terça-feira, 21 de junho de 2011

Contra o mau humor

Existe um preconceito em meio à crítica musical que muitas vezes empana a razão e entorta o coração. Dessas bobagens típicas de resenhistas casmurros que sobrevivem mal aos seus preciosismos e ao vazio de indulgência. Gente que cobra em demasia e ensaia textos ácidos para não se enquadrar no gosto comum, principalmente quando se trata de músicos que fazem sucesso. Observei isso com relação ao recente álbum do Strokes, o bacana e corajoso Angles. Do novo percebi esse ranço em resenhas venenosas e injustas sobre o último trabalho de um outro grupo que já alcançou o estrelato, o Arctic Monkeys. Muitos tentaram implodir Suck it and See(2011) por aquilo que ele tem de mais curtível, a pegada pop e quase juvenil, característica aliás que, me desculpem os incisivos e impiedosos críticos de plantão, é um dos combustíveis que tornaram o bom rock and roll um gênero tão carregado de honestidade. E é essa imperativa impulsividade que faz desse obra vilipendiada dos ingleses uma das mais interessantes que já ouvi nesse generoso ano de 2011.

Assista vídeo de "Brick by Brick":



O Arctic Monkeys voltou com aquela alegria desregrada presente nos seus dois primeiros álbuns, o efervescente Whatever People Say I Am, That’s What I’m Not(2006) que encarei, nas primeiras audições, com alguma desconfiança, e, para mim, a obra-prima, até agora, Favourite Worst Nightmare(2007). Com Humbug(2009), o grupo capitaneado por Alex Turner tentou um amadurecimento tipo microondas, rápido e forçado, perdendo aquela espontaneidade que havia arrebatado tantos fãs. Suck it and See parece ser uma tentativa de voltar às pazes com seu fiel público. E se essa era a intenção, os caras estão cumprindo com honras a missão. Orientados pelo produtor James Ford, o mesmo de Favourite..., Turner(vocal), Jamie Cook (guitarra), Nick O'Malley (baixo) e Matt Helders (bateria) escolheram um playlist de fácil assimilação, com muitas favas contadas, achados pops que irão movimentar pistas e girar indefinidamente nos tocadores de música da molecada e também, porque não, daqueles mais velhos que gostam da eletricidade do rock despojado. Um deles é a garageira e uma das melhores do trabalho, “Brick by Brick” com seu riff pesado de guitarra e o coro grave, que resgata o espírito festivo do Kinks.

Na mesma sintonia de “Brick by Brick”, primeira música de trabalho do CD, o repertório traz pérolas da mesma linhagem abrasiva impressa nos melhores álbuns do grupo, a exemplo de “Don’t Sit Down ‘Cause I’ve Moved Your Chair”, com a guitarra rascante de Cook em perfeita harmonia com o baixo de O’Malley. “All My Own Stunts” repete os riffs de cordas que tanto marcou a carreira dos britânicos. Elíptica, essa canção prende o ouvinte com sua boa melodia sinuosa e o vocal esperto de Alex Turner. Mas, a galera faria ainda melhor na provocante “Library Pictures”, que conta com as alucinadas viagens de Helders e a tresloucada guitarra de Jamie Cook numa festa, ora espertamente compassada ora pura pauleira, para nossos agradecidos ouvidos. Rockão de primeira perpetrado em poucos mais de dois minutos que já valeriam o disco. Sem dúvida, um dos melhores petardos do ano e revelador ainda de um Arctic Monkeys palpável, íntegro, cheio de boas idéias e inspiração.

Ouça “Library Pictures”:



Mesmo quando não solta os diabos, o grupo é capaz de cometer composições precisas. Prova inconteste disso é a saborosa música de abertura, “She’s Thunderstorms”, com sua guitarra hipnótica e melodia pra lá de marcantes, carregada de uma nostalgia romântica que remete aos grudentos clássicos do rock dos anos 50 do século passado. Envolventes também são as boas “Black Treacle” e “The Hellcat Spangled Shalalala”, baladas de uma simplicidade e ternura que chega a ser tocante. Com Suck it and See, o Arctic Monkeys foi taxado, por muitos, de burocrático por fazer um rock sem grandes pretensões e que casa com aquilo que os fãs de carteirinha esperavam da banda. Nunca esperei nenhuma grande ousadia desses rapazes, até porque para eles música parece ser unicamente sinônimo de diversão. E se ser burocrático é fazer, inteligentemente, como acredito nesse caso, música para a massa, então viva esses operários que nos dão prazer. Pelo seu descompromisso com a crítica chata e tacanha, esse álbum já é um dos meus preferidos de 2011. Dá-lhe Arctic Monkeys.

Abrindo aspas. Só a guisa de curiosidade, para o conhecimento de meus caros e reduzidíssimos leitores que ainda não sabem do fato: Suck it and See, com sua capa simplória e minimalista, mas título declaradamente imoral, algo numa tradução livre como “Chupe-o e veja”, foi, por isso mesmo, retirado absurdamente das prateleiras das lojas de disco norte-americanas. Fico pensando se os filmes blockbusters tão sortidos de palavrões produzidos naquele país fossem, por isso mesmo, proibidos de passar nas telas de cinema ou de TV de seu próprio território ou nações alheias, como estaria a milionária indústria holywoodiana... Para esse falso moralismo só poderia dedicar duas palavrinhas roubadas do vocabulário popular dos nossos irmãos gringos acima da linha do equador: fuck you. Ou em bom português mesmo: foda-se. Fechando aspas.

Cotação: 5

Antene-se:

http://www.fileserve.com/file/7ENv8f8/www.NewAlbumReleases.net_Arctic%20Monkeys%20-%20Suck%20It%20And%20See%20%282011%29.rar

quarta-feira, 8 de junho de 2011

Cão sem dono

Para ler ouvindo "Freguês da Meia Noite", de Criolo:



O aguaceiro veio sem piedade. Nas primeiras noites de chuvas torrenciais, o rio que passa do lado da casa onde morava começou a mostrar as garras, vindo lenta e insidiosamente em direção a madeira do batente. Aquilo não me incomodou muito nos dias anteriores a tragédia, porque minha memória de cachorro já registrara situações parecidas em outros tempos raivosos como aquele. E parecia também não tirar do sério meus amigos pulguentos da vizinhança e nem, ainda, assustar muito aqueles pobres diabos que cuidavam de nós. Nunca entendi porque meu dono insistia em morar numa casa de madeira a beira de um rio que sempre alagava com chuvaradas que pareciam sem fim. Não sei que tipo de carinho esses humanos tem por suas construções mal-ajambradas e fedorentas, cortiços que sempre tremiam diante de invernos encarniçados. Eu tentava relevar essa franca desgraça, afinal em troca de um pedaço de osso e um pouco de resto de arroz, não arredava por nada desse mundo o pé do alpendre cheio de goteiras que me protegia custosamente dos pingos d’água. Minha pouca, mas aguerrida dignidade, se apegava aquele conforto mesquinho. Não podia negar a raça, vira-lata que era.

Assista a vídeo com o vira-lata na enchente:



Não imaginava que esse ano seria diferente. Muito diferente. Nos outros invernos assistia, quase sempre sonolentamente, o burburinho dos humanos que se inquietavam diante de tamanha enxurrada. Discussões afiadas, a fêmea deles esbravejando na sala, com espuma na boca, como se fosse uma cachorra louca, apontando para o céu, riscando o ar nervosamente com seu dedo em riste. E o macho dela, meu outro dono, normalmente com olhos mareados, injetados de uma cor vermelho sangue, talvez por causa daquele líquido brilhante dentro de um vidro ainda mais brilhante que pendia invariavelmente de sua mão até rolar pelo chão, não ligava muito para o que a fêmea dizia. Mas, depois calavam e a chuva diminuía seu violento ataque fazendo adormecer todas as casas que nos rodeavam. E o chuvisco, como música de ninar, me fazia sonhar com noites de lua cheia. O que aconteceria nesse ano acinzentado me pegou de surpresa, me deixou assim num desamparo e amargor que arrepiou todos os meus parcos pelos, me sentindo terrivelmente como um cão sem dono.

Lá pela quarta noite depois de toda aquela água que caía esmurrando as telhas de amianto das casas, percebi que a história de memórias antigas não se repetiria. No tardar da madrugada, já com a alma intranqüila e a água pelo meio das raquíticas canelas, ouvi os passos acelerados de meus donos que corriam de um lado para o outro. Lati querendo atenção e afago, talvez uma explicação qualquer. Nenhum deles se dignou a olhar para mim. A voz dos humanos confundia-se com a chuva pesada, ribombando em meus ouvidos sensíveis de vira-lata. Tentei repetidos latidos e até ensaiei alguns uivos, exercício vocais aos quais pessoalmente nunca tive muito talento, mas em vão. Assisti, preso pelo pescoço à minha velha conhecida e encardida corda de todo dia, a evolução gradativa do que se tornaria, em rápidos e desesperados minutos, o mais absoluto e cruel esquecimento.

O desfile diante de meus olhos assustados foi ligeiro e caótico, obedecendo, no meu fraco raciocínio, à ordem de importância que os humanos davam a seus objetos, primeiro saiu porta afora aquele aparelho luminoso que repetia as imagens dos humanos, depois o objeto arredondado de cores esquisitas em que eles sentavam, e o outro de aspecto purulento em que dormiam e faziam barulhos altos. E eu ali, molhado até as entranhas, esperando a minha aguardada vez de ser carregado em braços quentinhos e acolhedores. Nada. O desfile continuou. Aquilo com que eles cobriam os corpos veio na seqüência, as tábuas redondas nas quais comiam, depois, e vieram um tanto de objetos que eu desconhecia e, por fim, meus próprios donos subiram em pequenos barcos e foram desaparecendo entre vãos que antes eram ruas, sem nem olhar para trás, sem nem olhar pra mim, já então completamente enregelado. Arregimentei forças e tentei ainda um último e desesperado latido, abafado pela impiedosa chuva. Não ouvi qualquer resposta. Era só eu agora, lutando contra a morte.

A morte se aproximou de mim meio desgovernada como os pedaços de paus e plásticos que a enxurrada trazia nas águas do rio agigantado. Ainda sentia o chão nas pontas de minhas patas úmidas. Restava-me morder, roer aquela corda fétida que pesava em meu pescoço magro de vira-lata. Na primeira tentativa, a maldita não quis ceder à força de meus dentes amarelos. Era preciso tentar mais uma vez. Senti que a corda não folgava, por uns instantes pensei que ela quisesse me apertar, se amarrar mais ainda em mim, como um desmerecido castigo, como uma mão invisível que me empurrasse para baixo, para as profundezas do rio. Lati raivoso e numa terceira e mais vigorosa tentativa, percebi que os fios do cordão se partiam aos poucos, caprichosamente. Anos de exercício roendo pacientemente ossos valeram o esforço. Forcei o rompimento com uma mexida brusca de cabeça, para um lado e para o outro e mais uma vez, outra vez, até que a corda partiu e ficou boiando presa à coluna de madeira da casa. Estava salvo. Agora sem pressa, com uma balsâmica sensação de vitória. Num lento e desolado nado de cachorrinho fui até a margem mais próxima, onde encontrei aliviado a terra firme. Debaixo de uma latada, cansado da guerra, cão sem dono, descansei a cabeça no piso de cimento e sonhei com um dia de sol.

P.S.: Nos dias 2, 3, 4 e 5 de junho de 2011 uma chuva intensa e intermitente caiu sobre o estado de Roraima. A pior dos últimos trinta anos. Virou notícia em rede nacional. Em Boa vista, o nível do Rio Branco subiu mais de 10 metros, alagando ruas e casas de madeira das comunidades ribeirinhas, famílias pobres que só abandonaram seus lares depois que a água chegou na altura do joelho. Os cachorros vira-latas, às dezenas, foram abandonados pelos seus donos. Muitos deles ficaram à beira do rio, perdidos, olhando de longe suas casas alagadas. Um pequeno detalhe dramático numa novela real que tocou a todos nós em Roraima.

P.S 2.: A visão mostrada na narração em primeira pessoa aqui é exclusiva do personagem.

terça-feira, 7 de junho de 2011

Depois da tempestade

Entre tantos erros que cometi na vida, um deixou especialmente minha alma esgotada, na penúria, como aqueles biafras de expressão tocante na parte vergonhosa da África que morre de fome. Daqueles erros crassos, clássicos que servem para moldar todo um caminho dali pra diante. É como conviver com o vazio, num diálogo claudicante com a dor. Errar leva a uma lição que deveria ser sempre inesquecível para aquele que protagonizou o tropeço. Uma espécie de jab retificador de nossa ingenuidade. “Um homem roubado nunca se engana”, diria o filósofo Chico Science, mestre de todas as horas. Tá certo, ele. Penso nisso quando me deparo novamente com uma banda que gostei de cara ao ouvir o surpreendente álbum de estréia. Guillemots é o nome. Fizeram bonito no começo e depois vieram com um segundo disco estranhamente incorreto, esquálido, risível. Erraram feio. Mas eis que souberam aprender com o deslize e agora lançam esse que é, para mim, um dos trabalhos mais encantadores do ano.

Assista ao vídeo de “The Basket”:



Aquele primeiro disco, o surpreendente, é Through the Windowpane(2006), de robusto conteúdo e melodia cortante. Um desses para figurar, de tão poético em seu fazer, na cabeceira de gente de coração mole como eu. Um disco assim como um dia de sol em que tudo dá certo. Red(2008), o segundo, foi o exercício da decepção, venal e frágil como as promessas de um político que nem a próprio mãe acredita mais. Tiro no pé. O terceiro, o redentor, chama-se Walk the River(2011), fluido assim feito avassaladora paixão de adolescente. Febril desse jeito mesmo, enquanto criação generosa entregue ao nosso deleite. O combo multicultural que reúne um inglês, o vocalista Fyfe Dangerfield, um escocês, o baterista Greig Stewart, o brasileiro e guitarrista Lord Magrão e a baixista canadense Aristazabal Hawkes, os Guillemots, acertou a mão, produzindo doze canções inspiradas num álbum equilibrado e pronto para arrebanhar, com sua envolvente entranha, mais uma nova leva de fãs.

E o que vem das estranhas de Walk the River? Vem música madura, feita com esmero por artífices que podem ser comparados com aqueles artesãos de peças únicas, rococós, talhadas contra a vontade desses tempos ligeiros, afobados. Com paciência é possível degustar aquilo que o primeiro CD do grupo tinha de melhor, melodias bem acabadas e costuradas com arranjos super espertos. Quem ouviu a obra de estréia do Guillemots, guarda com carinho na memória a tentativa dos músicos de construir composições quase épicas, grandiosas. Essa marca registrada volta à tona em canções como “Yesterday is Dead”, com seus oito minutos orquestrais, com cordas e coros que crescem aos poucos até o final apoteótico e cheio de texturas. Repare nos últimos segundos da música, onde, do nada, entra um enigmático coro infantil. Essas camadas sonoras, postas uma sobre as outras com arte e engenho, voltam a se repetir em “Sometimes I Remember Wrong”, com uma longa e climática introdução instrumental que bem dispensaria a cantoria triste de Dangerfield.

Gosto principalmente dos momentos mais pops do disco, aqueles em que os Guillemots soam mais diretos, ainda que, mesmos nesses casos, não dispensem uma certa grandiloqüência mal disfarçada nos arranjos. Talvez pensem que nos engana com esse truque de parecerem simplezinhos. E é assim que eles, de alma lavada e lavando a nossa, arrebatam o ouvinte num dos inícios de álbum mais bacanas com que me deparei este ano. As três primeiras músicas são de uma graça e inspiração que emocionam. A voz segura e limpa de Fyfe Dangerfield leva você, na música título “Walk the River”, a mergulhar num rio de sensações prazeirosas. Grande composição levada com paixão e zelo pelo vocalista. Mas, o melhor viria a seguir com a ótima “Vermillion”, uma das minhas preferidas, que começa acústica, emotiva e segue arredondando sua beleza com a entrada, aos poucos, de mais instrumentos até cair num solo vertiginoso de guitarra. Dez de luxo. Assim como a mais roqueira “Ice Room”, daquelas de rachar assoalhos com suas cordas nervosas e corinho que lembra um bom U2.

Ouça a excepcional “Dancing in the Devil’s Shoes”:



Eles são pop e acessíveis também em outras pequenas pérolas, como a deliciosa balada “I Don’t Feel Amazing Now” e a que já nasce clássica “I Must be a lover”, com um dos melhores refrões, entre os muitos criados com inspiração para este álbum. Esta última canção, pode até ser heresia minha, admito, assim como “Slow Train”, remetem ao rock bem produzido e popular cometido por um cara cheio de atitude, autor de pelo menos dois álbuns marcantes dos anos 90 do século passado, o britânico George Michael. Quem tem medo dele? E para terminar essa resenha tão cheia de adjetivos e elogios descarados, que me perdoem os que a lêem agora, chamo atenção para uma canção lenta, a atmosférica “Dancing in the Devil’s Shoes”, de rara beleza e na qual me deixo sempre navegar. Ainda quero compreender esse sentimento e esse fogo que ela acende em mim. O tempo há de abrir, espero, clareiras para esse entendimento. Talvez você até desconfie de mim nesse momento atravessado, afinal esse gostar disparatado tende a empanar a razão, que sempre se mete à cartesiana. Mas, do alto desse meu coração aberto em demasia, arrisco a dizer, e sem medo de errar, que “Walk the River” é obra pra ficar, um grande álbum da mais completa redenção dos Guillemots.

Cotação: 5

Escolha:

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segunda-feira, 23 de maio de 2011

Mulher Alfa

As mulheres são seres sobrenaturais, provavelmente o que de melhor temos circulando hoje na face da terra, ao lado do último disco do Arctic Monkeys e de Árvore da Vida, filme redentor do sempre surpreendente Terrence Malick. Nós homens, tão crucrinhos, temos perdido a noção da evolução. O início de tudo, aquele macaco darwiniano que descambou no pitercantropus erectus, deu uma arrancada, mas foi perdendo força com o andar estertorante dos séculos graças a uma certa pretensão dominadora. Meio que estagnamos numa espécie de lama narcísica. Já a mulher, bem mais inteligente, foi comendo pelas beiradas, crescendo com os erros dos machos, apegada na doce sustentabilidade do gênero erroneamente visto como “sexo frágil”. Tá passando da hora das mulheres dominarem o mundo com sua fortaleza e malícia. E não vejam aqui nenhuma defesa implícita à nossa executiva Dilma, ainda que ela seja uma mostra da competência delas de ganharem espaço. Falo de todas aquelas que jogam luzes sobre sua potencia e talento. Falo especificamente daquelas que mostram soberanas suas armas, como é o caso da intrépida Adriana Calcanhoto e seu mais recente trabalho, o álbum O Micróbio do Samba(2011).

Assista ensaio de “Eu Vivo a Sorrir”:



Adriana é o típico exemplo de uma mulher que amadureceu com inteligência e bom gosto. Recordo bem de quando ela me ganhou com uma interpretação plácida de “Naquela Estação”, música de melodia fácil dos craques Caetano Veloso, João Donato e Ronaldo Bastos inscrita no seu primeiro álbum, Enguiço(1990). Vi o show daquela loura oxigenada, era o que parecia na época aquela cantora branquíssima em minha visão empobrecida de um cara ainda casto, no saudoso Projeto Pixinguinha, em Brasília. Sala pequena e aquela mulher sozinha com o violão descansado sobre as pernas, divertindo o público com uma versão moleque de “Caminhoneiro”, de Roberto Carlos. Dava pra perceber que aquela gaúcha tinha algo a mais a oferecer do que interpretações lúdicas das composições de outros.

Escute a deliciosa “Mais Perfumado”:



Dela mesma, de punho próprio, viriam depois pérolas disseminadas ao longo de uma agora já longa carreira, a exemplo das bem engendradas “Esquadros”, “Aconteceu” e “Parangolé Pamplona”, para ficar em apenas três.Meio tempo em que ela angariou desafetos e um burro desprezo da crítica ranzinza que não a via mais como novidade, mas como uma cantora acomodada pelo peso e saturação das curtidas horas. Apesar dos altos e baixos, sempre guardei carinho por ela, até nos momentos menos inspirados de sua discografia. Sei lá porque, talvez por um crédito emotivo pela trilha sonora composta por ela e emprestada para instantes solares de minha vida.

Desde Maré(2008), um disco robusto e subestimado de Calcanhoto, reatei minha estima, adormecida até então, pela artista que sempre buscou, a seu jeito manso, se reinventar sem querer revolucionar. Com O Micróbio do Samba, ela continua essa procura, se concentrando nos sambinhas, gênero que sempre esteve aqui e ali em sua carreira. Dessa vez, deixa-se tomar pelo vírus do batuque sem necessariamente cair na bagaça, no frenesi do sambão sensual e hipnótico de terreiro. Faz sambinhas quase bossanovísticos, alguns carregados de uma disfarçada melancolia, caso do cadenciado “Eu Vivo a Sorrir”, a música que mais parece com a Adriana que a maioria conhece, com sua letra de marcante medula poética. “Eu vivo a sorrir pro caso de o acaso estar num bom dia/pro caso do destino me haver reservado a alegria/E o meu fado estar fadado a ser a sua sina”. Outros deles têm harmonia estranha ao gênero como a tensa “Aquele Plano para me Esquecer” e “Pode se remoer”, esta que nem samba se parece.

Mais fiel ao ritmo, sem perder a cadência do samba marcha lento, são as boas “Mais Perfumado”, dedicada a nova cantora Thaís Gulin, “Beijo Sem”, que lembra o estilo elegante e a rubrica do grande Paulinho da Viola, e a carnavalesca “Deixa, Gueixa”, com ares e espírito de bloco de Rua. Todas assinadas exclusivamente por Calcanhoto, à exceção de “Vem Ver”, em parceria com Dadi, as composições são uma homenagem personalíssima e pouco ortodoxa da artista a esse gênero musical que vive subvertendo nossa cultura, imorredouro que é e sempre trazendo novas propostas e roupagens. O samba tem que dar ainda e Adriana, simpatizante declarada já fez a sua parte. Contando aqui com o auxílio mais do que luxuoso de gente como Davi Moraes, Domenico e Rodrigo Amarante, que participam com dedicação dessa obra.

E se O Micróbio do Samba não é o melhor de Calcanhoto, que nunca será uma sambista de carteirinha, o álbum se sobrepuja nas letras, ora marcadas pela irreverência ora pela poesia com marcante conteúdo, como nesse último caso na já citada “Eu vivo a Sorrir”. E essa tem sido provavelmente a característica mais realçada do disco pela crítica de plantão. E fica mesmo difícil não ressaltar esse ponto forte diante da malícia e ironia de composições que trazem uma malandragem poética, como fizeram alguns bambas do início do século passado, tipo Assis Valente, Ataulfo Alves e Wilson Batista, entre outros, mas com um discurso inverso. Sai o machismo e entra o feminismo. A nova mulher que dá a cara a tapa, no sentido de enfrentar o mundo, é claro, aparece inteira, independente. Em “Beijo Sem”, Adriana decreta, em nome de todas elas: “Eu não sou mais quem você deixou, amor/ Vou a Lapa decotada, viro todas, beijo bem”. O homem aqui é um rendido a essa mulher que sabe o que quer, como em “Vem Ver”: “Por você tomava rumo, arrumava o que fazer/eu levantaria cedo, eu cuidava do bebê”. Vale viajar nas letras, nesse admirável mundo novo das mulheres prontinhas para conquistar a terra, como seres sobrenaturais que são. Permita-se esse passeio no disco, permita-se ser dominado por elas.

Cotação: 3

Download do micróbio:

http://www.fileserve.com/file/GSAzX4J

quarta-feira, 18 de maio de 2011

Aquele céu de Brasília

Foi assim naquela semana. Dava umas cinco horas da tardinha e aquele amarelo estapafúrdio cobria as ruas, os arranha-céus, as árvores retorcidas, amansando o dia feroz. Os carros, alheios ao esplendor daquilo que os rodeava, zuniam medonhos ao meu lado, tão insensíveis, espalhando a fuligem que se perdia pra nunca mais no meio da grandeza do céu resoluto, absoluto. E as pessoas também corriam afobadas nem sei atrás de quê, talvez fugindo do fuzuê, procurando algum remanso, a paz esquecida entre papéis de arquivo e contas a serem pagas. Escapando da tranqueira do cotidiano tão sem eira nem beira da cidade grande e confusa. Uma e outra olhavam pra cima, poucas se viam refletidas na mornidão acolhedora das horas moribundas do dia. Eu, estrangeiro, reverenciava mudo e abestalhado aquela santa tarde. O amarelo e o azul conectados como unha e carne, tão casados, desafiando a desembestada marcha dos trabalhadores no asfalto cru. Senti os dois atrevidos na pele, nos poros, aliviando meu cansaço, dançando alegremente em mim.

Estava em Brasília. Às 17. O céu da capital ao entardecer, seu pôr de sol vivificante chacoalhando imperioso com os meus sentidos. Tanto já falaram desse céu brasiliense que se movimenta impávido sobre nossas cabeças, como uma mágica que se repete generosa diante de nossos enfadados olhos. Os anos que vivi lá entre os prédios tímidos do Plano Piloto e as raquíticas árvores do cerrado, tão emprenhado de afazeres, deixaram-me a memória avermelhada e incandescente dos fins das tardes. Ruinzinho de memória que sou, essas, agradeço aos deuses das justas medidas, eu não as perdi, guardadas em um canto encouraçado do meu esgarçado cérebro. O reencontro nesse mês de maio com o céu às 17 da cidade revestiu-se do sagrado. Lembro bem em meu primeiro dia dessa volta, tão castigado pelo vôo insano de Boa Vista pra Brasília madrugada adentro até o romper das primeiras horas, crucificado depois pelo mecanismo cruel dos bancos e suas odiosas filas, ainda assim, tive a benção de uma tarde tão cheia de amarelo e azul que a minha alma descansou na paisagem, untada por aquele pacífico pôr do sol.

Naquele pôr do sol teve o diálogo silencioso do homem louco com o céu, descendo com sua particular elegância e roupas em farrapos o gramado do eixo monumental em direção ao nada. Olhando pra cima, apontando inexistentes nuvens, conversando com seu deus desgovernado. Talvez aquele homem, pensei, visse melhor o céu do que nós, pobres sãos.

Naquela hora, às 17 em Brasília, me dava então uma louca vontade de sair por aí fotografando tudo. Com meu celular se fazendo de câmera. Na Esplanada dos Ministérios, com seus executivos emaranhados nas cordas do futuro, a lente da máquina espelha os vidros tingidos de laranja, como um delicado papel de parede quadriculado, colado naquele azul de cor uniforme e sem nuvens. O concreto pintado de branco dos monumentos arredondados de Niemeyer se oferecia despudorado para os raios insidiosos que pareciam moldar nas construções modernas novas formas e insuspeitados ângulos. A rodoviária apinhada de gente banhada docemente pelo sol ganhava também novos contornos, enriquecida pela fusão do amarelo intenso com as roupas coloridas dos transeuntes. E se você pára pra reparar o que pode aquele céu arrisca até ser surpreendido por instantâneos de beleza. Como a visão da torre de televisão, ilhada pelo gramado, pelo sol e azul, com aquele risco branco, diáfano, deixado pelo jato que come milhas com a voracidade dos amantes matando saudade. Uma reta branca cortando o céu e sublinhando a armação triangular de metal que fura o céu azul. Parêntese na paisagem. É assim o céu de Brasília nessas tardes de maio, um convite irrecusável para nele se perder. Nele me perdi e me achei por alguns minutos. Abençoado, céu.

domingo, 8 de maio de 2011

Outras palavras

Filhos de Itamar Assumpção e da poesia uni-vos para salvaguardar a beleza e ousadia da música brasileira. Esse desejo vive em ebulição em mim. Explico, saudosista: houve um tempo na década passada em que experimentar, reinventar a MPB era uma prática saudável e radicalmente instigante. De cabeças inconformadas surgiram provocações tão intensas e incompreendidas quanto os desvarios poéticos do negro Dito Itamar, o atonalismo canibal de Arrigo “Clara Crocodilo” Barnabé ou o caudaloso canto falado do Grupo Rumo. Os filhos dessa geração de 80, mesmo que mais comedidos, tentam hoje colocar suas garras pra fora. Aqui e ali, onde os cérebros foram irrigados pela inquietação. Privilegiados filhos, como Téo Ruiz e Estrela Ruiz Leminski, que beberam de rica fonte para fazer de sua arte um hiato em meio à indigência e trambicagem que marcam hoje nossa produção musical mais comercial. São Sons(2011) chega assim coberto de angústia criativa, honestidade e solta verbalidade. São sons e palavras a serviço de uma curtida sensibilidade.

Veja o vídeo da música "Ímpar ou Ímpar", do disco anterior da dupla:



Téo e Estrela não são parentes. Têm, coincidentemente, o mesmo Ruiz no sobrenome. São namorados de amiúde convivência, de levar a vida a dois colados no cotidiano das horas inteiras. Parceiros no trabalho e no amor, os dois têm berço e influências musicais invejáveis. Estrela, por exemplo, é, além de cantora, escritora e filha dos poetas consagrados Alice Ruiz, que tem participação no disco, e Paulo Leminski. Não é pouco. Téo é músico de carteirinha, desses talentosos que só conseguem viver à sombra das melodias. Arte aqui é oxigênio. O passado deu a ambos uma educação musical refinada. E, mais do que isso, entregaram-se ao micróbio da invenção. Em São Sons, o segundo e melhor distribuído álbum do projeto Música de Ruiz, é possível vislumbrar aquela busca pelo novo, presente nos grupos e artistas citados no primeiro parágrafo. Sem esconder uma certa angústia em acertar o alvo, o casal, com voz infelizmente pouco marcante, passeia por diversos gêneros musicais, procurando talvez encontrar a sua praia. Não encontram uma para ancorar o barco, mas mostram um inconformismo que enche o ouvinte da esperança de renovação.

Ouça "Chose":



Senão vejamos, o baião nervoso “Quirera”, com seu discurso raivoso sobre a indústria musical do jabá, aquela que paga os meios de comunicação para fazer “decolar” seus maquiados produtos, lembra o genial paulistano Itamar Assumpção, que marcou sua carreira pela verborragia e estrutura melódica singular. Percussão e sanfonas dão um falso ar nordestino a essa deliciosa música feita pelos curitibanos. “São Sons” tem musicalidade incômoda, com todos seus contrapontos e atonalidade. Os meninos usam bem sua metralhadora giratória e incansável. O jovem casal brinca com o samba em “Chapéu de Sobra”, entortando o ritmo, enriquecendo-o ainda com um trombone louco e experimental e com a fantástica voz de Ná Ozzetti, que integrou o grupo Rumo. Téo e Estrela vão de rock acelerado na muito boa “Chose”, que mistura violão, sanfona e guitarra pesada de forma magistral. Meu amigo de trabalho, Odeli Sampaio, que tem um super ouvido e é produtor de áudio, disse que a música foi mal mixada. Independentemente dos pecados técnicos, é uma composição impactante. Tem também melodia com jeitão de tango, envolvido pelo brega e pela brejeirice, na voz única de Kleber Albuquerque, na ótima “Verossímil”.

Tantos sonoridades diferentes são sons que os Ruiz oferecem como se quisessem expurgar as múltiplas influências. Como se tentassem decupar, ainda que de forma desordenada, toda aquela invenção musical que viveram em sua formação e que fez a cabeça dos dois. Só para contextualizar essa conexão criativa e mais experimental: Arrigo Barnabé é paranaense e sua música moderna tem raiz em Londrina. Itamar Assumpção foi parceiro de Alice Ruiz em composições maravilhosas. Ou seja, todos encontraram-se de alguma forma numa rica intersecção cultural. No caso de Téo e Estrela, é bom que se diga, contudo: não há intenção explícita de se fazer experimentalismo. O disco cede também espaço para canções com estruturas harmônicas simples, que podem tocar facilmente em rádios com programação dedicada à MPB, a exemplo das lentas e bonitas “Estilhaço” e “Reivento”. E se eles não provocam nenhuma revolução ou arroubos formais, mostram-se generosos na invenção das letras, destoando da pobreza poética das novas estrelas da música, tipo os jabazeiros Luan Santana, Cláudia Leite e outras bobagens congêneres que assolam as rádios e tevês brasileiras.

Se a juventude topasse ouvir canções bem estruturadas poeticamente como, só como exemplos rápidos, o rock “Chose” ou o lindo samba cadenciado “Parece”, sentiria que a palavra é um instrumento precioso para se fazer pensar e encantar. Na primeira música, Téo filosofa com propriedade e alguma raiva: “Se cada passo tem um tropeço, meu passado pelo avesso/Cada tempo seu invento, cada passo o seu intento/Eu faço desse passo o meu próprio alimento”. Na segunda, a letra com ecos políticos, ensina como criar rimas bacanas sem dificultar a leitura para os de vocabulário diminuto: “Parece muito fácil mudar a mente alheia, fazer reforma agrária, uivar para a lua cheia/ Parece fácil a beça distribuir a renda, curtir a natureza, mas a guerra tem pressa/Se é fácil, me diz, mudar para outro país, ver teu show sem pedir bis, entender o que fiz”. As letras são o que de melhor traz o disco, que têm sim melodias bem sacadas como “Ávida” e a já comentada “Chapéu de Sobra”, só para citar as que vieram mais ligeiro à minha memória. Mesmo que irregular, São Sons é um álbum que enxágua nossa alma, porque é irrequieto e tem conteúdo. Um trabalho que chama atenção pela energia criativa e as melhores intenções. Vale à pena acompanhar a trajetória promissora de Estrela e Téo. Acredito, cheio de fé: deve vir mais um punhado de boas composições por aí.

Cotação: 3

Tente baixar o disco por aqui, no controlCcontrolV:

http://www.mediafire.com/?krvsetk4x1t9ndy

quinta-feira, 5 de maio de 2011

A foto do morto

O homem morto, ilhado por estilhaços e o sangue tingindo infame a parede, a cama, o lençol branco, testemunhas passivas de uma cinematográfica ação militar. Talvez isso. Talvez nada. Antes havia um fantasma de um homem vivo. Hoje paira o fantasma do homem morto maior do que era antes, fazendo sombra sobre nós. E surge imperioso o fantasma da dúvida se esse homem, com sua barba longa e passado entrincheirado, repousa mesmo debaixo de alguma terra em algum lugar desse mundo. Todos querem ver a foto do homem morto num mórbido e inquietante desejo de enterrar finalmente um capítulo sombrio da história da humanidade. Essa vontade coletiva, raivosa e tão loucamente humana de ver o terror selado dentro de um caixão imaginário, construído por milhões de pessoas que tremeram incrédulas diante de aviões suicidas jogados contra arranha-céus naquele fatídico dia em que o mundo também ruiu um pouco.

O homem sem o registro da morte estampado nas TVs, foi noticiado, teria sido jogado ao mar, desaparecido de vez de nossas vistas. Uma cerimônia fúnebre também sem registro, sem olhares curiosos. Sem choro nem vela à luz de holofotes. Insatisfação geral. Num planeta rendido à força intransigente das imagens, não bastava o anúncio verbalizado do assassinato por um presidente negro e poderoso, era necessária a visão ensangüentada da vítima perseguida por longos nove anos. Porque o mesmo mundo das imagens é o mundo do simulacro. A foto, o filme passou a ser cobrado aos brados, a parte perdida de um quebra-cabeças. A fotografia reclusa virou personagem, a estrela do noticiário depois da morte. Talvez guardada a sete chaves em um cofre. Talvez apenas arquivada na cabeça do estrategista que montou uma possível trama de grosso calibre. Estranha ironia. O homem barbudo e de turbante, até então coberto pela poeira do tempo, redivivo pela morte.

A morte sem foto e sem vela agora é também fantasma. Mais um fantasma do homem morto que assombrava os sonhos dos homens de bem. É o terror anguloso, cheio de surpresas, pregando, podem pensar alguns, uma piada de mau gosto em todos os que queriam cuspir em sua cara. Quem quer ver o rosto do homem morto? Prefiro pensá-lo longe de nosso mundo sofrido pelas guerras e atitudes insanas. Não quero ver a foto do homem morto e nem saber da notícia dela. Não quero me apegar a um papel com um rosto hirto estampado nele, uma face pálida endurecida pelo pó e enegrecida pelo sangue coagulado. Só quero um planeta melhor, sem violência e pânico, sem o preconceito que embrutece a alma, sem o terror que provoca choro em nome de ideais, quaisquer que sejam esses ideais. Sem nacionalismos extremados que produzem festas em cima de corpos sem vida no chão. Quero que a foto do homem morto permaneça enterrada junto com toda a tenebrosa história que se esconde por trás dela. Meu álbum de fotografias só admite fotos cheias de esperança de vida, de cliques de amizade ou de alguém que, mesmo que tenha partido definitivamente, só me faça lembrar a vida. Inteira e intensa como ela deve ser.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Barroco renovado

Foi incondicional como paixão que chega destemperada, deixando luminoso rastilho de fogo. Assim mesmo. Me tornei fã de imediato, presa do encantamento, quando ouvi o disco de estréia do Fleet Foxes, em 2008. Uma apresentação de gala desses músicos de Seattle, Estados Unidos. Um trabalho que parecia ter rompido a barreira do tempo, trazendo ecos de um mundo esquecido, de cores medievais, e sem cheirar, o que era melhor, a mofo ou ervas seculares. Mas, embriagante e mágico do mesmo jeito. Folk com referências de música barroca, apreendido sabe-se lá como por uma turma que ousava em investir no passado em meio a um planeta tão mergulhado na internet, redes sociais e cada vez mais entregue às batidas eletrônicas. Um som na contramão. Ainda assim, ganharam aplausos da crítica especializada, que listou o CD como um dos grandes lançamentos do ano. Voltam agora com Helplessness Blues(2011), obra de fôlego que não deixa nada a dever ao elogiado debut.

Assista ao vídeo de “Grown Ocean”:



São seis, os caras. Em comum, além desse gosto voluntário e desconcertante por uma musicalidade fora de moda, Robin Pecknold, Casey Wescott, J. Tilman, Skyler Skjelset, Morgan Henderson e Cristian Wargo gostam de melodias sinuosas, amparadas por uma instrumentação complexa, rica em detalhes, e vocalizações abundantes. São assim um tanto barrocos mesmo. Meninos malinos e incendiários. O folk do grupo ressurge com características semelhantes às já apresentadas no primeiro álbum. Contudo, soam mais grandiosos e deliciosamente pretensiosos. Há elementos novos, mas não surpreendentes em Helplessness Blues, como uma certa sonoridade árabe presentes na saltitante “Montezuma” e na cinematográfica “Bedouin Dress”. Surgem como uma cortina de fumaça, um pequeno e singelo aperitivo para o que de melhor a banda sabe fazer. E o melhor vem a partir da quarta música, “Battery Kinzie”.

“Battery Kinzie” remonta ao disco anterior, realinha o som do Fleet Foxes ao folk intenso e diferenciado, marcado pelo tom medieval e batidas fortes da percussão. Mas, com um peso maior dos instrumentos, pandeiros, violões acústicos e piano, entre outros, que elevam a potência da bela canção. Como essa composição, parte significativa das músicas do disco revela que os norte-americanos mostram-se menos sorumbáticos, mais próximos do calor do sol e seus raios animadores. E usam também, com o mesmo prazer e talento, uma das grandes virtudes da banda, coros afinados que servem de excelente companhia para o vozeirão privilegiado de Robin Pecknold. Esse coro, em arranjos espertíssimos, impressiona na excelente “The Plains/Bitter Dance”. As vozes soam como instrumentos, têm a tessitura etérea dos sonhos e casam com perfeição com violões, pandeiros e flautas que lembram, na raiz, um pouco o movimento armorial. A sobreposição dos vocais num crescendo ressalta ainda mais o lirismo dessa grande melodia, uma das melhores de Helplessness Blues.

Escute "The Shrine/An Argument":



The “Plain/Bitter Dancer” tem o mesmo vigor criativo da épica “The Shrine/An Argument”, com seus sete minutos e andamentos diferenciados. Pecknold acompanhado apenas de um violão acústico começa a canção de forma serena e depois abre as portas para que entrem, avolumados, a penca de instrumentos com sua sonoridade medieval. E ainda sobra espaço para esquisitices no final de tudo, guinchos atonais que parecem saídos da garganta de baleias. Essas duas canções, tão complexas e cheias de infinitos detalhes, dão a dimensão exata do exercício musical rebuscado do grupo. Essa arquitetura refinada exige paciência do ouvinte, que, em alguns momentos é poupado estrategicamente da robustez e preciosidade dos arranjos. Em pelo menos dois deles, na instrumental “The Cascades” e na plácida “Blue Spotted Tail”, um folk que lembra os emblemáticos Paul Simon e Art Garfunkel em seus momentos mais poéticos, os Fleet Foxes deixam que tudo flua mansamente, com estapafúrdia singeleza.

Helplessness Blues é enfim um desses álbuuns de cabeceira. Um Fleet Foxes fiel ao plano de se entregar ao barroquismo, aproximando-o da cultura pop. É um trabalho que não traz o elemento surpresa tão evidente e bem vindo no primeiro disco, mas que seduz pelo vigor das composições e cujos artífices mantêm, impressionantemente, uma até então inesgotável inspiração. Tem um cantinho do meu cérebro que se identifica com esse hibridismo passado/modernidade exercitado por algumas bandas e que, quando bem dosado, rende música de qualidade. É uma mistura que requer, contudo, equilíbrio de quem a experimenta. Esses caras de Seattle mostraram-se centrados nessa busca. Esse último álbum é uma elegia ao bom gosto, uma prova inconteste de que esses meninos ousam na medida certa. Uma obra de peso prontinha para se instalar no coração daqueles que estão predispostos s viver novas experiências e sensações. Viva, sem contra-indicações, o Fleet Foxes.

Cotação: 5

Viaje com os caras:

http://www.multiupload.com/RS_8S4JXP36D6

ou

http://www.mediafire.com/?t5469157pzayf88#1

sexta-feira, 22 de abril de 2011

Bons de melodia

O country é quase sempre visto como um estilo musical popular, alegre, dançante, apesar das baladas melosas dedicadas a amores frustrados e às belas mulheres que pontuam a história desse gênero genuinamente norte-americano. Mas, como tudo no mundo evolui, excluindo a cabeça do bronco e preconceituoso deputado federal Jair Bolsonaro, aquela música recebeu injeções de modernidade que impuseram a ela novos tons e texturas. Bandas como Uncle Tupelo, Wilco, The Jayhawks e Drive By Truckers tiraram-na do circuito caipirão, agregando ao som um instrumental mais clássico, ritmo mais lento e poesias mais substanciais. Ajudaram a criar um subgênero que denominaram alternative country, ou alt country, como é mais conhecido. O grupo The Mountain Goats, ouso dizer numa análise bem pessoal, parece ter bebido claramente dessa fonte. E é deles um dos bons discos estrangeiros lançados no primeiro trimestre deste ano, o melodioso All Eternals Deck(2011).

Veja participação do Mountain Goats cantando no David Letterman:

http://youtu.be/CmBKKDxWJsk

Antes de ouvir o disco encare bem a capa do danado na foto do primeiro parágrafo desta resenha. As letras brancas sobre o fundo preto. Simplesmente. Nada de novo no design, é claro, mas quem conhece um pouco a banda imagina logo que a proposta impressa ali anteciparia mais um trabalho lento, introspectivo, estilo lo fi que marcou a carreira da banda, como em Get Lonely(2006) e The Life of te World to Come(2009). O que se ouve, contudo, é um John Darnielle, o cabeça do grupo, menos soturno, mais virado para o sol. Como se toda aquela melancolia anterior, feito cobra que muda de pele, tivesse se descarnado e se mostrado com novo brilho e cor. Essa pujança está inclusive naqueles momentos em que Darnielle, autor de todas as músicas, e seus amigos revivem a angústia curtida e explorada antes de forma admirável, a exemplo da envolvente “Outer Scorpion Squadron”, com seu piano leve contrapondo-se a violinos tensos, e de “Liza Forever Minelli”, homenagem em tom menor à, ironicamente, esfuziante e midiática atriz de tantos musicais hollywoodianos.

Naquelas duas músicas citadas antes, apesar do andamento mais lento, percebe-se um peso maior na instrumentação. Um amparo pra lá de providencial. Benza deus. Se antes, os norte-americanos do Mountain Goats eram conhecidos pelo minimalismo no trato dos instrumentos, agora se vê uma banda que parece ter se entregue de vez a texturas mais cabulosas, expansivas. Violinos, teclados, juntaram-se a pianos e violões para comporem sinfonias encorpadas que, longe de afastar o ouvinte das letras darks e ácidas de Darnielle, só contribuíram, a meu ver, para reforçá-las. Um exemplo clássico é a linda “Age of Kings”, uma de minhas preferidas, que começa acústica para tomar ares épicos mais adiante com a inclusão de violinos dramáticos. Grande arranjo de cordas para uma melodia arrepiante. Bela também é “Damn These Vampires”, puro alt country valorizado por uma poesia rascante, fragmentária e raivosa. “Deus amaldiçoe esses vampiros pelo que eles fizeram comigo”, canta o líder da banda.

Ouça a bela "Age of Kings":



A boa voz de Darnielle, grave e cheia de personalidade, é instrumento para outras canções de forte apelo musical. E leia-se aqui melodias inspiradas. Até naquelas composições com arranjos mais tradicionais, que lembram, mesmo que de longe, o estilo indie-country, como “The Autopsy Garland”, marcada por uma bateria pesada, quase tribal, e a mais alegrinha, apesar do título doentio, “Beautiful Gas Mask”, animada por um violão tão cheio de energia, é possível sentir a inteireza e modernidade de canções buriladas por músicos talentosos. E que mantêm a coerência, percebida em toda a carreira, ao insistir em letras carregadas de fantasmagorias e imagens cortantes, sem concessões aos mais fracos de coração e estômago. Temos, contudo, que nos desligar do universo tão próprio e denso de Darnielle e viajar em suas construções melódicas, que encantam a alma, como a lenta “Never Quite Free” e a mais hardcore “Estate Sale Sign”, que, pode ter certeza, caro amigo, não vai fazer feio em sua descolada festinha.

E por falar em peso, a nota curiosa sobre este All Eternals Deck é que quatro das músicas do disco, segundo noticiou a imprensa, foram produzidas por Erik Rutan, guitarrista de uma banda de metal chamada Morbid Angels. Dizem até que Darnielle é fã desse rock mais enfurecido. Curiosa porque em nenhum momento percebi uma mão mais pesada na produção levando o grupo a canções mais desarvoradas ou habitadas por gritos roucos e guitarras no talo. O décimo álbum de carreira dessa galera é, ao contrário disso, um trabalho cuja intensidade está centrada unicamente, e me perdoem se estou enganado, já que não sou fã do heavy metal e seus congêneres, naquilo que The Mountain Goats sempre soube fazer com maestria: peças para embalar ouvidos maturados pela qualidade musical. E, com esse último CD, pode-se dizer sem pestanejar: os caras não perderam a mão.

Cotação: 4

Daunloude-se:

www.mediafire.com/?c3430ul0zbskywl

terça-feira, 19 de abril de 2011

Tem um roberto dentro de todo brasileiro

O que falar do rei Roberto Carlos que já não tenha sido dito? Mas, também, como não comentar uma data tão significativa quanto os 70 anos desse artista que espelha com tanta profundidade a alma romântica brasileira? Quando me entendi gente que gostava de música e precisava me posicionar diante de todos os gêneros musicais e seus múltiplos artistas que enriqueceram nossas mentes e aqueceram nossos corações nas últimas décadas do século passado. Quando precisei me instalar em uma tribo, atrás de juvenil identidade, logo me coloquei ao lado de gênios da MPB então em franca produção criativa. Eram fins dos 70 e início dos 80 do século passado. Fiquei do lado da intelligentsia, numa época em que gostar de Roberto Carlos era meio demodê. Me aquartelei entre as estrofes preciosistas de Chico Buarque, os rompantes tropicalistas de Caetano Veloso, os mergulhos tribais de Gilberto Gil e os sentimentos telúricos de Milton Nascimento. Roberto era vaga lembrança do passado, no máximo um símbolo do capitalismo e de um populismo viciante que arrastava milhões de brasileiros.

Ouça “Sua Estupidez”, com Ná Ozzetti:



Cego por um sectarismo típico do adolescente anti-norte-americano, cheio de ideais na cabeça, não enxergava que todas aquelas milhões de pessoas que se debulhavam em choro ouvindo “Detalhes” e cantavam a pleno pulmões “Amada Amante” estavam certas. E foram ironicamente meus velhos ídolos que me ensinaram a tornar o Rei um novo ídolo para mim. Gal Costa cantando lindamente o sucesso “Como dois e dois”, Caetano cercando-se de um coro arrepiante para construir uma versão fenomenal de “Muito Romântico”. E, no futuro, ouvindo ídolos ainda mais recentes, a certeza de que havia cometido uma imensa burrice, quando imberbe, desprezando o poder daquele cara. Ná Ozzetti intensa desfragmentando “Sua Estupidez”, Chico Science criando novo suingue para “Eles estão Surdos” e até Adriana Calcanhoto revelando uma insuspeitável leveza na canhestra “Caminhoneiro”. Roberto Carlos é sim, e não aventureiros como Romário, o “Cara”. Além do que, um homem que torce pelo intrépido Vasco da Gama tem, no mínimo, bom gosto.

Ouça “Como 2 e 2”, com Gal Costa:



O que o tempo foi me revelando, ao passar dos anos, a cada ponto que o Rei ganhava comigo é que em toda a minha vida houve a presença dele, como uma trilha sonora que continua rodando ininterruptamente até hoje. A memória obscurecida na adolescência foi clareando em minha maturidade. Lá estava eu, garoto, no cinema, ao lado de colegas ruidosos da escola Marista, vibrando com as aventuras de um Roberto Carlos indômito, a la Indiana Jones, esmurrando bandidos mal-encarados e vencendo a luta contra o mal, personificado pelo grande ator José Lewgoy. O Rei estava lá embalando suavemente, nas ondas de um radinho de pilha roufenho, os namoros de pé de muro, protegidos pela penumbra amiga, de minhas irmãs mais velhas. Estava na voz afinada de minha mãe, me ninando e amaciando o trabalho na máquina de costura no cantarolar de “Jesus Cristo”. Estava na voz da lavadeira, do peão de obra, na moça desiludida de olhos tristes, no violão do rapaz que trocava a tímida cantada pelo melodia sedutora de “Como é grande o meu amor por você” tocada, cheia de dedos, no violão. Tanta gente rendida ao seu gênio, às suas canções tão diretas e tocantes quanto pode ser um amor infinito.

Escute “Detalhes”, com Roberto Carlos:



Lembro depois, mais tarde, quando já havia absorvido sem chancelas a importância do Rei, do show dele que assisti fervorosamente ao lado de minha extasiada mãe. Lá pelos meios dos 90. Roberto estava numa entressafra criativa, que, aliás, se arrasta até hoje. Mas, isso não importava muito. Era um momento que cultivava e ansiava desde muito, como um encontro afetivo com o passado musical que negara por tanto tempo. Como uma declaração definitiva de amor a minha mãe. Nós dois ali num ginásio lotado. Na maioria por mulheres, pessoas com mais de 30 anos. Ele todo de branco. Elas todas perfumadas em seus vestidos de gala. E a orquestra de Roberto agigantando o romantismo das canções. O tremendão ainda não voltara, por um pudor besta, a cantar seus agitados rocks de jovem guarda. Naquele instante para mim, tudo o mais poderia ir pro inferno. E tudo me parecia tão mágico naquela noite que tive vontade de sair, qual louco, dançando com minha mãe nos braços. Ali fiz as pazes de vez com Roberto. Hoje, ele completa 70 anos e toda essa memória veio à tona volumosa, emocionada, me arrastando para perto do eterno Roberto. Posso quase tocá-lo agora, quem sabe roubar uma daquelas rosas vermelhas que ele arremessa para as fãs. Posso, sim. Saúdo o Rei. Longa vida ao rei.

Cotação: 10

Ouça "Todos estão Surdos", com Chico Science e Nação Zumbi:

terça-feira, 12 de abril de 2011

Amor, meu grande amor

Marcelo Camelo está apaixonado. E quem gosta da música do cara, ou acompanha o bestiário de fofocas que invadiu feito larva o dia a dia do brasileiro comum, sabe que a eleita é Mallu Magalhães, uma fofinha que canta músicas indie folks... fofinhas. E a moça parece ter feito muito bem ao barbudo que marcou o rock nacional dando inteiramente o sangue e a alma ao grande Los Hermanos. Mallu (Na foto em cena romântica com o amado) acendeu nele aquela chama exata, transformadora, que leva o nome de amor. Estar sendo devorado por esse fogo mágico que tudo molda gerou uma mudança na música de Camelo, afinou sua poética, afastou-o da imensa e sufocante melancolia que fez do seu álbum anterior, Sou(2008) um instransponível muro de pura e frio ensimesmamento. O amor esquentou o coração do artista que oferece ao público um álbum intimista, confessional, com uma carga de uma até então insuspeitada alegria e de instrumentação densa. Toque Dela(2011) tem o toque dela e toda uma consubstanciada paixão que ele carrega.

Ouça "Ôô":



O segundo álbum solo de Marcelo Camelo é todo esse seu momento de plenitude. Amor é um sentimento que não se basta e não se contem dentro do peito. Tomado por ele, o carioca, sensível como ele só, parece ter a necessidade de expô-lo, de compartilhá-lo. Tenta explorá-lo, decifrá-lo em canções intensas e repletas de achados poéticos. Amor é o tema comum a boa parte delas. Letras e melodias trilham caminhos de absoluta interação. Enamoradas, complementam-se harmônicas como se feitas uma para a outra. Como um casamento feliz, com o cheiro e a costura da eternidade. Inspirado, Camelo é capaz de construir espécies de hai-kais ultra-românticos, exemplo de trecho da lenta “Meu Amor é Teu”, na qual declara, como um Werther redivivo, “Meu amor é teu, mas dou-te mais uma vez”. Ou também de elaborar versos tão singelos, quanto criativos, exercitados na fantástica “Três Dias”, que já nasce clássica: “Se falta carinho, ninho/ Se tiver vontade, chama/Mas, se faltar a paz, Minas Gerais”. Ricas imagens poéticas a serviço de uma melodia pra lá de tocante.

Ouça a magnífica "Três Dias":



Muitos hão de achar que Toque Dela tem estrutura harmônica parecida. Impressão dos afobados. Diferentemente de Sou, que traz um minimalismo reforçado pela parca instrumentação e pela já comentada levada melancólica, o novo álbum impõe variações rítmicas que repetidas audições irão prazeirosamente revelar. É disco pra se degustar sorvido lentamente, como velhos e encorpados vinhos tintos. Daqueles esquecidos sabiamente em adegas seculares. Se composições como “Três Dias” e a também calminha “Tudo o que Você Quiser” remetem ao Camelo dos dias cinzentos, o restante revela um compositor que fez as pazes com a alegria e a serenidade. A sincopada “Acostumar”, por exemplo, tem uma leveza que nem a farta instrumentação usada consegue esconder. É melodia singela, frutada, uma das melhores do trabalho. “A Noite”, música de abertura, é outra que merece destaque. E aqui, Camelo já demonstra, de cara, que pretendeu vestir de gala suas ricas melodias. Intento conseguido por arranjos espertos e uma gama substancial de instrumentos.

Para dourar sua música, o ex Los Hermanos chamou a Hurtmold, banda paulista integrada por músicos talentosos e extremamente cultuados no underground. Vale dar uma passada pela discografia surpreendente e refinada desses caras. Eles são os responsáveis pelos metais e cordas que contribuíram para dar forma, ângulos inéditos ao espírito essencialmente solar e vivo de Toque Dela. Sax, trombones, guitarra, baixo “falam” alto, são atores ativo em arranjos que privilegiam a instrumentação. O instrumental chega mesmo a ser exagerado em alguns momentos, como na mais agitada de todas, a rocker, ou algo que se aproxime disso, “Pretinha”. Esta, uma canção ligeira com aura experimental, provocada por uma dissonância esquisita de guitarras e baterias, descompromissadas, intrigadas com a voz frágil de Camelo. Mas, no geral, a moçada do Hurtmold está a serviço do equilíbrio, baixando até o tom, quando necessário, como, por exemplo, no batuque e na simplicidade que fazem de “A Despedida”, composição que o público já conhecia na voz de Maria Rita, uma das mais diretas e saborosas faixas do álbum.

Toque Dela é desses álbuns de indiscutível coerência melódica, alcançada somente por quem entende do riscado. Marcelo Camelo resolveu ser mais assertivo e transparente. Canta o amor como raros, espanta soberano a solidão e entrega para os ouvintes um disco elegante, talvez até chato para alguns, principalmente para aqueles que não têm paciência de refinar a poética caudalosa proposta pelo músico carioca. Talvez você até encontre aqui e ali, em lampejos fugidios, ecos da banda que entronou camelo na história do rock nacional. Melhor mesmo é, fãs dos Hermanos, relaxar e absorver a entrega amorosa e cheia de significados que este trabalho traz. Tem que ter coração grande, aberto, para acompanhar essa obra. Ouça com cuidado. E mais uma vez ouça. É só sentir e se deixar levar. A recompensa vai vir no final.

Cotação: 5

Entenda todo o amor de Camelo:

http://rapidshare.com/#!download|578cg|456195501|MarceloCamelo-ToqueDela2011.rar|40562

domingo, 10 de abril de 2011

Voando alto

Aquilo que antes era apenas uma penugem transmudou-se em penas fortes, lustrosas. Cada vez mais longe do ninho e afoita, aventureira em busca de novos horizontes, ela sabe que existe um grande e inescrutável espaço a conquistar. Mundo vasto mundo, se ela se chamasse Maria, que rima o poeta faria? Mais segura, Tiê, a cantora paulistana com nome de pássaro, alça agora vôos mais longos, definitivos. O segundo álbum está aí para provar que a promessa de uma artista de personalidade forte se confirma concretamente. Ponto para essa moça talentosa que chegou assim pianinho, passarinhando suavemente, e, sem mais avisar, como uma fera sorrateira, se agiganta diante da gente. A Coruja e o Coração(2011) é trabalho cuidadoso, pequena jóia barroca, feito para firmar Tiê nesse universo restrito de artistas brasileiros com assinatura e brilho próprios.

Veja o clipe de "Na Varanda da Liz”:



Há dois anos, Tiê entregou de forma independente um CD tão confessional e cheio de lirismo que logo chamou a atenção da crítica especializada. Poucos acompanharam os primeiros passos da artista que exibia uma sonoridade que logo tacharam de neo folk, ou algo parecido. Porque íntimo, acústico, econômico, feito daquelas palpáveis tristeza e doçura que caracterizam o gênero. Sweet Jardim(2009), que me inspirou uma resenha aqui mesmo no meu insensato blog, era diferente, não seguia as tendências da música brasileira. Meio assim deslocado com sua abusada simplicidade e sinceridade. Tanto que, por ser rara, a artista logo foi colocada no balaio do que recentemente denominaram de “Novos Paulistas”. Mania essa da imprensa de criar grupelhos, imaginários movimentos musicais, levada pelo surgimento de talentos contemporâneos, a exemplo dos conterrâneos Tulipa Ruiz,Thiago Pethit e Marcelo Jeneci, autores de discos incandescentes e marcantes em 2010.

Faça o download e ouça “Só Sei Dançar com Você”:

http://www.divshare.com/download/14536235-57b

No mesmo ano do lançamento de Sweet Jardim fui assistir a um show de Tiê num pequeno e abafado pub em Brasília. A primeira apresentação dela na capital. Bem no gargarejo, premiado pelo desconhecimento do brasiliense daquela moça postada ali, cheia de dedos, num diminuto e improvisado palco. Só ela e violão. Confirmei ali minha impressão de que aquela dona tinha algo de especial, encantatório. A mesma vozinha miúda que ouvia no headphone embalando aquelas canções tão delicadas. Fiz questão, numa desavergonhada ti(ê)tagem, algo que quase nunca faço, de comprar o CD e pedir que a baixinha autografasse. A Coruja e o Coração só reforça o encantamento. Gosto dos passos dados adiante sem que se perca o DNA, de quem não se acomoda e mapeia novos territórios com aquela típica sede do conquistador. Esse álbum tem um pouco disso, amparado pelo contrato da artista com a blockbuster Warner.

A ligação com a Warner, e muitas vezes isso acontece, não desfigurou o som e o canto de Tiê. Parece apenas ter lhe dado mais munição para produzir um trabalho mais encorpado, com recursos técnicos e instrumentais que a falta de verba não lhe proporcionara antes. A compositora e o aclamado produtor Plínio Profeta, que a acompanha desde Sweet Jardim, puderam contar com o auxílio de afinados músicos e a presença de um bom punhado de convidados. E esse é um dos diferenciais mais notados em relação ao primeiro álbum. Percussão, cordas, metais surgem inteiros nos belos arranjos da nova investida da paulista. E isso é percebido fortemente na música de abertura, “Na Varanda da Liz”, composta para a filha, embalada por muitos e intensos instrumentos que quase fazem a voz da cantora sumir. Aquela levada acústica que ganhou mentes e corações só aparecem nas lindas e mais cools, “Piscar o Olho” e “Te Mereço" e seu piano ensimesmado, que poderiam fazer parte naturalmente do primeiro CD.

Mas, o uso farto dos instrumentos serve apenas para amplificar a poética de Tiê. Tudo continua intimista e confessional como antes. A balada “Perto e Distante”, com a participação do uruguaio Jorge Drexler e um sax cortante, traz letra de diário que sensibiliza até os mais brucutus. “Quem garante que o que você é é o que o outro enxerga?”, filosofa a cantora nessa composição densa. Os ricos arranjos e todos os músicos contribuem ainda para adicionar a A Coruja e o Coração um elemento invisível no trabalho anterior, o pop. A já citada e radiofônica “Na Varanda da Liz”, talvez a mais radiofônica de todas, e as ótimas “Pra Alegrar o meu Dia” e “Hide and Seek”, essas com levada country, graças ao bandolim de Profeta, são assim: alegres, solares e prontinhas para seduzir um público, diríamos, menos exigente. Tem até uma versão flamenca e alienígena do forró “Você não Vale Nada”, que foi tema de novela das oito na Globo.

E tem ainda, em contraponto ao visceral e divertido forró de Dorgival Dantas, as versões das matadoras “Só sei dançar com Você”, de Tulipa Ruiz, e “Mapa Mundi”, de Thiago Pethit, que, se não acrescentam muito às originais, são conduzidas com brio e leveza. As duas contando com a participação daqueles “novos paulistas”, autores incensados e criadores iluminados. Para fechar essa alongada resenha, diria que, no frigir dos ovos, A Coruja e o Coração é um disco generoso, convincente, de vivo aconchego. Obra madura de uma artista veio para ficar. Avoé, Tié.

Cotação: 5

Voe com Tiê:

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quinta-feira, 7 de abril de 2011

Onze brasileirinhos

Os Estados Unidos são aqui? A morte e a tragédia se manifestam sempre vis e eloqüentes. Calam o cidadão, calam a gente. Calam um país. De que matéria é feita esses fatos que acordam nossa indignação e nos deixam tartamudos e nos fazem pensar, espantados, de que matéria somos feitos? O que leva alguém a entrar numa escola repleta de crianças, “brasileirinhos”, como os chamou a presidente Dilma, cheios de vida e planos e atirar contra eles? A tragédia no Rio, numa escola do Realengo, que aconteceu nesta quinta estranha é um soco no estômago. Uma lição de como estamos expostos a nossa loucura, a uma realidade cada vez mais parecida com uma fita de cinema. E, pessoas comuns, atores desavisados dessa doído filme cotidiano, viram manchetes incômodas, espelhos do que pode acontecer a todos.

Somos os Estados Unidos que testemunharam tragédias parecidas? Parecíamos tão longe disso tudo. Já não estamos agora. Podemos até ser mais afáveis que os norte-americanos, traço sempre realçado de nossa alegre personalidade, mas somos loucos do mesmo jeito. Morreram onze brasileirinhos. Com nomes, famílias, carrinhos coloridos, bonecas despenteadas, amigos, com pouca idade e tanta coisa pra fazer. Tanta coisa. Morremos um pouco todos nós, brasileiros e brasileirinhos, e também morre um pouco nossa santa ingenuidade. As tragédias não medem choro e perplexidade. São tsunamis em nossas entranhas que devastam um pouco de nossa já combalida humanidade. E toda essa inquietante tristeza que ela causa faz com que reflitamos sobre o que o tempo e uma moral sempre em cheque faz com nossa alma.

Perdemos onze brasileirinhos. Com dentes esbaldando sorrisos, com línguas aprendendo o vocabulário, com olhos abraçando o mundo, com pés miúdos aprendendo a dar passos largos. Perdemos tudo isso. Só não podemos perder a capacidade de transformar essa tragédia na promessa de que nunca vamos nos conformar com isso, nunca vamos deixar que isso pareça banal. Porque para cada louco que atira contra a humanidade, contra ser humano, tem que haver um milhão de pessoas prontas para defendê-la. Choremos e sejamos humanos. E vamos rezar também para que esta quinta-feira estranha tenha sido apenas um tropeço estúpido na história de nosso país rumo a uma arquitetura da paz. Aqueles brasileirinhos que, injustamente, não vivem mais entre nós merecem.