quarta-feira, 16 de maio de 2012

Groove pra curar a alma


Depois de 9 anos, B Negão retorna com a mesma inspiração
B Negão conseguiu de novo. Há nove anos, um som pesado e com invejável groove veio encartado em forma de CD em uma revista atrevida. Em 2003, o louco Lobão estremecia as bancas de revistas com uma publicação metida a independente e cheia de promessas de sonoridades alternativas, a falecida precocemente Outracoisa. E o debut não poderia vir melhor acompanhado. Trouxe grudadinho na capa meio sem graça o álbum Enxugando o Gelo. O primeiro solo do parceiro de Marcelo D2 no explosivo Planet Hemp mostrou suas armas: uma mistura iluminada de rap, rock, funk e outros esquentados ritmos de gênese negra que marcou toda uma geração. Um inegável clássico que em 2012 ganhou um irmão, tão robusto e instigante quanto o primogênito. Sintoniza Lá (2012) é o álbum que B Negão devia a ansiosos fãs, que de tão cansados de esperar o sucessor de Enxugando, já até haviam aposentado as expectativas. Mas, que nada. Repleto de metais acachapantes e energia pra lá de positiva eis que o cara retorna com os sensacionais instrumentistas do grupo Seletores de Freqüência para mais uma vez fazer história. Esse, não tenha dúvida, é pra tocar no baile.

Vídeo alternativo de “Reação(Panela II)”:



Difícil não fazer comparação com o álbum de 2003. O rapper/sambista/roqueiro/funkeiro carioca volta inspirado na mesma freqüência e com as referências musicais, e até algumas novas, ainda mais lapidadas e que moldaram sua trajetória nos palcos. Ex-Planet Hemp, ex-Funk Fuckers, ex-Turbo Trio e figurinha fácil nos discos de amigos em louváveis participações especiais, o cara passou esse tempo todo afiando ainda mais seu talento de misturar gêneros musicais prá lá de dançantes. Com seu segundo trabalho solo, conseguiu chegar mais próximo da batida perfeita do que havia tentado o parceiro D2. Foi, na verdade, além disso. Estimulado por uma vontade incontrolável de dar toques, de gerar informações que ajudem as pessoas a crescer, a encarar o mundo de frente, foi atrás da “cura pelo som”. De uma música que reconfortasse almas açodadas por esse mundo “panela de pressão”, esse império que é “artigo perecível”. Tá tudo lá nas linhas e entrelinhas de letras com mensagens politizadas ou naquelas que são simplesmente elegias ao poder exorcizante do groove e da música negra.


B Negão e os seletores: sintonizados com a black music
Sintoniza Lá e B Negão acima de tudo doido para fazer você dançar. Sintonize então logo na primeira música, “ÉA. Alteração”, em que os metais “em brasa, faiscando”, como ele mesmo sugere numa das letras do disco, introduz um rap/funk estralando de bom. “Música gerada para causar alteração”, conceitua de cara, convidando o ouvinte, provavelmente já afoito nessa hora, a aproveitar aquela “energia de primeira qualidade em movimento”. Fácil de embarcar na metaleira dos Seletores de Frequência, tinindo na vontade acesa de fazer você mexer o corpo, sem nunca deixar de lado o discurso político e cheio de pequenos achados de B Negão. De quebra, a música ainda conta, no coro, com a indefectível voz miúda e agradável da cantora Céu, parceira de todas as horas do rapper. Sorte dele. E aí, já com o cara do outro lado sintonizado e alterado, os seletores atacam com um samba rock de primeira, suingado e de refrão pegajoso. “O Mundo(Panela de Pressão)” é a seqüência perfeita pra música de abertura do CD, abrindo espaço definitivamente para aquele mundo de possibilidades e sons que os cariocas sabem ocupar muito bem.

Escute o dub “Sintoniza Lá”:


E se você espera aqueles dubs e raggas e reggaes espertos que B Negão engendra para viagens mais espertas ainda do ouvinte, o cara oferece duas ótimas pedradas. “Reação(Panela II)” é um dub traqüilinho, remédio certo para aqueles que estão com o “HD cheio” e precisam dar uma relaxada de leve, alinhados, é claro, com a mensagem esfumaçada e crítica: “O recado já foi dado, mas o nego não está ligado. É que o barraco está muito zoado”. Letra direta, sem qualquer apelo poético ou literário. Estilo B Negão e Seletores de Freqüência. Pra comunidade se tocar, é só sintonizar lá. Melhor e ainda mais viajante é a superbacana música que dá nome ao álbum. “Em qualquer parte do universo, em qualquer parte do planeta, é tudo uma questão de sintonia. A freqüência de energia de alta qualidade. Sintoniza lá”, canta o rapper nessa composição que convida inexoravelmente para a pista e para algumas cositas mais. “Isso é barulhinho bom, saindo de seu estéreo”, complementa o cara. E é verdade. É só surfar na onda desse som delicioso e bem executado.

Enfim, em Sintoniza Lá, tudo é uma questão de groove. Tem que encontrar o beat e a batida exata para que o som flua e flutue na medida certa. B Negão canta em “Chega pra Somar no Groove”: “Todo som se resolve quando chega no groove”. O carioca sabe bem o que fala e o que faz, para a alegria de nossos pés e coração que batem e se movimentam na sintonia do tambor e da música dançante, exposta feito ferida que não para de sangrar, deste disco. Sangue negro. Do melhor e mais admirável. Nesse belo CD, B Negão e os Seletores de Freqüência afinam seu lado pop com canções feitas com esmerilhamento para agradar gregos e baianos. Ponto para a produção do brother Pedro Garcia. Até quando atacam de hardcore em “Subconsciente”, a faixa mais fora de tom, uma lembrança dos tempos de Planet Hemp, a banda acerta. Até quando tocam com competência o refinamento do jazz, na boa “Vamo”, os caras ganham respeito e falam à epiderme. Sintoniza Lá é, enfim, uma seqüência sublime e bem acabada – que beleza – de Enxugando o Gelo. Discaço para levantar muita festa e fazer a cabeça de novas gerações. Vai lá. Sintoniza nele.

Cotação: 5

Sintoniza, brodim:

segunda-feira, 14 de maio de 2012

O sentimento das canções


Os ingleses do iLiKETRAiNS fazem a farra dos sentidos
Tem nomes e sabores e cores e objetos que chamam a atenção da gente de testa. E pegam-nos assim num átimo forçando de jeito avassalador a nos aproximar deles, atiçando nossa sempre ávida curiosidade. São armadilhas da vida. Ávida vida. Foi dessa forma com o iLiKETRAiNS, com esse nome de banda grafado assim como um espirro, todas as letras juntinhas, cheias de altos e baixos, coladas como casais de festa junina bem ensaiados na hora da grande roda. E eu também gosto de trens, os da infância, em seus trilhos com a mesma trilha musical sonolenta e a mansidão de resguardo para chegar ao destino. Quando ouvi Progress Reform(2006), o primeiro disco desse grupo inglês, o sonoro e delicioso nome de batismo não bateu com o que ouvi. A música não me disse muita coisa, nem mesmo com o incentivo da crítica que elogiou o trabalho, mas o nome da banda permaneceu. Veio o segundo CD, Elegies to Lessons Learnt (2007), que também passou batido, talvez por um momento açoitado de minha vida, e por fim, The Shallows (2012), o terceiro. E é desse que quero falar.

Assista ao vídeo de “Deception”:


The Shallows é uma farra para os sentidos. Como uma caminha almofadada, king size, tamanho real, com caros travesseiros de penas de ganso, onde você se deita como se abraçado por nuvens de algodão. Bom de sentir. Mas, calma, nem tudo é assim terno. Como no conto da princesa hipersensível de Andersen, há também uma ervilha embaixo do colchão. Essa farra proposta pela banda ao mesmo tempo em que amansa, deixa os sentidos tesos, acordados para os próximos estímulos. A fruição sonora se dá exatamente por uma equação rara na qual as batidas eletrônicas misturadas às cordas de uma leveza ensolarada e insidiosa dão o tom desse trabalho, desse belo acerto do iLiKETRAiNS. Os rapazes inauguram uma nova e surpreendente fase que, enfim, proporcionou o casamento do nome que me prendeu à música que hoje me prende.

Ouça a ótima “ Mnemosyne”:



O álbum começa bem, numa mesma e hipnotizante toada. As tonitruantes “Beacons” e “Mnemosyne” são eletrorocks bem elaborados, inspirados, principalmente a segunda, que trazem de carona uma leve melancólica em conflito com os bpms e a guitarra sinuosa, a cargo de Guy Bannister, esta provavelmente um dos pontos mais fortes do disco inteiro ao lado do vozeirão respeitável de David Martin. Essas duas canções trazem a tona ecos de duas grandes bandas, New Order, pelo uso equilibrado da eletrônica, e Tindersticks, pela engenhosidade das melodias e pela já citada voz de barítono do vocalista da formação. Introdução perfeita para “The Shallows”, um pouco mais rocker, com sua bateria (Alistair Bowis) marcada e baixo(Simon Fogal) sutil, uma das melhores composições. Um trio de canções pujantes e densas que revelam a maturidade do iLiKETRAiNS, que fazem aqui aquele que é seu melhor e mais bem  produzido trabalho.

Quando desacelera, mesmo não sendo os melhores momentos do álbum, o grupo mostra-se coeso em sua intenção de deixar o ouvinte em transe. Como mágicos e seus misteriosos chapelões, o iLiKETRAiNS nos guia por caminhos esfumaçados, paisagens saídas da cabeça de Tim Burton em seus filmes mais fabulísticos, nas composições lentas, climáticas, que também contam com a mesma hipnótica e grudenta guitarra. É este instrumento emaranhado à bela voz de Martin que criam um rastro onírico, sedutor por onde passam músicas como “Water Sand”, com suas cordas que remetem à matemática e envolvente atmosfera criada por bandas oitentistas, como Cocteau Twins e The Call, e a encantadora “The Hive”. Estão na mesma curva de sentimento de “We Used to Call”, a balada mais linda do álbum.

iLiKETRAiNS em ação:vocal chapante
The Shallows não é um trabalho fácil. Para gostar do disco, para entendê-lo é preciso que entremos na mesma sintonia do grupo. A sonoridade do álbum pode parecer preguiçosa para alguns e até mesmo, em certos momentos, as músicas sugerem movimentos diferentes de uma mesma sinfonia. É como se os rapazes do iLiKETRAiNS de forma compulsiva e obsessiva voltassem todo instante a um mesmo ponto, a uma mesma linha melódica. Como se saindo de uma BR por vias transversas, eles voltassem lá na frente à mesma e confortável rodovia. Mas, aquilo que sugere repetição é, para mim, o grande achado da obra. Pense: uma maçã nunca é igual à outras: por trás do formato arredondado, do mesmo sabor adocicado há sensações diferentes que as papilas bem desenvolvidas conseguem apreender. É o mesmo com The Shallows. Há apenas que saber desfrutá-lo com paciência e sabedoria.

Cotação: 4

Vá lá, os ingleses merecem:


ou:

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Cordeiro no ponto


Cordeiro posando de brega kitsch: novidade pulsante
Felipe Cordeiro é um nome que tem freqüentado rodinhas bacanas, ecoando em ouvidos de quem vive a incansável busca da nova batida. Um nome com verniz e com raiz. Sobrenome que faz todo o sentido no voluptuoso Pará, onde fez a caminha. E o mais importante, um cordeiro com substância, tenro, cevado com a consistente fusão de ritmos que fazem de Belém hoje um dos mais instigantes laboratórios musicais brasileiros. A gente sabe, o Pará está na moda, pelo menos nas vitrolas. Tem a impagável Gaby Amarantos, aquela multicolorida da abertura da novela da Globo. Teve antes disso a excelente galera do La Pupuña, que fundiu rock e guitarrada, aproveitando-se da infindável eletricidade do instrumento que é base e alma daquelas duas invenções. E tem esse menino, esse Felipe Cordeiro que explora como Gaby, o pop, e como La Pupuña, a energia da guitarra, para fazer de Kitschpopcult(2012) o que este título vende tão claramente, um mix de sonoridades ambientado com esperteza e talento. Um disco metido a popular com um bafo de inteligência que o transformou numa das bons lançamentos de 2012.

Veja Felipe no Altas Horas:


A raiz de Felipe Cordeiro é sua relação umbilical com os sons que marcam profusamente o estado em que nasceu. Carimbó, guitarrada, o brega e as fusões que a proximidade do Pará com o mar do Caribe proporcionam, tudo isso como uma esfuziante escola, como uma inesgotável fábrica de alegria pura e de sensibilidade a flor da pele. Mais do que respirar esse provocante ambiente musical, Felipe vivenciou diretamente o exercício de todos aqueles ritmos numa relação quase que osmótica. Seu pai, Manoel Cordeiro foi o maior produtor musical da região Norte brasileira de discos de carimbó e guitarrada, de artistas populares que ainda arranham a memória das novas gerações. Um homem com os pés fincados no barro paraense. Esse espírito herdado pelo pai e muito bem absorvido pelo filho é o ouro bruto de Kitschpopcult. Não a toa o álbum é dedicado muito justamente ao velho Manoel das muitas lidas. Tá lá os sons balouçantes que moldaram o gosto de milhares de paraenses devidamente lapidados por uma refinada e experiente produção, o toque de Midas desse delicioso e dançante álbum.

O cantor na capa do disco: composição brega
Por trás das canções criadas por Felipe Cordeiro está André Abujamra, paulistano raro, acostumado ao trato das sonoridades do mundo, como ficou evidenciado na época em que capitaneou o inesquecível grupo Karnak. A verve multicultural de Abujamra deu-lhe tranqüilidade para trabalhar a proposta de Cordeiro. Este paraense, competente guitarrista, era um nome conhecido da cena local. Como Chico Science e o maracatu atômico, enxergou na guitarrada, no carimbó e no brega a potencialidade e apelo pop que esses ritmos carregavam. Agregou a eles um toque moderno, uma moldura contemporânea que os aproximou da galera esperta. Abujamra aparou arestas e, no frigir dos ovos, ganhamos um álbum em que mergulhamos, sem ranços folclóricos, numa música envolvente e cheia de energia. A alta voltagem e a planejada modernidade já se mostram na primeira música do CD, “Legal e Ilegal”, uma síntese dos ritmos paraenses, azeitados por metais e guitarras sinuosas. A letra entrega um compositor inventivo, antenado com os sons e doideiras do planetas: “Aguardente no bom samba canção/Caspa do diabo no rock and roll/ Erva do amor no reggae and night/Cultura sintética no drum’n’bass/Cuba libre na salsa peruana”. Aditivos que estão no justo compasso dessa composição suingada e dançante.

Escute a delicada “Historinha”:


Suingue e tradição misturada à contemporaneidade, aliás, é o que de melhor nos apresenta o álbum. Felipe Cordeiro convence, por exemplo, quando investe sem restrições na guitarrada, ritmo construído com guitarras nervosas, como na pulsante “Lambada com Farinha”, que traz uma inesperada introdução metida à erudita, com orquestração tensa. Um toque diferente para quem busca, claramente, diferenciais na mistura a que se propõe. Lambada com Farinha... já pensou?. Pode ser estranho, mas funciona. Assim como pega bem a cabeçuda “Conversa Fora”, na qual viaja, sem pudor, no tecnobrega – sem aquelas repetições sonoras enervantes de certos grupelhos, vide Dejavu – e de quebra oferece um mantra pegajoso: “Não ponha rancor pra dentro/só jogue conversa fora”. Um bom conselho dado de graça, como diria o velho Chico Buarque. Nessa linha mais pop, Cordeiro nos presenteia com duas ótimas músicas, duas das minhas preferidas “Fogo de Morena”, um irresistível carimbó com todos os elementos que o fizeram conhecido, incluindo o coro feminino malicioso, e o brega “Fim de Festa”, desses instrumentais feitos para dançar agarradinho, de preferência com algumas doses de cachaças a requentar o sangue.

Mistura do som tem boas talagadas de tradição
Apesar de toda a influência que assimilou dos ritmos regionais típicos do Pará, Felipe Cordeiro não é um Pinduca. Debaixo da ponte de sua formação musical muita água rolou. E Kitschpopcult traz também outros sons que fizeram sua cabeça. É aqui, na minha opinião, que o disco perde um pouco de sua força, mas, diga-se de passagem, sem perder a graça. Se a levada pop rock de “Fanzine Kitsch”, que lembra absurdamente o diálogo bem humorado da clássica “Você não soube me Amar”, do teatral Blitz, cai apenas no terreno do curioso, o paraense mostra-se mais afiado e sedutor em outras batidas. São os casos da boa “Dias Quentes”, com um tom circense e letra bacana, e da linda “Historinha”, que começa lentinha, ensaiando, juntamente com a poesia bem elaboradinha, um crescente que descamba na apoteose sublinhada por um ótimo solo de guitarra com equilibrada carga regional. Um instigante final de disco, um ponto final de uma história de amor a tradição, refogada pelo moderno, que pode render outros bons achados, espero com sinceridade, da estirpe desse garoto chamado Felipe Cordeiro, um artista com nome e sobrenome. Que o Pará baixe sobre nós com toda essa sua desapegada alegria.

Cotação: 4

Bandeie-se pro Pará:

http://www.4shared.com/zip/T-P3t4I5/felipe_cordeiro_-_kitsch_pop_c.html

sábado, 7 de abril de 2012

Velhinho de tirar o chapéu

Cohen em ação: 77 anos de puro talento e genialidade
Existe uma versão de uma música tão linda quanto uma pode ser, a versão e a música, que às vezes me faz chorar. Principalmente quando estou entregue sem forças ao ruminar da tristeza nas tardezinhas, sempre elas, que caem inevitáveis e tão solenes. “Hallelujah”, interpretada lindamente por Jeff Buckley em Grace(1994), um dos meus discos de cabeceira, tem um poder inclassificável, desses que só os clássicos, as criações afinadas com a perenidade e a beleza possuem. Por trás dessa música há ainda o talento de um cara genial que elabora melodia e letra como quem se dá aos primeiros raios de sol depois da invernada, com uma rara intensidade. E é essa sensação que nos presenteia o compositor daquela música, a que me faz chorar de quando em vez, o canadense Leonard Cohen com o rumoroso Old Ideas(2012), o primeiro CD de inéditas depois de Dear Heather(2004). Oito anos após o silêncio incomodante, que não é incomum no caso desse artista, Cohen reaparece com o mesmo brilho e encantamento de quem fez de Songs of Leonard Cohen(1968) e Songs of Love and Hate(1971) indiscutíveis obras-primas da música internacional. Coeso e soberbo, o bardo mostra que o tempo, esse senhor cheio de arestas, não amainou sua habilidade de nos causar espanto e abdução.

Veja vídeo de “Come Healing”:

Não tem como negar. Um disco de Cohen aos 77 anos, e muita cachaça depois, é um acontecimento. Old Ideas é exatamente o que prenuncia seu título: um desfilar de conceitos e sonoridade que já conhecemos antes na econômica, porém referencial, discografia do músico. Nada de novo, tudo de velho nas dez canções que iluminam o álbum. E tudo isso é maravilhoso porque, como sempre fez na arquitetura musical de sua alucinada vida, Cohen destila sua poética e melodias com precisão e alto impacto. E, como manda a sabedoria, assumindo sem firulas a sua idade. Esse é sem dúvida um dos grandes baratos, um dos achados do disco. Em uma recente entrevista disse em definitivo: “Tudo o que ponho na canção é minha própria experiência. É só minha experiência". E o velhinho cheio de convicções e idéias abre o livro do cotidiano para se declarar resignado com o peso das rugas e de um passado um tanto heavy que o consumiu vorazmente. Tanta milhagem, tantas dores e amores, o estertor das horas geraram o discurso do conformismo. “Não tenho futuro, eu sei que meus dias são breves/O presente não é tão agradável, só um monte de coisa pra fazer”, canta com paixão em “Darkness”, uma das pérolas que nos oferece docemente.

Old Ideas: velhas idéias com a beleza de sempre
A herança de sete décadas em que música de qualidade e vida dissoluta caminharam assim lado a lado não poderia ser mais aprazível para nós, agraciados ouvintes. O “bastardo preguiçoso que vive dentro de um terno”, como o canadense se definiu na faixa “Going Home”, que abre espetacularmente Old Ideas, parece viver sua enraizada maturidade em estado de graça. Espiritualizado e com um discurso afiado, ele empresta suas letras, em parceria com o também produtor do álbum Patrick Leonard, para tatuarem melodias que remontam, em muitos momentos, aos mais inspirados insights de sua carreira. A reduzida produção do artista, aliás, sempre foi marcada pela qualidade, elegância e bom gosto. E é isto que podemos ver com clareza na assumpção da velhice e suas inevitáveis conseqüências que perpassa todo o último trabalho de Leonard Cohen. E isso significa também entender que esse caminho passa pela manutenção de um estilo cool, suave e tradicional de se fazer música. O Cohen de agora revisita o folk, o country e o rock classudos em arranjos que, se nada acrescentam ao passado do artista, reforçam o cancioneiro que influenciou tanta gente nas últimas cinco décadas.

Veja vídeo com versão de Jeff Buckley para “Hallelujah”:


 A beleza do repertório de Old Ideas já se inflama nas três primeiras canções, nos três primeiros relatos de experiência de vida assinados pelo “bastardo”. Em “Going Home”, citada anteriormente, o vozeirão gutural, com coro feminino em contraponto, aumentam a realeza dessa rica composição que nada deve às clássicas criações de Cohen. O coro de mulheres, tão apreciado pelo cara, está presente inclusive em todas as faixas em arranjos espertos, realçando a voz já gasta do artista, mas que ainda impõe respeito e hipnotiza. E hipnótica é a canção seguinte, a também inspirada “Amen”, pungente e dolorida com seu banjo, bateria compassada e baixo climático, bem ao estilo folk que alçou Cohen ao panteão dos mitos. Joga logo na seqüência o tapete vermelho para uma das mais melancólicas músicas do disco passar, a intensa “Show me the Place”. Um piano solitário introduz uma letra com viés metafísico: “Mostre-me o lugar onde a palavra tornou-se um homem, mostre-me o lugar onde o sofrimento começou”. De cortar os pulsos. Mas, antes que isso possa acontecer, o bardo levanta o astral com “Darkness”, repleta de frases cortantes e um teclado infernal que aproximam a canção da vertente rock and roll.

Difícil parar de destacar essa ou aquela composição em Old Ideas. Leonard Cohen sugere que trilhemos uma via em que sua alma irrequieta e sincera sinaliza curvas abruptas ou retas abusadas.  Conta num canto falado e sem cerimônia casos de corações em chagas, como na meio jazz “Anyhow”, na qual um homem se diz maltratado por uma mulher, que não consegue, mas que deveria esquecê-lo. Ou propõe um afago na sensual e encantadora “Lullaby”, uma das melhores do CD, com sua gaita chorosa envernizando uma belíssima canção de ninar. “Durma, querida, durma, os dias estão correndo, o vento nas árvores estão falando em línguas/Se seu coração está doído, eu não sei. Se a noite é longa, aqui está minha canção de ninar”. Cohen é, enfim, nesse disco, Cohen inteiro, um poeta e cantor maior que compõe com naturalidade e brilho. Ao fim da audição do álbum, temos a exata impressão de que a longa espera valeu. O cara saiu da toca para lembrar ao mundo que há um gigante atrás daquela pele flácida, vincada pelas pesadas e marcantes emoções que só um gênio vive. Taí um discaço, mais uma lição de grandeza para que as novas gerações incorporem, levantando agradecidos aos mãos para os céus.

Cotação: 5

Baixe agora ou cale-se para sempre:

http://freakshare.com/files/kr5khalp/Leonard_Cohen-Old_Ideas-2012-pLAN9.rar.html

terça-feira, 3 de abril de 2012

Cataploft

Lucas e Letícia: carícias musicais
Letuce tem uma mulher longilínea que ao dançar se perde no exercício das retas. Pareceu-me assim meio destrambelhada, em descompasso com sua altura respeitável em requebros sem jeitos e cheio de curvas que não fechavam o círculo. Como se não conseguisse resolver a equação do gesto prometido. Como se se consumisse atarantada em seu próprio ato de perseguir o ritmo da melodia. Desengonçadinha, quase engraçada. Mas, tinha uma voz poderosa a magrela alta, uma entonação e interpretação que iam direto ao ponto. Como uma reta perfeita. Toda aquela música saída da desengonçada e que parecia um rascunho bem acabado de um trabalho tão promissor, o debut Plano de Fuga para Cima dos Outros e de Mim (2009), ganhou contornos maduros e se mostrou bem encaixado no universo das boas intenções no primeiro trabalho verdadeiramente assertivo do grupo paulista. Manja Perene(2012) tem, como sugere o título, uma tendência a perenidade. É assim a cada escutada, a cada desfibrilamento das canções surpreendentes, que provocam um certo estupor no ouvinte. Primeiro porque se vemos estranhados e entranhados nas letras. Segundo porque as criações melódicas nos fazem divagar. Taí, um disco malicioso e pleno de carícias. Bem vindo ao mundo do Letuce.

Veja vídeo amador com "Fio Solto":


E quem é o Letuce? É Letícia Novaes, a moça de gestuais tortos que me impressionou em palco paulista. É Lucas Vasconcelos, na guitarra e dividindo os vocais com a parceira de música e de vida. E Fábio Lima(baixista) e Thomas Hares(baterista) completando com competência o time carioca. Os quatro trabalham a serviço de canções que não se encaixam em vibes ou tendências seguidas pela maioria das bandas que hoje atuam no cenário nacional. Elaboraram em Manja Perene uma linguagem ora suave ora visceral para falar do amor, de romance e de sensualidade. É um pouco MPB, um pouco rock, um pouco jazz, um pouco tudo isso. Uma umbigada, uma viagem pessoal e emotiva de Letícia e Lucas, o Letuce. Desde a primeira música, a dulcíssima “Pra Passear”, cantada com extremo fervor e personalidade pela impressionante voz feminina do grupo, há a intenção desencarnada de se mergulhar nas marés das paixões. Com um arranjo montado em brisa, suavezinho, a desengonçada provoca: “Tá pronto, pode vir, eu esqueci como se reza. Pra passear, pra me ouvir, meu Deus, me dê suas deusas”. Um convite a um passeio luxurioso pelas plagas que só os corações apaixonados podem desenhar.

Escute o disco:


Versos delicados e rompantes poéticos: Letuce entra em cena
E esse passeio do Letuce tanto pode fazer sonhar ou gerar declarações de amor, como numa cena de cinema, assim como no clássico Butch Cassidy and the Sundance Kid, com Paul Newman e Katharine Ross reluzentes em cima de uma bicicleta movida pelo encantamento dos dois um pelo outro e coreografada pela música de Burt Bacarah. Como na linda “Areia Fina”, cantada pelo maridão Lucas, epidérmica nos versos delicados e na melodia recalcitrante: “Coração macio, tudo que é possível. Tudo é permitido, sem grades, sem chaves”. Canção tão inspirada quanto “Cataploft”, onamatopéia tão sonora quanto inesperada para representar a impressão que o amado causa diante da rendida apaixonada: “Quando você chega é cataploft, é cataploft no meu peito”. Quem já sentiu a lâmina fina do amor, sabe que é por aí mesmo. É cataploft e pronto.  Mas, como o relacionamento não se restringe apenas à malha complexa do coração, mas também à tremulação da carne, o casal de Letuce canta também os arrepios. É o caso da sedutora e erotizada “Fio Solto”. Com uma levada sonora que lembra a psicodelia do ancestral Mutantes (repare no sintetizador sessentista da música), Letícia não mede palavras para falar de onanismo, do prazer solitário provocado por mínimos detalhes: “Fio solto na calçinha, puxo tudo, fico frouxa. É cosquinha. Essa hora do dia, essa parte do corpo(...) o arrepio é no cru, o calor é na bacurinha”. Texto cru para aquilo que é cru e nisso tem a sua graça.

Olha a cena clássica da bicicleta com, Newman e Ross:


Um pouco mais rocker é também a indie “Freud Sits Here”, interpretada com ranhuras por Letícia e a única cantada em inglês. Mesmo caso de outras filhas do rock, a deliciosa e elegante “Medo de Baleia” e a mais alternativa e adrenalizada “Insoniazinha”, duas das melhores e mais marcantes do CD. Mas, fica claro no repertório intransigente do álbum, apesar da linhagem das canções citadas nesse parágrafo, que Letuce não busca se enquadrar em segmentos, ser definido por um único adjetivo moldador ou uma escola musical. E talvez seja a diversidade, provocadora de vários pontos de viradas no álbum, o elemento mais virtuoso dessa bem cuidada obra. A banda puxa tanto para o lado roqueiro, quando assim tem que ser, como pode experimentar o lado MPB, se a hora inspirar. Se o namoro com o jazz esbarra com a letra cheia de gírias de “Loteria”, sem perder o tom e a fineza, é a Música Popular Brasileira que orienta os passos de “Sempre Tive Perna”, com suas cordas chorosas e vocal doce que lembram o gênero tão executado em barzinhos e nas vitrolinhas de uma parcela significativa de brasileiros. E por que não exercitar isso? É como diz Letícia, numa vinheta do disco, lembrando um pagode de sucesso: “Deixa acontecer naturalmente”. E é isso que os cariocas fazem em Manja Perene, deixam que o som aconteça com naturalidade, como um retrato do desejo do grupo de se mostrar por completo.

E aí, Manja Perene é assim mesmo, na minha visão desarmada de ouvinte, uma lapada de bom gosto e novidade em meio a um cenário povoado por bárbaros que cercam alguns bravos e resistentes guerreiros. Letuce conseguiu sair de um estágio probatório que prenunciava uma banda com boas idéias e grande potencial, em um primeiro disco considerado por muitos como um dos melhores de 2009, para um segundo álbum mais consistente e seguro. Um trabalho no qual se sobressai a voz de Letícia, com um pendor para o teatro e o humor, mas que se mantém impactante e equilibrada, e o talento melódico de Lucas, autor de canções espirituosas e envolventes, mas que, infelizmente, não convence muito como cantor nas músicas em que está à frente do microfone. Desse feliz casamento, na dor e na alegria, de Letícia e Lucas, de Letuce, temos uma obra homogênea que cresce a cada audição e nos faz desejar que essa união perdure para sempre. Como naqueles filmes de cinema, em que a paixão se sobrepõe ao fim trágico dos personagens principais, como os brilhantes Paul Newman e Katharine Ross em Butch Cassidy and Sundance Kid. Assim mesmo. Para degustar perene. Slow food. Para manjar perene.

Cotação: 5

Manje:


quinta-feira, 29 de março de 2012

Centelhas de criatividade


Criolo: mistura de rap, MPB e trip hop gerou grande álbum
Me sinto como o coelho atarantado da psicodélica história de Lewis Caroll. Atrasado, atrasado, atrasado. Em mais uma resenha tardia desse meu maltratado blog, eis que finalmente solto a lista já mofada dos dez melhores discos nacionais de 2011. Ano de reafirmação de uma nova MPB, vemos surgir algumas promessas, nomes já conhecidos por um time antenado de ouvintes, gente com os pés já bem firmes na estrada musical, como Cícero, Pélico, Gui Amabis e Criolo, fazendo discos inteligentes. Temos também a confirmação de talentos anunciados como Tiê e Mariana Aydar. E o retorno da musa da MPB que ajudou a desaguar um tanto de novas cantoras, Marisa Monte, com um trabalho sincero e ultra-romântico. Ano passado esteve longe de ser um dos mais reveladores e fantásticos para a indústria nacional, mas deixou antevista uma centelha de criatividade, vinda das hordas de um submundo que se mexe freneticamente e que as TVs e rádios populares insistem em não ver, que tende a se cristalizar nesta década. Pelo bem de nossos ouvidos. Afinal, como disse o filosofo baiano Gilberto Gil sobre a atual produção musical brasileira, “o problema do lixo não é mais a qualidade, o mau cheiro ou a podridão. O problema do lixo é a quantidade”. Chega de lixo revestido de luans santanas. Viva a boa música. Segue minha lista de como desopilar em tempo de vacas magras:

A Coruja e o Coração (Tiê)  - O uso farto dos instrumentos amplifica a poética de Tiê. Tudo continua intimista e confessional. Mas com outro deslumbramento. Os ricos arranjos adicionam ao disco um elemento invisível no trabalho anterior, o pop. A versão flamenca e alienígena do forró “Você não Vale Nada” é prova disso. Para firmar o nome de Tiê em nossa constelação dos grandes nomes.

Sou Suspeita, Estou Sujeita, Não Sou Santa (Annelis Assumpção) – O sobrenome prenuncia a tempestade criativa. Filha do genial Itamar Assumpção, essa bela negra faz de seu disco de estréia uma ode ao refinamento e boas idéias. Tá no DNA. Um trabalho bem resolvido que traduz a alma forte e talentosa de Anelis. Um disco com substância, desses que nossas mãos estão sempre procurando para colocar no toca-cd. 

Nó na Orelha (Criolo) – Esse paulistano, velho conhecido nas Rinhas de MCs da capital de São Paulo, entrega ao público esse que talvez seja um dos trabalhos mais bonitos e surpreendentes do ano.  Uma estréia solo de peso, repleto de poesia e mensagens políticas, sem perder a ternura jamais. Ouça “Não existe amor em SP” e “Bogotá” e tente não se contagiar. Discaço devidamente reconhecido, caso raro, pelo público e crítica.
Que isso Fique entre Nós (Pélico) - O quanto de nitroglicerina pode conter uma paixão? Pélico experimentou contar casos de amor, romances, com um desprendimento à flor da pele. O resultado é Que Isso Fique entre Nós(2011), uma espécie de delicado diário de amores perdidos. Segundo desse paulistano, o CD traz pérolas como “Recado” e “Levarei”, hinos sensíveis e bem tramados num trabalho feito para tatuar corações.

Canções de Apartamento (Cícero) - Namoro consumado com a MPB de um artista que já havia mostrado seu potencial na extinta banda Alice. Relação apaixonada que traz traços e referência de medalhões como Tom Jobim e Caetano Veloso. Mais do que isso, porém, uma estréia marcada por lindas e melodiosas canções. A maioria delas marcadas por uma poética low-profile, orgânica, prenhe de intimismo. Ouça com atenção.

Cavaleiro Selvagem, aqui te sigo (Mariana Aydar) - Depois de dois discos muito elogiados, essa cantora e compositora mostra seu amadurecimento numa obra que reúne o que ela produziu de melhor nos trabalhos anteriores. Personalidade, arranjos equilibrados, releituras diferenciadas de velhos clássicos, Aydar confirma que veio para ficar. A interpretação candente de “Vai Vadiar” e de “Passionais” são retratos perfeitos desse amadurecimento.

O Que você quer saber de Verdade (Marisa Monte) – A musa retorna reforçando o lado romântico que visitou com freqüência nos últimos discos. Há quem torça o nariz para Marisa Monte, mas com esse último trabalho ela desafia a crítica ranzinza gravando despudoradamente canções apaixonadas e bem produzidas a exemplo da pegajosa “Ainda bem” e da deliciosa “Aquela Velha Canção”. Para quem não tem medo de se apaixonar.

Baptista Virou Máquina (Burro Morto) – O disco instrumental do ano. O grupo paraibano cria texturas cinematográficas e densas nesse CD surpreendente, trilha sonora de filme. Os caras buscam no jazz, no funk, no afrobeat e no rock, o verniz para composições cheias de vida e instigantes. Ousam com um conteúdo que não dispensa improvisações e até atonalismo. Trilha robusta, com timbres e matizes ricos que marcaram 2011.

Memórias Luso/africanas (Gui Amabis) – Produtor requisito e músico de primeira linha, Gui Amabis mergulha no passado para fazer um disco de fortes sabores. Tambor e eletrônica se unem numa obra capilar. A participação de Céu, esposa do artista, em “Doce Espera”, e do seminal grupo Nação Zumbi só melhoram esse encantador trabalho. Para destrinchar aos poucos, como merece esse CD tão cheio de tessituras e belezas.

Longe de Onde (Karina Buhr) – A pernambucaninha é outra que confirma o talento exercitado no disco de estréia, o ótimo Eu Menti pra Você. Ela demonstra em canções rápidas a mesma inquietude e o espírito criativo que chamaram a atenção da crítica. Os petardos “Casa Palavra” e “A Pessoa Morre”, que abrem o disco, são reveladores de uma artista antenada com seu tempo. Desafiadora e provocativa, Buhr cativa mais uma vez sem concessões.

domingo, 26 de fevereiro de 2012

Já foi tarde


PJ se reiventa com disco impactante que marcou 2011
Black Keys:disco pop para entrar de vez no mainstream
O ano já esquenta nossa pele e eu mais uma vez me enredei nas malhas do tempo, refém submisso de longas e espetaculares férias. Sol demais e aquela languidez e ociosidade que as paisagens inebriantes inspiram na gente que tem o doce privilégio de poder viajar por aí. E, em meio a uma estertorante preguiça, o Todoouvido ficou a deriva, bem ali na praia do esquecimento com a esquina do desprezo, a espera daquele boca a boca reanimador. Depois veio o carnaval e minha vontade de fazer as pazes com o blog sambou. Hora de voltar para fechar o caixão desse falecido 2011 e tocar a vida em pleno fevereiro, tirando a poeira dos dias vãos e espreitando cheio de esperança um 2012 musicalmente contundente. Para isso, nada melhor do que a velha e tradicional lista dos bons CDs que nos ofereceram no ano passado. No geral, aqueles 365 dias marcados pelas guerrilhas da reveladora primavera árabe, pelas contumazes tragédias guiadas por insanos e suas impiedosas armas de fogo e a perda da anti-heroína Amy Winehouse, não foi dos mais ricos em termos de criações musicais. Nenhum álbum com cara de clássico foi lançado, pelo menos entre os que ouvi, talvez Let England Shake, de PJ Harvey, e El Camino, do Black Keys, se aproximem disso. Nenhuma revelação bombástica que nos tirasse o fôlego. Apenas um ano mediano com alguns discos que valem a pena ter na sua coleção. Eis aí os meus dez mais internacionais sem ordem hierárquica de importância. Na próxima resenha, os dez nacionais que mais me chamaram atenção.

Collapse into Know  (R.E.M) – Pela alegria e vitalidade de um grupo que nunca perdeu a majestade, mesmo em seus momentos menos inspirados. Pela volta da pegada rocker do R.E.M, geradora de uma legião de fãs pelo mundo todo. Por ter virado um belo testamento desses velhos guerreiros que anunciaram o desmanche em 2011.




The English Riviera (Metronomy) – Pela elegância e delicadeza de músicas como “Some Written” e “Everything Goes My Way”. Pela busca de inspiração na black music que garantiu suingue e consistência a esse disco encantador. Por terem mudado o rumo da conversa, abandonando o viés eletrônico que marcou a início da carreira dos britânicos.




 Anna Calvi (Anna Calvi) – Por ter sido o vozeirão mais impressionante do ano. Pela devassa vontade de entregar o coração ao ouvinte. Pela esperteza e singularidade dos arranjos, refinados e potentes ao mesmo tempo, que permitiram que a moça impusesse sua grande arte. Pela esperança de termos uma artista que entre para a história do rock.



Let England Shake (PJ Harvey) – Pelo espantoso poder da britânica de se reinventar a cada disco. Pela engenhosidade dos arranjos de canções matadoras com efeito de soco no estômago, reforçados por interpretações de arrepiar. Política e beleza andam juntas nas impressionantes “The Glorious Land”, uma das melhores do disco, e “The Words That Maketh Murder”.



Metals (Feist) – Pelo interessante equilíbrio que o grupo conseguiu entre o pop e o experimental. Pelas magistrais interpretações da canadense Leslie Feist. Pela beleza das melodias, que mantêm a mesma criatividade e climas do também luminoso álbum de estréia. Por emular a grande Kate Bush em alguns dos seus momentos mais inspirados.



Wasting Lights (Foo Fighters) – Pela fantástica homogeneidade de todas as canções do álbum. Pela lição de como fazer um rock urgente, espelhado em petardos como “Bridge Burning”, “White Limo” e “Back Forth”. Por terem retomado um pouco daquela sujeira que fez do Nirvana, berço de Krist Novalic, uma banda cheia de marra e talento.



Suck it and See (Arctic Monkeys) – Pelo desapego a empáfia, apesar da banda já ter conquistado seu lugar ao sol. Por um ar juvenil que impregna o disco em “Brick to Brick” e na ótima “Library Pictures”. Por contrariarem a crítica casmurra, revivendo uma atmosfera garageira que faz muito bem aos nossos ouvidos.




El Camino (The Black Keys) – Pelo definitivo casamento com o pop num disco pleno de grandes achados. Por uma estética retrô, calcada principalmente em um rock direto e dançante, que fizeram de “Lonely Boy” uma das grandes músicas de 2011. Por que o vocalista e guitarrista Dan Auerbach e o baterista e produtor Patrick Carney são os “caras”.



The King is Dead (The Decemberist) – Por terem se firmado como um dos grupos folks mais inspirados do momento. Pela escancarada simplicidade que casa como uma luva às engenhosas melodias do álbum. Pelas baladas luminosas como “Rise to Me”, “Dear Avery”, e “June Hymn”, todas de um lirismo a toda prova.




Different Gear, Still Speeding (Beady Eye) – Pela fanfarronice de Liam transformada em rock vigoroso. Por uma sonoridade crua, longe da influência beatlemaníaca que marca o bom disco solo também lançado em 2011 pelo irmão Noel. Pelo talento inato do Gallagher mais barulhento que deixou a preguiça de lado para mergulhar moleque no universo das músicas pegajosas.




Menção honrosa:

Helplessness Blues (Fleet Foxes) – Por terem reafirmado a beleza barroca de sua música que paira soberana entre o folk rock e a sonoridade medieval. Pela coragem dos norte-americanos de arquitetarem um som sem revivalismos e longe de modismos. Pelo deleite quase espiritual que é ouvir pequenas pérolas como “Battery Kinzie” e “The Plains/Bitter Dance”.