesse a cada disco. Quando ouvi o bacanudo Blueberry Boat(2004), possivelmente o único disco desses norte-americanos lançado no Brasil, percebi que tinha ali algo diferenciado, uma sonoridade distante dos modismos e do lugar comum. Um som taludo, cheio de nuances e experimentações, com variações ousadas de andamentos nas músicas que chegavam a desorientar o ouvinte. E eis que os irmãos Friedberger(foto) voltam a surpreender com I’m Going Away(2009).

A maior surpresa desse sétimo disco dos prolixos Matthew, compositor e multiinstrumentista, e Eleanor Friedberger, vocalista talentosa, é exatamente a guinada pop que resolveram dar em sua carreira. Para quem ouviu alguns dos trabalhos da banda, é estranho dar de cara em I’m Going Away com uma espécie de reverência ao rock’n roll no que ele tem de mais radical, no sentido mesmo “back to black”, pedindo emprestada a expressão da porralouca Amy Winehouse.

O álbum é uma deliciosa e consistente volta ao rock básico, aquele que tem raízes no folk, country e na música negra, potente mistura que o gerou. Claro, com uma pitada da modernidade e inventividade que marcaram a trajetória do Fiery Furnaces. Já no cartão de visitas, a country-rock “I’m Going Away”, a dupla engata uma composição viciante com os elementos que darão as cartas do álbum jornada adentro: piano rocker, riffes marcantes de guitarra e melodias beirando o pop.

É fácil identificar algumas pérolas de fácil digestão no disco. Há as baladas, como a bipolar “Drive to Dallas”. Cool e envolvente, é canção esperta, com um que de soul music para dançar agarradinho, interpretada com devoção e tesão por Eleanor. Uma grande melodia que, lá pelo meio, ganha contornos estridentes, trazendo de volta o lado experimental da banda com a guitarra quebrando tudo, para depois voltar a velejar mansa, agradável. Ainda mais calminha, “The End is Near” apela para uma arrebatodora elegância para desarmar de vez quem a ouve.

Um pouca mais adiante o disco engrena uma série de composições irrepreensíveis, deixando claro o senso melódico afiado de Matthew. “Even in the Rain” é uma achado pop, um pequeno clássico da banda com seu refrão que teima depois em sair da cabeça. Assim como “Staring at the Steeple”, a música seguinte, com uma guitarra mais pesada, que remete ao rock setentista de Led Zeppelin e Black Sabbath, quando essas ainda alimentavam uma influência bluesy. A seqüência matadora segue com a encantadora “Ray Bouvier” e a ganchuda “Keep me in the Dark”, com um riff de guitarra cheio de personalidade e sensualidade à flor da pele.

I’m Going Away é dessas obras que devem se tornar referência com o tempo, um Fiery Furnaces da melhor lavra. É, para mim, o melhor produto de uma banda que amplificou o lado pop, antes adormecido, exercitado com extrema sabedoria. Discaço. Já está, sem dúvida, na minha lista dos melhores do ano.

Cotação: 5

A porta para o som da dupla:

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sexta-feira, 17 de julho de 2009

Pra cima e avante

Uma música moleca teima em se repetir, incansável, no meu tocadisco. Um reggaezinho moderno e malemolente, bem defendido pela voz roufenha de uma das mais talentosas cantoras brasileiras da novíssima geração. O nome da composição é “Cangote”. A moça cantadeira tem alcunha pueril, mas produz um som encorpado, desencanado: Céu. Acaba de ser lançado Vagarosa(2009), o segundo e esperado CD da bela, depois de um hiato de quatro anos de lançamento do debut, Céu (2005).

O que me agrada em Céu é essa vontade da cantora e compositora, como prenuncia o seu nome, de procurar o ilimitado, de não se acomodar em praias calmas. Depois do superelogiado álbum que a apresentou ao mundo, a artista retorna mais amadurecida, disposta a buscar uma batida própria, contemporânea. E é isso que salta depois da primeira audição de Vagarosa: um eco de modernidade que transparece em praticamente todo o trabalho.

A contemporaneidade imanente no disco está nas melodias personalistas, todas compostas por Céu com uma ou outra parceira, prenhes de uma aura new hippie (a natureza é personagem ativa) mas travestidas de uma linguagem atual, e, principalmente, nos arranjos. Toques de eletrônica misturam-se ao reggae, como na já citada “Cangote”, um verdadeiro achado, e ao psicodelismo em “Nascente”, melodicamente uma das mais fracas do CD.

Os beats modernos ajudam a dar volume à “Comadi”, uma boa canção que se utiliza de uma levada jazzística da guitarra e bateria e de metais precisos para falar de uma mulher forte, uma “ponta de lança que às vezes se amua com tamanha herança”. A artista mistura numa mesma música, com charme e eficiência, imagens antigas e batidas modernas, originando um caldo grosso e instigante. Caso também de “Rosa Menina Rosa”, uma das primeiras músicas gravadas por Jorge Ben, que ganha aqui uma versão lenta e hipnótica, com a ajuda dos Los Sebozos Postizos.

A participação dos Sebozos é bastante sintomática da atual fase de Céu. A banda, que conta com integrantes da Nação Zumbi, como o baterista Pupillo e o baixista Dengue, empresta à música uma sonoridade que tem como base a música afro-latina, o dub, e a black music de ponta. Os dois participam de algumas faixas de Vagarosa e fazem parte, no Nação, de um grupo de músicos brasileiros que buscam referências musicais diversas para criar um som novo, autoral. Céu também é assim, como outros convudados do disco a exemplo de Fernando Catatau e Curumim, dois outros expoentes da moderna música brasileira .

A fusão rítmica potencializa em muito o trabalho de Céu. Em “Bubuia”, uma das mais radiofônicas do álbum, elementos musicais árabes encontram um baixo e bateria cadenciados numa criação de suíngue esperto. Na bem legal e inventiva “Papa”, tango e dub, fazem um pas-de-deux irressistível. A latinidade de “Cordão da Insônia” chama, por sua vez, para dançar.

Em raros momentos, o disco derrapa ou cai numa certa acomodação. O momento cansei de ser moderna está no sambinha malandro “Vira Lata”, com participação especial do grande Luiz Melodia, cuja voz se casa à perfeição com a da dona do terreiro, canção que finca os pés na tradição, mas conquista o ouvinte com seu jeitão clássico e requintado. Dispensável: a estranheza sonora de “Ponteiro”, com seu teclado demente e ritmo impreciso. No mais, é um disco corajoso e bem arquitetado. É Céu confirmando sua personalidade marcante e antenas ligadas com o que é feito de mais interessante aqui e mundo afora.

Cotação: 4

Experimente um desses:

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quinta-feira, 16 de julho de 2009

Ah, quantas lágimas

“Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu”, cantou um dia Chico Buarque chafurdando em sua genialidade. Nesses dias é bom olhar para si próprio e tentar aprender algo de bom, um fiapo que seja de sabedoria. O australiano Scott Matthew deve ter passado por algumas longas sessions dessas para produzir o choroso e terno álbum de nome tão extenso quanto o desejo do artista de se desvelar: There Is An Ocean That Divides And With My Longing I Can Charge It With A Voltage Thats So Violent To Cross It Could Mean Death (2009).

There is An Ocean... é o segundo trabalho desse cantor e compositor que resolveu montar base em Nova Iorque para conquistar um público maior. É um álbum emotivo, de uma lentidão proposital e, acredito, conceitual. Há em cada música do disco um certo vagar que acompanha as letras descaradamente intimistas. O acento folk, na maioria das composições, é consubstanciado por quilos de violões acústico, pianos e arranjos de cordas climáticos e, claro, melodias rebuscadas.

Esses penduricalhos instrumentais estão a serviço do universo extremamente pessoal do artista exposto nas letras. Em “Ornament”, Matthew revela que se drogou e viveu muitos lados da vida, devidamente “amparado” pelo coisa ruim: “O próprio diabo me ensinou os álibis”, canta nessa que é das raras músicas mais alegres e próximas do rock do disco. O resto são músicas confessionais onde o amor está quase sempre levando a pior: "Meu amor mente além do oceano”, diz na canção sussurrante e lentíssima que dá nome ao trabalho.

Ainda que aponte uma luz no mais escuro dos oceanos, como em “Friends and Foes”, o que se vê é um sujeitinho com tendências à depressão, cantando composições melancólicas, mas, calma, não o suficiente para dar sonolência no ouvinte. Porque há beleza melódica nelas, exemplo da linda “White Horse”, que começa com um ar mais épico abrindo para uma interpretação intensa e emocionada de Scott Matthew. Casos também da música de ninar “For Dick” e da elegante “Every Traveled Road”, cujo timbre do cantor lembra a impostação vocal de Elvis Costello em seus tributos a grande compositores.

Há ainda, como destaque, a voz marcante de Matthew que ajuda a suportar suas tristes confissões e baladas tocantes. Soa delicada, honesta e, o que é melhor, curtida por uma técnica apurada. O que incomoda em There is An Ocean That Divides... é sua obsessão em ser cru demais e sistemático em seu foco introspectivo. Essa linearidade reforça a integridade do álbum e sua personalidade, mas cansa um pouco os ouvidos. Faltou, perdão pela brasileira liberdade poética, samba. Não deixe, porém, por conta disso de dançar a valsa.

Cotação: 3

O ticket para o vale de lágrimas:

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quarta-feira, 15 de julho de 2009

O natal em que seu Flores dançou o tango

Seu Flores fumava maconha com o nascer e morrer do dia. Nas noites de natal, seus olhos miúdos e circunspectos rivalizavam com as bolas vermelhas e lustrosas da corpulenta árvore natalina entronizada no canto da sala. Nesse momento de gala e confraternização, seu Flores apenas refletia mansinho, sentado por sobre sua gordura desavergonhada na melhor poltrona da casa. Afinal, patriarca tem seus direitos, mesmo sendo fã confesso da erva e sob o guarda endurecida dos filhos que vinham lhe pedir a benção com cara de desaprovação.

Não faltava o sussurro aviltado de um dos cinco filhos corroendo a noite buliçosa. Seu Flores imaginava as letras soltas se juntando preguiçosas como nas ondulações leves do mar traiçoeiro que convergem para a onda ruidosa. O texto seco e chulo, com poucas variações, que devia seguir no rumo do lugar comum: Já pensou! Um velho de mais de sessenta naquela situação. Mundo virado este! O bom velhinho, bomconheiro, imaginava tudo e ria com o cantinho da boca, muito tranqüilo e bem postado no alto de seus honrados sessenta e poucos anos.

Demorou pouco, o tempo já cronometrado por seu Flores – toda noite de natal era assim, como um velho filme riscado a rodar intermitente na parede sem cor da casa centenária – para que a filha mais velha, sempre ela, viesse segredar conselhos. Ela escolhia com cuidado as palavras, emolduradas por uma voz cansada, mas entranhada de carinho e respeito.

- Meu pai, preserve seu nome. O senhor não tem mais idade pra essas coisas...

Seu Flores ouvia paciente, segurando com força a mão nervosa da filha, meneando a cabeça assertivamente entre uma e outra respiração mais forte da professorinha que, ele sabia, mal amada, falando perto de seu ouvido para que ninguém mais ouvisse. Pensava, no meio do discurso aconselhador, na bituca repousada no fundo do bolso do paletó puído que ele deixou guardadinha para a madrugada alta, quando, afastado de todos e de todos os olhares, ele falava com Deus.

Naquela noite, antes de conversar com Deus, seu Flores tinha, porém, planos diferentes. Um corte seco programado naquele velho longa-metragem com os mesmos e displicentes atores, a mesma maionese metida a besta, o mesmo peru recheado, a mesma promessa de alegria e esperança vendidas de meia em meia hora em cada quadrante da sala como produtos de primeira necessidade. Seu Flores, como planejado há um mês, iria dançar o tango.

Essa vontade foi se agigantando desde a última semana de novembro, quando ouviu um lancinante e bêbado Carlos Gardel na vitrolinha rubra que mantinha acesa em seu quarto desarrumado. Um vinil gasto escarafunchando desejos empaludados. Agulha riscando afiada o cérebro.

É isso que dá, argumentou depois para si mesmo, um velho ter horas a fio e a fio para pensar na vida. Os desejos reclusos teimam fatalmente em dar as caras, de um jeito insolente, soberano, cobrando passos não dados, sugerindo loucuras rabiscadas, mas nunca corporificadas. Naquele exato instante, teve a completa certeza, sorveu um gole rejuvenescedor da invisível fonte da juventude.

- Que porra de velho, nada! – Decretou na hora.

E foi assim, depois dos conselhos sibilantes da professorinha malamada, que seu Flores abandonou a mão da filha, que ficou solta no ar como um balão à deriva, e se dirigiu solene para o meio da sala diante da pequena multidão familiar. E tartamudos, os parentes viram, ao som de um indigente jingle bell, os passos decididos daquilo que o velho maconheiro chamava de tango. Primeiro, sozinho, num balé algo sonolento, em câmera lenta, mudando o roteiro daquele filme natalino, arrastando o sapato preto na cerâmica de mau gosto. Depois, arrastando a neta desarmada em volteios alucinados, derrubando a porcelana antiga, quebrando taças de cristal, espalhando farofa, feito confete de carnaval, por todo o raio de sua pequena e incontida loucura.

Corte seco naquele velho filme. Com um sorriso largo, como há anos o rosto enrugado não via mais, o velho foi desacelerando seu tango, com a neta nos braços, até parar enfim em um lance acrobático, clássico, a réstia de sua piedosa loucura. Agradeceu a todos os espectadores, ainda em estado vegetativo, com um meneio gracioso e foi para o quintal com a alma lavada. Sentou debaixo da mangueira frondosa, pegou a bituca dentro do bolso, acendeu e começou seu diálogo com Deus. Pronto – pensou entre baforadas suaves – estava novamente pronto para a vida.

Ilustrações : The Last Tango - Juarez Machado e Tango Room - Juarez Machado

terça-feira, 14 de julho de 2009

Regurgitando o passado

Estava com saudades de ouvir um trip hop genuíno, carregado daquela melancolia avassaladora que escorre entre cada nota da música, entre cada frase suspirada. Aquelas canções doídas, downtempo, assombrosas em suas viscerais viagens alma adentro. Dei de cara então com The 39 Steps, um duo inglês que lançou seu primeiro projeto sonoro, o álbum Coming Clean (2009), um disco que tenta retomar a magia criada por pioneiros do gênero, os excepcionais Moloko e Portishead.

O que é legal em Coming Clean é que o DJ e produtor inglês Kato e a cantora convidada Laura Fowles não buscam dourar a pílula nem inventar a roda. Apesar do autor do projeto chamar a música que faz de “Dark Soul”, talvez apenas para efeito de marketing, o que há na verdade é uma puta reverência ao trip hop de raiz, aquele que sufoca o fã do gênero com fartas injeções de tristeza e estranhamento.

Impossível não remeter a música da dupla aos primeiros passos de Portishead e Moloko na construção musical do trip hop. Do primeiro, é possível pescar com vara curta a melancolia e clima opressivo, incluindo detalhes como o barulho de vinil riscado, em músicas como a linda “I'll Be There” ou na seqüência impressionante de “The Pinch” e “Piano Killer”. Nessas duas, a paisagem soturna toma conta do ambiente com a voz firme de Fowles ora pendendo para um timbre infantil ora indo para o sensual, Lolita de todo. Repare ainda no efeito “voz dentro de caixa” que torna tudo mais estranho e instigante.

De Moloko, vem o lado mais solar e pop de Coming Clean, se é que podemos perseguir algumas réstias de luz nele. Mais palatáveis, composições como “Road To Where?” e a cinematográfica “Ghost Writing”, classuda e estilosa, dão um descanso ao castigado coração do ouvinte. Há ainda esparsos momentos em que The 39 Steps buscam inspirações no jazz, como na cool “Since You”, uma tentativa que acaba sendo soterrada, no frigir dos ovos, pelas pás de programação eletrônica jogada veementemente por Kato (o cara da foto).

A comparação com Portishead e Moloko não significa que temos aqui um disco à altura dos que fizeram aqueles no limiar do trip hop. Mas, Coming Clean é um álbum digno, bem arranjado e com uma vocalista escolhida a dedo. Daqueles que nos faz lembrar que o gênero em questão nunca vai cair em desuso e que ainda pode render obras de grande apelo emocional. Vale escutar, mas, sempre tentando resguardar o coração, viu.

Cotação: 3

Abandone-se:

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