quinta-feira, 7 de julho de 2011

A dona da voz e da vez

Tudo gira em torno da voz da moça. As peças bem colocadas, calculadas, como num rico cenário operísticos onde tudo deve funcionar para que graves e agudos ganhem inteiramente o vácuo entre as bocas tonitruantes dos cantores virtuosos e os tímpanos amaciados do público no exercício do êxtase. A candidata a diva, uma britânica de pele branquinha e herança italiana no nome e na alma, parece gostar de trabalhar assim, amparada por equações exatas, orquestradas para que ela impere soberana. A estréia de Anna Calvi, uma bela dica de meu grande amigo e visionário Wagner Marataízes, com disco de estréia homônimo, é assim, esquemático, tramado com sensibilidade para que a novata pudesse expor seus impressionantes dotes vocais. E que vozeirão ela tem. É nela que se fia e é destilada cada canção de um encorpado registro fonográfico para o qual já foram tecidas todas as loas por uma maravilhada crítica. Mas, Anna Calvi(2011) tem realmente inegável encanto e é obra para se ouvir repetidas vezes até que andemos com segurança por todos seus becos e vielas emocionais.

Assista ao clip de "Blackout":



A arte de Calvi já foi comparada, pela voz e estilo único, a de musas eternas do rock, como as fantásticas Patti Smith e PJ Harvey. Comparação ousada, afinal, as duas são cultuadas e fazem inquestionavelmente parte da história de um gênero musical que vive se reinventando. A parte mais criativa e referencial, diga-se de passagem. Mas, a inglesinha é ainda, pela curta experiência de vida e amores, uma estagiária nesse universo povoado por quase deusas. O que se evidencia em seu primeiro álbum é o distanciamento da crueza rocker e radical que tanto marcou os primeiros trabalhos de Smith e Harvey, provocado, no caso da estreante, por uma produção mais cuidadosa e cartesiana. Só para traduzir melhor, pensando na segunda cantora da frase anterior, Anna Calvi está mais para Bring you to my Love(1995) do que para um Dry(1992), este uma peça de artilharia devastadora. Isso, contudo, não tira o brilho e a contundência de um trabalho raro e incandescente. Nossa cara iniciante já nos dá, em sua primeira investida, muito pano pra manga.

Voltemos então à voz de Calvi, cheia, diferenciada, que vai, no álbum de estréia, de registros suaves, líricos, a intervenções mais raivosas, tudo sempre a serviço de um rock and roll engajado e sofisticado, sem grande apelo popular, mas longe de ser intransponível. E ainda, o que mais marca, uma voz com intensidade dramática e convincente carga de verdade que escorre por entre os dedos de cada palavra cantada por essa artista que, sem rodeios, ama o que faz. Espertamente a voz da moça só nos é apresentada depois de uma música introdutória, “Rider to the Sea”, instrumental climático que lembra trilha sonora de western spaghetti, com suas cordas chorosas, naquela clássica hora do esperado duelo ao entardecer. Calvi surge então sussurrante na linda “No More Words”, composição que remete a PJ Harvey, poderosa e prenhe de angústia, fluido veículo para as injeções de sensualidade aplicadas sem parcimônia pela cantora. Aí de nós, “obrigados” a ouvir essa garota cantando apaixonadamente e sem compaixão no pezinho de nossos ouvidos “oh,oh my Love”.

Escute a ótima "I'll be your Man":



Quem prefere uma paixão mais radical, Anna Calvi oferece, logo a seguir, argumentos fortes e suficientes para conquistar também esse segmento menos romântico. “Desire” é uma das canções mais rasgadas e rockers do disco, na qual a talentosa artista solta de vez a afinada voz, inapelavelmente, mostrando todo o seu alcance. Ou seja, três músicas depois e a munição está posta sobre a mesa. E a gente, do lado de cá, com as mãos para o alto, ficamos pasmos diante da deliciosa descoberta. A partir daí, entre composições digeríveis e outras nem tanto, a britânica vai cada vez mais conquistando nosso respeito com seu vozeirão. E, como se isso não bastasse, a loirinha conta, a seu favor, com músicas inspiradas e que contribuem para seduzir de vez os inebriados ouvintes. Nesse quesito, o álbum chega a fazer algumas concessões, mesmo que não tão fáceis, ao pop, caminho com o qual ela não se sente muito à vontade. É o caso das mais comportadas “Blackout”, a mais fraca do CD, e de “Suzanne and I” , com guitarra, a cargo da própria Calvi – outra boa surpresa desse trabalho –, mais apática do que normalmente do que se vê sendo executada no trabalho.

Melhor mesmo é ficar com a vertente mais gótica e entranhada do disco. Momentos em que Anna Calvi se entrega a um rock profundo, com sonoridade próxima do experimental, possuída por demônios próprios que dançam em torno de suas próprias dores e mistérios. Amparada por arranjos suntuosos, a artista provoca nossos instintos. É épica e caudalosa em belas melodias, como “Firts we Kiss”, uma das minhas preferidas, cuja dramaticidade da canção é ampliada pela voz potente da inglesa, e “Desire”, de refrão contagiante. A magia continua com “The Devil”, de tom fabulístico, e o suingue da ótima “I’will be your Man”, onde o vocal da cantora dialoga instigantemente com uma guitarra pontual. Anna Calvi encerra com “Love W’ont be Leaving”, com percussão marcada e cordas atmosféricas, uma das mais ousadas desse grande álbum. No fim dessa aventura sonora, fica a impressão de que nos deparamos com uma artista inventiva, pronta para encarar o mundo com uma música inteligente, sem devaneios, rock de gente grande com definida pretensão de fazer história.

Cotação: 5

Vai encarar?:

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ou

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terça-feira, 5 de julho de 2011

Sobre cachaça, fuscas e sacanagem

Itamar Franco pegou o elevador e desceu na cobertura onde os mortais não colocam os pés. O topetudo se foi deixando aquela profunda impressão de perda nos conterrâneos mineiros, que se despediram dele ao som da emblemática “Ó, Minas Gerais, quem te conhece, não esquece jamais”, hino usado de praxe nos enterros de autoridades que deixaram alguma herança para um povo. Perda ligada à memória de um homem que teria sido honesto na política, daqueles que fogem do lugar comum e têm na ética uma escola com lições a serem divididas com todos e por todos. Lembro de Itamar em momentos estanques, em situações ligadas, contudo, menos aos seus esteios morais, que os colegas de profissão gostam de citar no velório com falsa consternação, e mais a atitudes tão sofregamente humanas e cotidianas, que provavelmente, são as que vem a tona na cabeça de quem viu o ex-presidente em ação.

Uma delas era o seu apego pela pinga. A branquinha. Era a “maldade” que, de vez em quando, escorria venenosamente da boca daqueles que gostavam de detratá-lo. Mentira ou verdade, esse gosto particular nunca chegou a pesar nas costas daquele homem com topete vistoso, a la Elvis. Além do que, como todo bom mineiro, o amor pela pinguinha, que tem em Minas forte tradição e os melhores e mais qualificados produtores, é mais um sentimento cultural do que exatamente um pecado mortal. Para quem não lembra, Itamar, em reconhecimento radical à popular bebida, instituiu o 21 de maio como Dia Nacional da Cachaça. Minha pobre e castigada memória não alcança notícias sobre qualquer escândalo envolvendo o topetudo que tenha sido provocado pelos eflúvios da “marvada”. Até porque é prática dos nascidos nas Minas Gerais fazer tudo caladinho, como muita discrição, ou como prefere nosso rico léxico, mineiramente. Mais uma prova, respeitosamente falando, de como Itamar era um representante legítimo de sua gente.

A única lembrança de algo próximo a um escândalo e outros dos parcos registros do passado que me levam a Itamar Franco. Esse foi rumoroso e fez a fama, vejam só, de uma colega minha de faculdade. Antes de ser achincalhada pelo Brasil inteiro, Lilian Ramos foi estudante de comunicação, daquelas mais apetitosas e provocadoras de fantasias sexuais entre os meus amigos de classe. Era espevitada a moça, alegrinha mesmo, mas não me recordo de tê-la vista sem calcinha em uma aula teórica qualquer de jornalismo. Despojada que só e ao lado de um festivo Itamar, foi assim que ela foi flagrada super animada no carnaval de 1994. Ora, ora, machismo de lado, a danada só podia estar com más intenções ao postar-se daquele jeito desenvoltinho, bem colada ao presidente da república. O marketing pessoal funcionou na época. Durante alguns dias a moça, definida pela jornalista Thaisa Galvão como “modelo de segunda categoria, atriz de terceira e oportunista de primeira”, foi caçada pelos flashes e imprensa afoita. Durante alguns dias, Itamar, até então mineirinho a toda prova, teve que viver a vergonha da quebra de padrão de comportamento. De qualquer forma, foi uma página deliciosa e francamente humana de nossa história no capítulo dedicado à malícia.

Por último, Itamar provocou em mim e em milhares de brasileiros que tem no carro um irresistível ícone o fim momentâneo de uma dolorosa saudade. Em 1993, uma época em que já havia sido decretada a morte do fusca, o fusqueta, o fusquinha, o presidente provocou a fabricação do último modelo fabricado no Brasil do veículo mais popular e simpático que tivemos. Prateado e garboso, 13 mil besourinhos reluzentes, apelidados carinhosamente de “Fusca Itamar”, voltaram a circular em ruas e avenidas. Era outra paixão nacional que o presidente homenageava e uma resposta nacionalista a invasão de carros importados, liberada pelo seu defenestrado antecessor, o extravagante Collor de Mello. Por uns instantes, em meio a um Brasil economicamente instável, tivemos a sensação da volta de tempos felizes, nostálgicos, nos quais o fusquinha era um dos símbolos mais exatos. Itamar deve estar andando de fusquinha agora onde estiver, talvez ao lado de uma bela e fogosa morena. Que ele fique sempre assim, mineiramente, bem feliz na memória de todos nós.

quarta-feira, 29 de junho de 2011

Bendita herança

Todos somos frutos de heranças, quer sejam culturais, genéticas, filosóficas e políticas. Somos o que somos porque antes de nós houve já quem moldasse o mundo à imagem e semelhança do homem. Sorvemos assim as características de nossas famílias e as influências que, de Platão a Bill Gates, mudaram com o jeito da gente se relacionar com o planeta e com o próximo. Na música, há quem tente negar essa inexorável verdade. Filhos de artistas famosos fogem ou subestimam o sobrenome com medo da inevitável comparação ou do menosprezo, por parte da crítica, da personalidade em detrimento daquela de quem os pariu. Outros entregam-se ao que é óbvio e exploram, da maneira mais saudável possível, o DNA que corre em suas veias. É o caso de Anelis Assumpção, ou Anelis, como preferiu ser chamada artisticamente a bela negra, que lança o bom Sou Suspeita, Estou Sujeita, Não Sou Santa(2011). A filha do iconoclasta, ou seria íconeclasta?, Itamar Assumpção, estréia em disco com um trabalho plural e vigoroso que reforça o bom gosto e a grandeza dessa artista que, tudo indica, veio para ficar.

Anelis canta “Passando a Vez”:



O nome de Itamar Assumpção(1949-2003) é recorrente aqui neste blog. Sou fã declarado e rendido do cara. O genial paulista mexeu e estremeceu com as estruturas da comportada MPB nas décadas de 80 e 90 do século passado, criando um repertório único, de assinatura própria, no qual o batuque, a dissonância e estruturas melódicas surpreendentes marcaram o circuito undergound naquele período e fizeram história. Anelis debuta expondo e assumindo de forma cristalina sua herança bendita. Disse em entrevista que está, assim, pagando uma dívida. E que bela dívida! E essa é emocional e concreta. Sou Suspeita, Estou Sujeita, Não Sou Santa só existe fisicamente com a ajuda dói dinheiro arrecadado com a venda da Caixa Preta(2010), box com a reunião de todos os CDS do Negro Dito, incluindo dois inéditos que Anelis ajudou a dar forma. Comprei essa caixa em São Paulo e acabei dessa maneira, orgulhosamente, colaborando também com o lançamento da estréia dessa afinada cantora e compositora.

A herança sanguínea , os genes são assumidos na dedicatória do álbum – “pela ancestralidade que me fez continuar”, assume no encarte – e, de cara, na forte primeira música. “Mulher Segundo meu Pai” é batizado pelo próprio Itamar, em resgate vocal, que faz dueto psicografado pela filha. O beatbox característico do revolucionário músico, o som do baixo repetitivo e marcante traz de volta, com beleza e energia, a sonoridade do seu autor. Bela homenagem de Anelis, que demonstra nas entrelinhas, que aprendeu, com reverência, a lição de Itamar. É uma das grandes canções do disco que, em análise mais detalhada, não se reduz felizmente a essa generosa sombra. Anelis tem personalidade suficiente para dizer: olha, existem ecos de meu pai em mim, mas tenho cá minhas próprias idéias. Afinal, a paulistana já está na lida há muito tempo, tendo já participado como backing vocal em vários discos de gente graúda da MPB, sem falar é claro, como integrante da banda DonaZica e do trio Negresko Sis. Daí a grande expectativa gerada em torno dessa estréia.

Escute “Mulher segundo meu Pai”:



A maioria das músicas de Sou Suspeita, Sou Sujeita, Não Sou Santa são assinadas por Anelis. E para desenvolver sua poética e sonoridade, a artista contou com um arsenal de peso de amigos aquinhoados durante sua evolução musical. A ficha técnica lista gente talentosa como Céu, Thalma de Freitas(parceiras no Negresko Sis), a revelação Karina Buhr e mais Curumim, Lurdez da Luz, Alzira E., Flavia Maia e o ator Gero Camilo. Uma constelação, enfim, que ajuda a dar ainda mais consistência a essa álbum que peca apenas pelo excesso de canções. São 17, contando com algumas faixas-bônus presentes apenas em mídias alternativas. Nessa lista, a artista vai do samba ao reggae, passando pela bossa nova, mantendo, contudo, um refinamento nos arranjos que terminam por dar uma perceptível unidade ao disco. A sonoridade é moderna, “cool”, como diriam os norte-americanos. A elegância se faz presente no exercício instrumental, com metais e base percussiva usados com inteligência, como pode ser sentido, por exemplo, no estiloso dub “Bola com os Amigos”, outra das composições com ecos mais visíveis de Itamar.

De levada mais latina, bolerinho desregrado com letra lúdica que explora tema caro aos ecologistas de plantão, “Amor Sustentável” conquista fácil o ouvinte. “Eu quero ter uma vida biodegradável com meu amor/consumir conscientemente o gozo e a dor”, diz a letra oportunista. O samba alegre e malandro “Passando a vez” é outra forte candidata a cair no gosto popular. As características mais pop dessas duas composições, contudo, não é regra. Anelis baixa o tom, explorando sonoridades mais densas a exemplo da jazzy “Secret” e do reggae “Neverland”, com a participação de Céu, essa última uma das mais belas e perenes do CD. Karina Buhr e Flávia Maia fazem coro na bacana “Sonhando”, de autoria da primeira, pernambucana revelação de 2010 com “Eu Menti pra Você”. Afrobatuque envernizado por metais eloqüentes é música que fica na cabeça. Assim como as lindas baladas “Alta Madrugada” e “Quaresmeira”, ode à delicadeza na qual Anelis divide os vocais com Alzira E., irmã de Tetê Espíndola. Sou Suspeita, Sou Sujeita, Não Sou Santa corresponde, enfim, às expectativas criadas. Não chega a surpreender, por tudo o que a paulistana já demonstrou até agora. Um trabalho bem resolvido, redondo, que traduz a alma forte e talentosa e o espírito de Anelis. Um disco com substância, desses que nossas mãos estão sempre procurando, mesmo imperceptivelmente, para colocar no toca-cd. Deixa tocar.

Cotação: 4

Não seja santo, entre na lista dos suspeitos:

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domingo, 26 de junho de 2011

Tapa na orelha

“Fique atento quando uma pessoa lhe oferece o caminho mais curto”. Papo reto, o aviso objetivo é dirigido para aqueles que moram nas regiões periféricas das grandes cidades e encontram nas drogas e trambiques um jeito fácil de se ganhar dinheiro, correndo todos os riscos que isso acarreta. Prisão, morte, dor, não merecendo, o pobre coitado, na maioria das vezes, nem sequer uma nota de roda pé nos jornais populares, aqueles que vivem de tragédias e violência. A máxima não vale, contudo, para a música de quem a deixou registrada em disco logo nos segundos iniciais da primeira canção. Nó na Orelha(2011) é o caminho mais curto para se chegar à arte robusta de Kleber Gomes, ex Criolo Doido, hoje só Criolo. Esse paulistano, muito conhecido nas Rinhas de MCs da capital de São Paulo, entrega ao público uma estréia solo de peso, com impacto parecido, ouso dizer, do lançamento de Enxugando Gelo (2003), incensado, merecidamente, trabalho do rapper B Negão. Os dois têm a mesma força e genialidade de quem une mensagem política e som brasileiro de qualidade com raro talento.

Assista a videografite de “Não existe amor em SP”, criado por Daniel Ganjamam:



Criolo é da estirpe dos guerreiros que usam a música como instrumento de denúncia, sem que, com isso, caiam na doutrinação ou no discurso chato. E o que é melhor com todo esmero na construção de melodias e arranjos bem acabados. Ou seja, o cara não está aí para brincadeiras e nem, justiça fosse feita, para ficar restrito às radiolas dos guetos. Seu som plural, pela proposta sincera e consistência, bem que poderia ganhar as rádios e os players da galera brasileira. O artista é, há duas décadas, parceiro e ativista do rap, gênero que tem um público cativo e fiel. Seu trabalho de estréia, com produção dos cultuados Daniel Ganjaman e Marcelo Cabral, vai, contudo, muito além. Invade com autoridade e brilho outras praias melódicas, sempre com os pés fincados na black music. Sonoridades d’Angola, de Fela Kuti, samba, batuque, suingue com influência e alma negras. Navio negreiro que carrega também as mazelas que vitima principalmente aqueles cuja cor provoca preconceito e tratamento diferenciado por uma parcela medieval e burra da sociedade.

E é assim, com música de pegada irresistível e discurso afiado, que Criolo conquista o surpreso ouvinte que, como eu, não conhecia a poesia do sujeito homem. Em “Bogotá”, um afrobeat dançante de metaleira e percussão espertas, ele se inspira no movimentado universo dos muambeiros. “Vamos embora para Bogotá, muambar, muambê”, sugere a letra, com direito, na sequência da frase, a citação, com liberdade fonética, de Manuel Bandeira, “Vai ser melhor do que Pasargada, agradar até o rei”. A marcada “Subirodoistiozin” é outra canção meio jazzy, com letra cheia de gírias e expressões típicas de comunidades mais pobres, que critica a crueldade de um sistema no qual os viciados endinheirados são uma explícita ameaça: “Que contradição, quem tem tudo de bom é quem fornece o mal para a favela morrer”, diz a letra ácida. Existe quase sempre muita acidez no que escreve o cara, até mesmo naquelas composições com espírito mais light e romântico, como na linda “Não Existe Amor em SP”. Essa, uma ode à São Paulo urbanóide, dos “labirintos místicos, onde os grafites gritam”, mas que também tem suas armadilhas: “Postal tão doce, cuidado com o doce, São Paulo é um buquê”.

E a viagem musical de Criolo, depois de visitar o trip hop de “Não Existe Amor em SP”, passa por muitas encruzilhadas. Alcança o batuque africano na fantástica e discursiva “Mariô”, com refrão em ioruba e muitas referências na letra a ídolos como Chico Buarque e Fela Kuti. Repassa o dever de casa em dois rap inteligentes, “Grajauex”, poema concreto que brinca com as rimas possíveis com a sílaba “ex”: “os irmãos que tão com fome, desce três marmitex, sabão de coco não é bombom com protex(...)zona sul é um universo, e os vagabundos é belezex”, e na seca “Sucrilho”, cheia de ranço político e afirmação de identidade: “Calçada pra favela, avenida pra carro/ Céu pra avião e pro morro descaso”. Sem se prender a gêneros, Criolo vai ainda de samba na bacanéssima “Linha de Frente”, só no miudinho para despedaçar corações. Sambinha leve e cheio de graça que une percussão e metais de forma deliciosa. E desafia limites, beirando o brega na lúdica e abolerada “Freguês da Meia Noite”, a história de um homem apaixonado por uma confeiteira que sempre lhe oferece doces “furta cor de prazer”.

Ouça "Sucrilhos":



Criolo é um dos belos e grandes achados de 2011. De uma maturidade típica de quem tem um lastro musical de peso, o paulistano oferece um cardápio musical irresistível e bem temperado. Mesmo sem ter uma voz que marque, o artista compensa essa lacuna com canções de raro apelo emocional e bela engenharia instrumental. Nó na Orelha é nosso Brasil periférico com tintas universais, desenhado por um músico antenado com suas raízes e sensível com nossa mais crua realidade. Traz a herança de um povo que acorda para a cidadania. Tapa na orelha, nó na garganta. Esse cabra Criolo tem o que dizer e sabe como dizer. “Cada um sabe o preço e do papel que tem, de onde vem”, canta em “Bogotá”. Seu debut é obra incisiva, que já nasce clássica em sua diversidade sem fronteiras, sem preconceito. Desde já, ainda impressionado com o que ouvi, acredito que esse é um dos melhores discos nacionais do ano. Recomendo.

Cotação: 5

Se ligue no samba do Criolo doido:

http://hotfile.com/dl/115890191/5fb3ca1/Criolo_No_Na_Orelha.rar.html

terça-feira, 21 de junho de 2011

Contra o mau humor

Existe um preconceito em meio à crítica musical que muitas vezes empana a razão e entorta o coração. Dessas bobagens típicas de resenhistas casmurros que sobrevivem mal aos seus preciosismos e ao vazio de indulgência. Gente que cobra em demasia e ensaia textos ácidos para não se enquadrar no gosto comum, principalmente quando se trata de músicos que fazem sucesso. Observei isso com relação ao recente álbum do Strokes, o bacana e corajoso Angles. Do novo percebi esse ranço em resenhas venenosas e injustas sobre o último trabalho de um outro grupo que já alcançou o estrelato, o Arctic Monkeys. Muitos tentaram implodir Suck it and See(2011) por aquilo que ele tem de mais curtível, a pegada pop e quase juvenil, característica aliás que, me desculpem os incisivos e impiedosos críticos de plantão, é um dos combustíveis que tornaram o bom rock and roll um gênero tão carregado de honestidade. E é essa imperativa impulsividade que faz desse obra vilipendiada dos ingleses uma das mais interessantes que já ouvi nesse generoso ano de 2011.

Assista vídeo de "Brick by Brick":



O Arctic Monkeys voltou com aquela alegria desregrada presente nos seus dois primeiros álbuns, o efervescente Whatever People Say I Am, That’s What I’m Not(2006) que encarei, nas primeiras audições, com alguma desconfiança, e, para mim, a obra-prima, até agora, Favourite Worst Nightmare(2007). Com Humbug(2009), o grupo capitaneado por Alex Turner tentou um amadurecimento tipo microondas, rápido e forçado, perdendo aquela espontaneidade que havia arrebatado tantos fãs. Suck it and See parece ser uma tentativa de voltar às pazes com seu fiel público. E se essa era a intenção, os caras estão cumprindo com honras a missão. Orientados pelo produtor James Ford, o mesmo de Favourite..., Turner(vocal), Jamie Cook (guitarra), Nick O'Malley (baixo) e Matt Helders (bateria) escolheram um playlist de fácil assimilação, com muitas favas contadas, achados pops que irão movimentar pistas e girar indefinidamente nos tocadores de música da molecada e também, porque não, daqueles mais velhos que gostam da eletricidade do rock despojado. Um deles é a garageira e uma das melhores do trabalho, “Brick by Brick” com seu riff pesado de guitarra e o coro grave, que resgata o espírito festivo do Kinks.

Na mesma sintonia de “Brick by Brick”, primeira música de trabalho do CD, o repertório traz pérolas da mesma linhagem abrasiva impressa nos melhores álbuns do grupo, a exemplo de “Don’t Sit Down ‘Cause I’ve Moved Your Chair”, com a guitarra rascante de Cook em perfeita harmonia com o baixo de O’Malley. “All My Own Stunts” repete os riffs de cordas que tanto marcou a carreira dos britânicos. Elíptica, essa canção prende o ouvinte com sua boa melodia sinuosa e o vocal esperto de Alex Turner. Mas, a galera faria ainda melhor na provocante “Library Pictures”, que conta com as alucinadas viagens de Helders e a tresloucada guitarra de Jamie Cook numa festa, ora espertamente compassada ora pura pauleira, para nossos agradecidos ouvidos. Rockão de primeira perpetrado em poucos mais de dois minutos que já valeriam o disco. Sem dúvida, um dos melhores petardos do ano e revelador ainda de um Arctic Monkeys palpável, íntegro, cheio de boas idéias e inspiração.

Ouça “Library Pictures”:



Mesmo quando não solta os diabos, o grupo é capaz de cometer composições precisas. Prova inconteste disso é a saborosa música de abertura, “She’s Thunderstorms”, com sua guitarra hipnótica e melodia pra lá de marcantes, carregada de uma nostalgia romântica que remete aos grudentos clássicos do rock dos anos 50 do século passado. Envolventes também são as boas “Black Treacle” e “The Hellcat Spangled Shalalala”, baladas de uma simplicidade e ternura que chega a ser tocante. Com Suck it and See, o Arctic Monkeys foi taxado, por muitos, de burocrático por fazer um rock sem grandes pretensões e que casa com aquilo que os fãs de carteirinha esperavam da banda. Nunca esperei nenhuma grande ousadia desses rapazes, até porque para eles música parece ser unicamente sinônimo de diversão. E se ser burocrático é fazer, inteligentemente, como acredito nesse caso, música para a massa, então viva esses operários que nos dão prazer. Pelo seu descompromisso com a crítica chata e tacanha, esse álbum já é um dos meus preferidos de 2011. Dá-lhe Arctic Monkeys.

Abrindo aspas. Só a guisa de curiosidade, para o conhecimento de meus caros e reduzidíssimos leitores que ainda não sabem do fato: Suck it and See, com sua capa simplória e minimalista, mas título declaradamente imoral, algo numa tradução livre como “Chupe-o e veja”, foi, por isso mesmo, retirado absurdamente das prateleiras das lojas de disco norte-americanas. Fico pensando se os filmes blockbusters tão sortidos de palavrões produzidos naquele país fossem, por isso mesmo, proibidos de passar nas telas de cinema ou de TV de seu próprio território ou nações alheias, como estaria a milionária indústria holywoodiana... Para esse falso moralismo só poderia dedicar duas palavrinhas roubadas do vocabulário popular dos nossos irmãos gringos acima da linha do equador: fuck you. Ou em bom português mesmo: foda-se. Fechando aspas.

Cotação: 5

Antene-se:

http://www.fileserve.com/file/7ENv8f8/www.NewAlbumReleases.net_Arctic%20Monkeys%20-%20Suck%20It%20And%20See%20%282011%29.rar

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Cão sem dono

Para ler ouvindo "Freguês da Meia Noite", de Criolo:



O aguaceiro veio sem piedade. Nas primeiras noites de chuvas torrenciais, o rio que passa do lado da casa onde morava começou a mostrar as garras, vindo lenta e insidiosamente em direção a madeira do batente. Aquilo não me incomodou muito nos dias anteriores a tragédia, porque minha memória de cachorro já registrara situações parecidas em outros tempos raivosos como aquele. E parecia também não tirar do sério meus amigos pulguentos da vizinhança e nem, ainda, assustar muito aqueles pobres diabos que cuidavam de nós. Nunca entendi porque meu dono insistia em morar numa casa de madeira a beira de um rio que sempre alagava com chuvaradas que pareciam sem fim. Não sei que tipo de carinho esses humanos tem por suas construções mal-ajambradas e fedorentas, cortiços que sempre tremiam diante de invernos encarniçados. Eu tentava relevar essa franca desgraça, afinal em troca de um pedaço de osso e um pouco de resto de arroz, não arredava por nada desse mundo o pé do alpendre cheio de goteiras que me protegia custosamente dos pingos d’água. Minha pouca, mas aguerrida dignidade, se apegava aquele conforto mesquinho. Não podia negar a raça, vira-lata que era.

Assista a vídeo com o vira-lata na enchente:



Não imaginava que esse ano seria diferente. Muito diferente. Nos outros invernos assistia, quase sempre sonolentamente, o burburinho dos humanos que se inquietavam diante de tamanha enxurrada. Discussões afiadas, a fêmea deles esbravejando na sala, com espuma na boca, como se fosse uma cachorra louca, apontando para o céu, riscando o ar nervosamente com seu dedo em riste. E o macho dela, meu outro dono, normalmente com olhos mareados, injetados de uma cor vermelho sangue, talvez por causa daquele líquido brilhante dentro de um vidro ainda mais brilhante que pendia invariavelmente de sua mão até rolar pelo chão, não ligava muito para o que a fêmea dizia. Mas, depois calavam e a chuva diminuía seu violento ataque fazendo adormecer todas as casas que nos rodeavam. E o chuvisco, como música de ninar, me fazia sonhar com noites de lua cheia. O que aconteceria nesse ano acinzentado me pegou de surpresa, me deixou assim num desamparo e amargor que arrepiou todos os meus parcos pelos, me sentindo terrivelmente como um cão sem dono.

Lá pela quarta noite depois de toda aquela água que caía esmurrando as telhas de amianto das casas, percebi que a história de memórias antigas não se repetiria. No tardar da madrugada, já com a alma intranqüila e a água pelo meio das raquíticas canelas, ouvi os passos acelerados de meus donos que corriam de um lado para o outro. Lati querendo atenção e afago, talvez uma explicação qualquer. Nenhum deles se dignou a olhar para mim. A voz dos humanos confundia-se com a chuva pesada, ribombando em meus ouvidos sensíveis de vira-lata. Tentei repetidos latidos e até ensaiei alguns uivos, exercício vocais aos quais pessoalmente nunca tive muito talento, mas em vão. Assisti, preso pelo pescoço à minha velha conhecida e encardida corda de todo dia, a evolução gradativa do que se tornaria, em rápidos e desesperados minutos, o mais absoluto e cruel esquecimento.

O desfile diante de meus olhos assustados foi ligeiro e caótico, obedecendo, no meu fraco raciocínio, à ordem de importância que os humanos davam a seus objetos, primeiro saiu porta afora aquele aparelho luminoso que repetia as imagens dos humanos, depois o objeto arredondado de cores esquisitas em que eles sentavam, e o outro de aspecto purulento em que dormiam e faziam barulhos altos. E eu ali, molhado até as entranhas, esperando a minha aguardada vez de ser carregado em braços quentinhos e acolhedores. Nada. O desfile continuou. Aquilo com que eles cobriam os corpos veio na seqüência, as tábuas redondas nas quais comiam, depois, e vieram um tanto de objetos que eu desconhecia e, por fim, meus próprios donos subiram em pequenos barcos e foram desaparecendo entre vãos que antes eram ruas, sem nem olhar para trás, sem nem olhar pra mim, já então completamente enregelado. Arregimentei forças e tentei ainda um último e desesperado latido, abafado pela impiedosa chuva. Não ouvi qualquer resposta. Era só eu agora, lutando contra a morte.

A morte se aproximou de mim meio desgovernada como os pedaços de paus e plásticos que a enxurrada trazia nas águas do rio agigantado. Ainda sentia o chão nas pontas de minhas patas úmidas. Restava-me morder, roer aquela corda fétida que pesava em meu pescoço magro de vira-lata. Na primeira tentativa, a maldita não quis ceder à força de meus dentes amarelos. Era preciso tentar mais uma vez. Senti que a corda não folgava, por uns instantes pensei que ela quisesse me apertar, se amarrar mais ainda em mim, como um desmerecido castigo, como uma mão invisível que me empurrasse para baixo, para as profundezas do rio. Lati raivoso e numa terceira e mais vigorosa tentativa, percebi que os fios do cordão se partiam aos poucos, caprichosamente. Anos de exercício roendo pacientemente ossos valeram o esforço. Forcei o rompimento com uma mexida brusca de cabeça, para um lado e para o outro e mais uma vez, outra vez, até que a corda partiu e ficou boiando presa à coluna de madeira da casa. Estava salvo. Agora sem pressa, com uma balsâmica sensação de vitória. Num lento e desolado nado de cachorrinho fui até a margem mais próxima, onde encontrei aliviado a terra firme. Debaixo de uma latada, cansado da guerra, cão sem dono, descansei a cabeça no piso de cimento e sonhei com um dia de sol.

P.S.: Nos dias 2, 3, 4 e 5 de junho de 2011 uma chuva intensa e intermitente caiu sobre o estado de Roraima. A pior dos últimos trinta anos. Virou notícia em rede nacional. Em Boa vista, o nível do Rio Branco subiu mais de 10 metros, alagando ruas e casas de madeira das comunidades ribeirinhas, famílias pobres que só abandonaram seus lares depois que a água chegou na altura do joelho. Os cachorros vira-latas, às dezenas, foram abandonados pelos seus donos. Muitos deles ficaram à beira do rio, perdidos, olhando de longe suas casas alagadas. Um pequeno detalhe dramático numa novela real que tocou a todos nós em Roraima.

P.S 2.: A visão mostrada na narração em primeira pessoa aqui é exclusiva do personagem.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Depois da tempestade

Entre tantos erros que cometi na vida, um deixou especialmente minha alma esgotada, na penúria, como aqueles biafras de expressão tocante na parte vergonhosa da África que morre de fome. Daqueles erros crassos, clássicos que servem para moldar todo um caminho dali pra diante. É como conviver com o vazio, num diálogo claudicante com a dor. Errar leva a uma lição que deveria ser sempre inesquecível para aquele que protagonizou o tropeço. Uma espécie de jab retificador de nossa ingenuidade. “Um homem roubado nunca se engana”, diria o filósofo Chico Science, mestre de todas as horas. Tá certo, ele. Penso nisso quando me deparo novamente com uma banda que gostei de cara ao ouvir o surpreendente álbum de estréia. Guillemots é o nome. Fizeram bonito no começo e depois vieram com um segundo disco estranhamente incorreto, esquálido, risível. Erraram feio. Mas eis que souberam aprender com o deslize e agora lançam esse que é, para mim, um dos trabalhos mais encantadores do ano.

Assista ao vídeo de “The Basket”:



Aquele primeiro disco, o surpreendente, é Through the Windowpane(2006), de robusto conteúdo e melodia cortante. Um desses para figurar, de tão poético em seu fazer, na cabeceira de gente de coração mole como eu. Um disco assim como um dia de sol em que tudo dá certo. Red(2008), o segundo, foi o exercício da decepção, venal e frágil como as promessas de um político que nem a próprio mãe acredita mais. Tiro no pé. O terceiro, o redentor, chama-se Walk the River(2011), fluido assim feito avassaladora paixão de adolescente. Febril desse jeito mesmo, enquanto criação generosa entregue ao nosso deleite. O combo multicultural que reúne um inglês, o vocalista Fyfe Dangerfield, um escocês, o baterista Greig Stewart, o brasileiro e guitarrista Lord Magrão e a baixista canadense Aristazabal Hawkes, os Guillemots, acertou a mão, produzindo doze canções inspiradas num álbum equilibrado e pronto para arrebanhar, com sua envolvente entranha, mais uma nova leva de fãs.

E o que vem das estranhas de Walk the River? Vem música madura, feita com esmero por artífices que podem ser comparados com aqueles artesãos de peças únicas, rococós, talhadas contra a vontade desses tempos ligeiros, afobados. Com paciência é possível degustar aquilo que o primeiro CD do grupo tinha de melhor, melodias bem acabadas e costuradas com arranjos super espertos. Quem ouviu a obra de estréia do Guillemots, guarda com carinho na memória a tentativa dos músicos de construir composições quase épicas, grandiosas. Essa marca registrada volta à tona em canções como “Yesterday is Dead”, com seus oito minutos orquestrais, com cordas e coros que crescem aos poucos até o final apoteótico e cheio de texturas. Repare nos últimos segundos da música, onde, do nada, entra um enigmático coro infantil. Essas camadas sonoras, postas uma sobre as outras com arte e engenho, voltam a se repetir em “Sometimes I Remember Wrong”, com uma longa e climática introdução instrumental que bem dispensaria a cantoria triste de Dangerfield.

Gosto principalmente dos momentos mais pops do disco, aqueles em que os Guillemots soam mais diretos, ainda que, mesmos nesses casos, não dispensem uma certa grandiloqüência mal disfarçada nos arranjos. Talvez pensem que nos engana com esse truque de parecerem simplezinhos. E é assim que eles, de alma lavada e lavando a nossa, arrebatam o ouvinte num dos inícios de álbum mais bacanas com que me deparei este ano. As três primeiras músicas são de uma graça e inspiração que emocionam. A voz segura e limpa de Fyfe Dangerfield leva você, na música título “Walk the River”, a mergulhar num rio de sensações prazeirosas. Grande composição levada com paixão e zelo pelo vocalista. Mas, o melhor viria a seguir com a ótima “Vermillion”, uma das minhas preferidas, que começa acústica, emotiva e segue arredondando sua beleza com a entrada, aos poucos, de mais instrumentos até cair num solo vertiginoso de guitarra. Dez de luxo. Assim como a mais roqueira “Ice Room”, daquelas de rachar assoalhos com suas cordas nervosas e corinho que lembra um bom U2.

Ouça a excepcional “Dancing in the Devil’s Shoes”:



Eles são pop e acessíveis também em outras pequenas pérolas, como a deliciosa balada “I Don’t Feel Amazing Now” e a que já nasce clássica “I Must be a lover”, com um dos melhores refrões, entre os muitos criados com inspiração para este álbum. Esta última canção, pode até ser heresia minha, admito, assim como “Slow Train”, remetem ao rock bem produzido e popular cometido por um cara cheio de atitude, autor de pelo menos dois álbuns marcantes dos anos 90 do século passado, o britânico George Michael. Quem tem medo dele? E para terminar essa resenha tão cheia de adjetivos e elogios descarados, que me perdoem os que a lêem agora, chamo atenção para uma canção lenta, a atmosférica “Dancing in the Devil’s Shoes”, de rara beleza e na qual me deixo sempre navegar. Ainda quero compreender esse sentimento e esse fogo que ela acende em mim. O tempo há de abrir, espero, clareiras para esse entendimento. Talvez você até desconfie de mim nesse momento atravessado, afinal esse gostar disparatado tende a empanar a razão, que sempre se mete à cartesiana. Mas, do alto desse meu coração aberto em demasia, arrisco a dizer, e sem medo de errar, que “Walk the River” é obra pra ficar, um grande álbum da mais completa redenção dos Guillemots.

Cotação: 5

Escolha:

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segunda-feira, 23 de maio de 2011

Mulher Alfa

As mulheres são seres sobrenaturais, provavelmente o que de melhor temos circulando hoje na face da terra, ao lado do último disco do Arctic Monkeys e de Árvore da Vida, filme redentor do sempre surpreendente Terrence Malick. Nós homens, tão crucrinhos, temos perdido a noção da evolução. O início de tudo, aquele macaco darwiniano que descambou no pitercantropus erectus, deu uma arrancada, mas foi perdendo força com o andar estertorante dos séculos graças a uma certa pretensão dominadora. Meio que estagnamos numa espécie de lama narcísica. Já a mulher, bem mais inteligente, foi comendo pelas beiradas, crescendo com os erros dos machos, apegada na doce sustentabilidade do gênero erroneamente visto como “sexo frágil”. Tá passando da hora das mulheres dominarem o mundo com sua fortaleza e malícia. E não vejam aqui nenhuma defesa implícita à nossa executiva Dilma, ainda que ela seja uma mostra da competência delas de ganharem espaço. Falo de todas aquelas que jogam luzes sobre sua potencia e talento. Falo especificamente daquelas que mostram soberanas suas armas, como é o caso da intrépida Adriana Calcanhoto e seu mais recente trabalho, o álbum O Micróbio do Samba(2011).

Assista ensaio de “Eu Vivo a Sorrir”:



Adriana é o típico exemplo de uma mulher que amadureceu com inteligência e bom gosto. Recordo bem de quando ela me ganhou com uma interpretação plácida de “Naquela Estação”, música de melodia fácil dos craques Caetano Veloso, João Donato e Ronaldo Bastos inscrita no seu primeiro álbum, Enguiço(1990). Vi o show daquela loura oxigenada, era o que parecia na época aquela cantora branquíssima em minha visão empobrecida de um cara ainda casto, no saudoso Projeto Pixinguinha, em Brasília. Sala pequena e aquela mulher sozinha com o violão descansado sobre as pernas, divertindo o público com uma versão moleque de “Caminhoneiro”, de Roberto Carlos. Dava pra perceber que aquela gaúcha tinha algo a mais a oferecer do que interpretações lúdicas das composições de outros.

Escute a deliciosa “Mais Perfumado”:



Dela mesma, de punho próprio, viriam depois pérolas disseminadas ao longo de uma agora já longa carreira, a exemplo das bem engendradas “Esquadros”, “Aconteceu” e “Parangolé Pamplona”, para ficar em apenas três.Meio tempo em que ela angariou desafetos e um burro desprezo da crítica ranzinza que não a via mais como novidade, mas como uma cantora acomodada pelo peso e saturação das curtidas horas. Apesar dos altos e baixos, sempre guardei carinho por ela, até nos momentos menos inspirados de sua discografia. Sei lá porque, talvez por um crédito emotivo pela trilha sonora composta por ela e emprestada para instantes solares de minha vida.

Desde Maré(2008), um disco robusto e subestimado de Calcanhoto, reatei minha estima, adormecida até então, pela artista que sempre buscou, a seu jeito manso, se reinventar sem querer revolucionar. Com O Micróbio do Samba, ela continua essa procura, se concentrando nos sambinhas, gênero que sempre esteve aqui e ali em sua carreira. Dessa vez, deixa-se tomar pelo vírus do batuque sem necessariamente cair na bagaça, no frenesi do sambão sensual e hipnótico de terreiro. Faz sambinhas quase bossanovísticos, alguns carregados de uma disfarçada melancolia, caso do cadenciado “Eu Vivo a Sorrir”, a música que mais parece com a Adriana que a maioria conhece, com sua letra de marcante medula poética. “Eu vivo a sorrir pro caso de o acaso estar num bom dia/pro caso do destino me haver reservado a alegria/E o meu fado estar fadado a ser a sua sina”. Outros deles têm harmonia estranha ao gênero como a tensa “Aquele Plano para me Esquecer” e “Pode se remoer”, esta que nem samba se parece.

Mais fiel ao ritmo, sem perder a cadência do samba marcha lento, são as boas “Mais Perfumado”, dedicada a nova cantora Thaís Gulin, “Beijo Sem”, que lembra o estilo elegante e a rubrica do grande Paulinho da Viola, e a carnavalesca “Deixa, Gueixa”, com ares e espírito de bloco de Rua. Todas assinadas exclusivamente por Calcanhoto, à exceção de “Vem Ver”, em parceria com Dadi, as composições são uma homenagem personalíssima e pouco ortodoxa da artista a esse gênero musical que vive subvertendo nossa cultura, imorredouro que é e sempre trazendo novas propostas e roupagens. O samba tem que dar ainda e Adriana, simpatizante declarada já fez a sua parte. Contando aqui com o auxílio mais do que luxuoso de gente como Davi Moraes, Domenico e Rodrigo Amarante, que participam com dedicação dessa obra.

E se O Micróbio do Samba não é o melhor de Calcanhoto, que nunca será uma sambista de carteirinha, o álbum se sobrepuja nas letras, ora marcadas pela irreverência ora pela poesia com marcante conteúdo, como nesse último caso na já citada “Eu vivo a Sorrir”. E essa tem sido provavelmente a característica mais realçada do disco pela crítica de plantão. E fica mesmo difícil não ressaltar esse ponto forte diante da malícia e ironia de composições que trazem uma malandragem poética, como fizeram alguns bambas do início do século passado, tipo Assis Valente, Ataulfo Alves e Wilson Batista, entre outros, mas com um discurso inverso. Sai o machismo e entra o feminismo. A nova mulher que dá a cara a tapa, no sentido de enfrentar o mundo, é claro, aparece inteira, independente. Em “Beijo Sem”, Adriana decreta, em nome de todas elas: “Eu não sou mais quem você deixou, amor/ Vou a Lapa decotada, viro todas, beijo bem”. O homem aqui é um rendido a essa mulher que sabe o que quer, como em “Vem Ver”: “Por você tomava rumo, arrumava o que fazer/eu levantaria cedo, eu cuidava do bebê”. Vale viajar nas letras, nesse admirável mundo novo das mulheres prontinhas para conquistar a terra, como seres sobrenaturais que são. Permita-se esse passeio no disco, permita-se ser dominado por elas.

Cotação: 3

Download do micróbio:

http://www.fileserve.com/file/GSAzX4J

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Aquele céu de Brasília

Foi assim naquela semana. Dava umas cinco horas da tardinha e aquele amarelo estapafúrdio cobria as ruas, os arranha-céus, as árvores retorcidas, amansando o dia feroz. Os carros, alheios ao esplendor daquilo que os rodeava, zuniam medonhos ao meu lado, tão insensíveis, espalhando a fuligem que se perdia pra nunca mais no meio da grandeza do céu resoluto, absoluto. E as pessoas também corriam afobadas nem sei atrás de quê, talvez fugindo do fuzuê, procurando algum remanso, a paz esquecida entre papéis de arquivo e contas a serem pagas. Escapando da tranqueira do cotidiano tão sem eira nem beira da cidade grande e confusa. Uma e outra olhavam pra cima, poucas se viam refletidas na mornidão acolhedora das horas moribundas do dia. Eu, estrangeiro, reverenciava mudo e abestalhado aquela santa tarde. O amarelo e o azul conectados como unha e carne, tão casados, desafiando a desembestada marcha dos trabalhadores no asfalto cru. Senti os dois atrevidos na pele, nos poros, aliviando meu cansaço, dançando alegremente em mim.

Estava em Brasília. Às 17. O céu da capital ao entardecer, seu pôr de sol vivificante chacoalhando imperioso com os meus sentidos. Tanto já falaram desse céu brasiliense que se movimenta impávido sobre nossas cabeças, como uma mágica que se repete generosa diante de nossos enfadados olhos. Os anos que vivi lá entre os prédios tímidos do Plano Piloto e as raquíticas árvores do cerrado, tão emprenhado de afazeres, deixaram-me a memória avermelhada e incandescente dos fins das tardes. Ruinzinho de memória que sou, essas, agradeço aos deuses das justas medidas, eu não as perdi, guardadas em um canto encouraçado do meu esgarçado cérebro. O reencontro nesse mês de maio com o céu às 17 da cidade revestiu-se do sagrado. Lembro bem em meu primeiro dia dessa volta, tão castigado pelo vôo insano de Boa Vista pra Brasília madrugada adentro até o romper das primeiras horas, crucificado depois pelo mecanismo cruel dos bancos e suas odiosas filas, ainda assim, tive a benção de uma tarde tão cheia de amarelo e azul que a minha alma descansou na paisagem, untada por aquele pacífico pôr do sol.

Naquele pôr do sol teve o diálogo silencioso do homem louco com o céu, descendo com sua particular elegância e roupas em farrapos o gramado do eixo monumental em direção ao nada. Olhando pra cima, apontando inexistentes nuvens, conversando com seu deus desgovernado. Talvez aquele homem, pensei, visse melhor o céu do que nós, pobres sãos.

Naquela hora, às 17 em Brasília, me dava então uma louca vontade de sair por aí fotografando tudo. Com meu celular se fazendo de câmera. Na Esplanada dos Ministérios, com seus executivos emaranhados nas cordas do futuro, a lente da máquina espelha os vidros tingidos de laranja, como um delicado papel de parede quadriculado, colado naquele azul de cor uniforme e sem nuvens. O concreto pintado de branco dos monumentos arredondados de Niemeyer se oferecia despudorado para os raios insidiosos que pareciam moldar nas construções modernas novas formas e insuspeitados ângulos. A rodoviária apinhada de gente banhada docemente pelo sol ganhava também novos contornos, enriquecida pela fusão do amarelo intenso com as roupas coloridas dos transeuntes. E se você pára pra reparar o que pode aquele céu arrisca até ser surpreendido por instantâneos de beleza. Como a visão da torre de televisão, ilhada pelo gramado, pelo sol e azul, com aquele risco branco, diáfano, deixado pelo jato que come milhas com a voracidade dos amantes matando saudade. Uma reta branca cortando o céu e sublinhando a armação triangular de metal que fura o céu azul. Parêntese na paisagem. É assim o céu de Brasília nessas tardes de maio, um convite irrecusável para nele se perder. Nele me perdi e me achei por alguns minutos. Abençoado, céu.

domingo, 8 de maio de 2011

Outras palavras

Filhos de Itamar Assumpção e da poesia uni-vos para salvaguardar a beleza e ousadia da música brasileira. Esse desejo vive em ebulição em mim. Explico, saudosista: houve um tempo na década passada em que experimentar, reinventar a MPB era uma prática saudável e radicalmente instigante. De cabeças inconformadas surgiram provocações tão intensas e incompreendidas quanto os desvarios poéticos do negro Dito Itamar, o atonalismo canibal de Arrigo “Clara Crocodilo” Barnabé ou o caudaloso canto falado do Grupo Rumo. Os filhos dessa geração de 80, mesmo que mais comedidos, tentam hoje colocar suas garras pra fora. Aqui e ali, onde os cérebros foram irrigados pela inquietação. Privilegiados filhos, como Téo Ruiz e Estrela Ruiz Leminski, que beberam de rica fonte para fazer de sua arte um hiato em meio à indigência e trambicagem que marcam hoje nossa produção musical mais comercial. São Sons(2011) chega assim coberto de angústia criativa, honestidade e solta verbalidade. São sons e palavras a serviço de uma curtida sensibilidade.

Veja o vídeo da música "Ímpar ou Ímpar", do disco anterior da dupla:



Téo e Estrela não são parentes. Têm, coincidentemente, o mesmo Ruiz no sobrenome. São namorados de amiúde convivência, de levar a vida a dois colados no cotidiano das horas inteiras. Parceiros no trabalho e no amor, os dois têm berço e influências musicais invejáveis. Estrela, por exemplo, é, além de cantora, escritora e filha dos poetas consagrados Alice Ruiz, que tem participação no disco, e Paulo Leminski. Não é pouco. Téo é músico de carteirinha, desses talentosos que só conseguem viver à sombra das melodias. Arte aqui é oxigênio. O passado deu a ambos uma educação musical refinada. E, mais do que isso, entregaram-se ao micróbio da invenção. Em São Sons, o segundo e melhor distribuído álbum do projeto Música de Ruiz, é possível vislumbrar aquela busca pelo novo, presente nos grupos e artistas citados no primeiro parágrafo. Sem esconder uma certa angústia em acertar o alvo, o casal, com voz infelizmente pouco marcante, passeia por diversos gêneros musicais, procurando talvez encontrar a sua praia. Não encontram uma para ancorar o barco, mas mostram um inconformismo que enche o ouvinte da esperança de renovação.

Ouça "Chose":



Senão vejamos, o baião nervoso “Quirera”, com seu discurso raivoso sobre a indústria musical do jabá, aquela que paga os meios de comunicação para fazer “decolar” seus maquiados produtos, lembra o genial paulistano Itamar Assumpção, que marcou sua carreira pela verborragia e estrutura melódica singular. Percussão e sanfonas dão um falso ar nordestino a essa deliciosa música feita pelos curitibanos. “São Sons” tem musicalidade incômoda, com todos seus contrapontos e atonalidade. Os meninos usam bem sua metralhadora giratória e incansável. O jovem casal brinca com o samba em “Chapéu de Sobra”, entortando o ritmo, enriquecendo-o ainda com um trombone louco e experimental e com a fantástica voz de Ná Ozzetti, que integrou o grupo Rumo. Téo e Estrela vão de rock acelerado na muito boa “Chose”, que mistura violão, sanfona e guitarra pesada de forma magistral. Meu amigo de trabalho, Odeli Sampaio, que tem um super ouvido e é produtor de áudio, disse que a música foi mal mixada. Independentemente dos pecados técnicos, é uma composição impactante. Tem também melodia com jeitão de tango, envolvido pelo brega e pela brejeirice, na voz única de Kleber Albuquerque, na ótima “Verossímil”.

Tantos sonoridades diferentes são sons que os Ruiz oferecem como se quisessem expurgar as múltiplas influências. Como se tentassem decupar, ainda que de forma desordenada, toda aquela invenção musical que viveram em sua formação e que fez a cabeça dos dois. Só para contextualizar essa conexão criativa e mais experimental: Arrigo Barnabé é paranaense e sua música moderna tem raiz em Londrina. Itamar Assumpção foi parceiro de Alice Ruiz em composições maravilhosas. Ou seja, todos encontraram-se de alguma forma numa rica intersecção cultural. No caso de Téo e Estrela, é bom que se diga, contudo: não há intenção explícita de se fazer experimentalismo. O disco cede também espaço para canções com estruturas harmônicas simples, que podem tocar facilmente em rádios com programação dedicada à MPB, a exemplo das lentas e bonitas “Estilhaço” e “Reivento”. E se eles não provocam nenhuma revolução ou arroubos formais, mostram-se generosos na invenção das letras, destoando da pobreza poética das novas estrelas da música, tipo os jabazeiros Luan Santana, Cláudia Leite e outras bobagens congêneres que assolam as rádios e tevês brasileiras.

Se a juventude topasse ouvir canções bem estruturadas poeticamente como, só como exemplos rápidos, o rock “Chose” ou o lindo samba cadenciado “Parece”, sentiria que a palavra é um instrumento precioso para se fazer pensar e encantar. Na primeira música, Téo filosofa com propriedade e alguma raiva: “Se cada passo tem um tropeço, meu passado pelo avesso/Cada tempo seu invento, cada passo o seu intento/Eu faço desse passo o meu próprio alimento”. Na segunda, a letra com ecos políticos, ensina como criar rimas bacanas sem dificultar a leitura para os de vocabulário diminuto: “Parece muito fácil mudar a mente alheia, fazer reforma agrária, uivar para a lua cheia/ Parece fácil a beça distribuir a renda, curtir a natureza, mas a guerra tem pressa/Se é fácil, me diz, mudar para outro país, ver teu show sem pedir bis, entender o que fiz”. As letras são o que de melhor traz o disco, que têm sim melodias bem sacadas como “Ávida” e a já comentada “Chapéu de Sobra”, só para citar as que vieram mais ligeiro à minha memória. Mesmo que irregular, São Sons é um álbum que enxágua nossa alma, porque é irrequieto e tem conteúdo. Um trabalho que chama atenção pela energia criativa e as melhores intenções. Vale à pena acompanhar a trajetória promissora de Estrela e Téo. Acredito, cheio de fé: deve vir mais um punhado de boas composições por aí.

Cotação: 3

Tente baixar o disco por aqui, no controlCcontrolV:

http://www.mediafire.com/?krvsetk4x1t9ndy

quinta-feira, 5 de maio de 2011

A foto do morto

O homem morto, ilhado por estilhaços e o sangue tingindo infame a parede, a cama, o lençol branco, testemunhas passivas de uma cinematográfica ação militar. Talvez isso. Talvez nada. Antes havia um fantasma de um homem vivo. Hoje paira o fantasma do homem morto maior do que era antes, fazendo sombra sobre nós. E surge imperioso o fantasma da dúvida se esse homem, com sua barba longa e passado entrincheirado, repousa mesmo debaixo de alguma terra em algum lugar desse mundo. Todos querem ver a foto do homem morto num mórbido e inquietante desejo de enterrar finalmente um capítulo sombrio da história da humanidade. Essa vontade coletiva, raivosa e tão loucamente humana de ver o terror selado dentro de um caixão imaginário, construído por milhões de pessoas que tremeram incrédulas diante de aviões suicidas jogados contra arranha-céus naquele fatídico dia em que o mundo também ruiu um pouco.

O homem sem o registro da morte estampado nas TVs, foi noticiado, teria sido jogado ao mar, desaparecido de vez de nossas vistas. Uma cerimônia fúnebre também sem registro, sem olhares curiosos. Sem choro nem vela à luz de holofotes. Insatisfação geral. Num planeta rendido à força intransigente das imagens, não bastava o anúncio verbalizado do assassinato por um presidente negro e poderoso, era necessária a visão ensangüentada da vítima perseguida por longos nove anos. Porque o mesmo mundo das imagens é o mundo do simulacro. A foto, o filme passou a ser cobrado aos brados, a parte perdida de um quebra-cabeças. A fotografia reclusa virou personagem, a estrela do noticiário depois da morte. Talvez guardada a sete chaves em um cofre. Talvez apenas arquivada na cabeça do estrategista que montou uma possível trama de grosso calibre. Estranha ironia. O homem barbudo e de turbante, até então coberto pela poeira do tempo, redivivo pela morte.

A morte sem foto e sem vela agora é também fantasma. Mais um fantasma do homem morto que assombrava os sonhos dos homens de bem. É o terror anguloso, cheio de surpresas, pregando, podem pensar alguns, uma piada de mau gosto em todos os que queriam cuspir em sua cara. Quem quer ver o rosto do homem morto? Prefiro pensá-lo longe de nosso mundo sofrido pelas guerras e atitudes insanas. Não quero ver a foto do homem morto e nem saber da notícia dela. Não quero me apegar a um papel com um rosto hirto estampado nele, uma face pálida endurecida pelo pó e enegrecida pelo sangue coagulado. Só quero um planeta melhor, sem violência e pânico, sem o preconceito que embrutece a alma, sem o terror que provoca choro em nome de ideais, quaisquer que sejam esses ideais. Sem nacionalismos extremados que produzem festas em cima de corpos sem vida no chão. Quero que a foto do homem morto permaneça enterrada junto com toda a tenebrosa história que se esconde por trás dela. Meu álbum de fotografias só admite fotos cheias de esperança de vida, de cliques de amizade ou de alguém que, mesmo que tenha partido definitivamente, só me faça lembrar a vida. Inteira e intensa como ela deve ser.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Barroco renovado

Foi incondicional como paixão que chega destemperada, deixando luminoso rastilho de fogo. Assim mesmo. Me tornei fã de imediato, presa do encantamento, quando ouvi o disco de estréia do Fleet Foxes, em 2008. Uma apresentação de gala desses músicos de Seattle, Estados Unidos. Um trabalho que parecia ter rompido a barreira do tempo, trazendo ecos de um mundo esquecido, de cores medievais, e sem cheirar, o que era melhor, a mofo ou ervas seculares. Mas, embriagante e mágico do mesmo jeito. Folk com referências de música barroca, apreendido sabe-se lá como por uma turma que ousava em investir no passado em meio a um planeta tão mergulhado na internet, redes sociais e cada vez mais entregue às batidas eletrônicas. Um som na contramão. Ainda assim, ganharam aplausos da crítica especializada, que listou o CD como um dos grandes lançamentos do ano. Voltam agora com Helplessness Blues(2011), obra de fôlego que não deixa nada a dever ao elogiado debut.

Assista ao vídeo de “Grown Ocean”:



São seis, os caras. Em comum, além desse gosto voluntário e desconcertante por uma musicalidade fora de moda, Robin Pecknold, Casey Wescott, J. Tilman, Skyler Skjelset, Morgan Henderson e Cristian Wargo gostam de melodias sinuosas, amparadas por uma instrumentação complexa, rica em detalhes, e vocalizações abundantes. São assim um tanto barrocos mesmo. Meninos malinos e incendiários. O folk do grupo ressurge com características semelhantes às já apresentadas no primeiro álbum. Contudo, soam mais grandiosos e deliciosamente pretensiosos. Há elementos novos, mas não surpreendentes em Helplessness Blues, como uma certa sonoridade árabe presentes na saltitante “Montezuma” e na cinematográfica “Bedouin Dress”. Surgem como uma cortina de fumaça, um pequeno e singelo aperitivo para o que de melhor a banda sabe fazer. E o melhor vem a partir da quarta música, “Battery Kinzie”.

“Battery Kinzie” remonta ao disco anterior, realinha o som do Fleet Foxes ao folk intenso e diferenciado, marcado pelo tom medieval e batidas fortes da percussão. Mas, com um peso maior dos instrumentos, pandeiros, violões acústicos e piano, entre outros, que elevam a potência da bela canção. Como essa composição, parte significativa das músicas do disco revela que os norte-americanos mostram-se menos sorumbáticos, mais próximos do calor do sol e seus raios animadores. E usam também, com o mesmo prazer e talento, uma das grandes virtudes da banda, coros afinados que servem de excelente companhia para o vozeirão privilegiado de Robin Pecknold. Esse coro, em arranjos espertíssimos, impressiona na excelente “The Plains/Bitter Dance”. As vozes soam como instrumentos, têm a tessitura etérea dos sonhos e casam com perfeição com violões, pandeiros e flautas que lembram, na raiz, um pouco o movimento armorial. A sobreposição dos vocais num crescendo ressalta ainda mais o lirismo dessa grande melodia, uma das melhores de Helplessness Blues.

Escute "The Shrine/An Argument":



The “Plain/Bitter Dancer” tem o mesmo vigor criativo da épica “The Shrine/An Argument”, com seus sete minutos e andamentos diferenciados. Pecknold acompanhado apenas de um violão acústico começa a canção de forma serena e depois abre as portas para que entrem, avolumados, a penca de instrumentos com sua sonoridade medieval. E ainda sobra espaço para esquisitices no final de tudo, guinchos atonais que parecem saídos da garganta de baleias. Essas duas canções, tão complexas e cheias de infinitos detalhes, dão a dimensão exata do exercício musical rebuscado do grupo. Essa arquitetura refinada exige paciência do ouvinte, que, em alguns momentos é poupado estrategicamente da robustez e preciosidade dos arranjos. Em pelo menos dois deles, na instrumental “The Cascades” e na plácida “Blue Spotted Tail”, um folk que lembra os emblemáticos Paul Simon e Art Garfunkel em seus momentos mais poéticos, os Fleet Foxes deixam que tudo flua mansamente, com estapafúrdia singeleza.

Helplessness Blues é enfim um desses álbuuns de cabeceira. Um Fleet Foxes fiel ao plano de se entregar ao barroquismo, aproximando-o da cultura pop. É um trabalho que não traz o elemento surpresa tão evidente e bem vindo no primeiro disco, mas que seduz pelo vigor das composições e cujos artífices mantêm, impressionantemente, uma até então inesgotável inspiração. Tem um cantinho do meu cérebro que se identifica com esse hibridismo passado/modernidade exercitado por algumas bandas e que, quando bem dosado, rende música de qualidade. É uma mistura que requer, contudo, equilíbrio de quem a experimenta. Esses caras de Seattle mostraram-se centrados nessa busca. Esse último álbum é uma elegia ao bom gosto, uma prova inconteste de que esses meninos ousam na medida certa. Uma obra de peso prontinha para se instalar no coração daqueles que estão predispostos s viver novas experiências e sensações. Viva, sem contra-indicações, o Fleet Foxes.

Cotação: 5

Viaje com os caras:

http://www.multiupload.com/RS_8S4JXP36D6

ou

http://www.mediafire.com/?t5469157pzayf88#1