segunda-feira, 21 de setembro de 2009

Pra fazer a cabeça

Otto nasceu pro mundo artístico em vôo solo com um belo exercício de modernidade de título provocador. A obra em questão era Samba pra Burro (1998), discaço no qual desbravava, qual um navegador assanhado e febril, novos territórios sonoros. Mestiçagem da boa, um flerte entre a tradição e o novo que se tornou referência para muitos outros músicos bons de bola. O faixa Otto era como um Carlinhos Brown pernambucano, inquieto na experimentação musical, com uma cabeça astronauta funcionando a mil. Quando não estava, é claro, sob a influência da diamba, filosofando palavras soltas, rindo de si mesmo e do mundo. Uma figuraça.

O galego, que deixou muito marmanjo morrendo de inveja quando teve um longo relacionamento com a bela Alessandra Negrini, tinha tirado umas férias. Desde o bacana Sem Gravidade(2003), não gravava nada. Voltou agora, seis anos depois, com Certa Manhã acordei de Sonhos Intranquilos (2009), quarto trabalho de estúdio, que traz sua incontestável assinatura. É uma continuação de seu disco anterior, sereno, fruto de um Otto mais maduro, desenvolto, disposto a assumir descaradamente influências do passado e arriscar passos mais dramáticos e objetivos. Um artista cada vez mais desnudado, corajoso, sem querer vender a imagem de moderninho que marcou o início de sua carreira.

A filosófica “6 minutos”, tamanho real da música, é bem sintomática dessa sua fase atual. Com uma bela melodia, o artista assume um lado despudoradamente passional. A competente guitarra derramada, sinuosa que introduz a composição abre caminho para uma letra rasgada e viajandona. “Nasceram flores no canto de um quarto escuro/ Mas eu te juro, são flores de um longo inverno”, canta Otto com sua voz carregada. É talvez a declaração de renascimento depois do período de reclusão. O artista, um dos pais do mangue beat, nunca foi tão confessional. Sem medo de ser feliz.

Esse Otto romântico, até meio brega, surge solene em outros momentos do álbum. Como na releitura de "Naquela Mesa", clássico incandescente de Sérgio Bittencourt. O artista mantém a dramaticidade da música, hit dos anos 70 do século passado na voz do mítico Nélson Gonçalves, acrescentando um teclado típico do brega nordestino – referência assumida –, tornando ainda mais popular o velho samba canção. Uma delícia. Há também nostalgia em “Saudade”, uma da melhores do álbum, com uma levada de carimbó, percussão e cordas marcadas, sensuais, boa para dançar coladinho. A participação especial da mexicana Julieta Venegas (que também canta na ótima “Lágrimas Negras”) só aumenta o clima caribenho da canção.

Mas, há ecos, mais contidos, daquele Otto do Samba Pra Burro, na busca de sonoridades mais modernas. É o caso da chata “Meu Mundo” e da fantástica “O Leite”, esta última com inserção de toques eletrônicos e batucada, numa mistura sedutora, valorizada cem por cento pela voz da cantora Céu e a letra passional. Como num tango. “Quando eu saí da sua vida, bati a porta / saí morrendo de medo do desejo de ficar”, canta docemente os dois, perfeitamente coadunados. Pra dançar, o artista nos oferece a gostosa “Janaína”, onde reverencia o batuque do candomblé, presente invariavelmente em todos os seus discos, dessa vez com um marcante solo de guitarra, a cargo do instigado Fernando Catatau. Fazem parte ativa da trupe ainda, entre outros, Pupillo e Dengue, baterista e baixista da amiga Nação Zumbi.

Certa manhã acordei de sonhos intranquilos, lançado até agora só na gringa, é um disco instável, sem a vitalidade do debut e de Condom Black (2001), mas ainda assim uma obra com personalidade e bons achados. É raro ver um artista que mantem uma coerência em sua carreira, como Otto. O cara não ta aí pra agradar a crítica de plantão nem os filhinhos do Faustão. Não quer se amaziar com o sucesso, nem ser o guru da nova geração. Quer fazer o que gosta, uma música desapegada, honesta, que tem a ver com seu momento e sua verdade. Esse álbum é assim, verdadeiro e por isso tá aí pra fazer a cabeça de muita gente. Com ou sem diamba.

Cotação: 3

Download ottorizado:

http://www.mediafire.com/?1mjxyzzjdjj

ou:

http://www.4shared.com/file/129755990/280b39c1/Otto_-_Certa_Manha_Acordei_De_Sonhos_Intranquilos__2009_.html

domingo, 13 de setembro de 2009

Vendo corações partidos

A dor de cotovelo é tão antiga quanto à humanidade. Desde que o homem começou a raciocinar e a amar, desde que do outro lado da ponte havia alguém do sexo oposto, ou do mesmo sexo, disposto a um relacionamento amoroso, o coração sempre correu riscos. Pobre dele. E quando as decepções amorosas surgem, quem já passou por elas sabe, nascem dores abissais, certificados de fracasso e angústia pendurados na parede da alma. Mas, como, a gente também tem o dom do renascimento tão forte quanto à propensão a dor, fomentamos, mesmo nadando num vale de lágrimas, a vital esperança.

Esse sentimento de perda contraposto a luz no fim do túnel é o combustível aditivado de The First Days of Spring(2009), o segundo trabalho, depois de Peaceful, The World Lays Me Dow(2008), de Noah and the Whale, uma banda que está conquistando cada vez mais espaço entre os indies. O álbum, coeso em sua proposta, parece ter sido engendrado por alguém que estava passando por um profundo perrengue sentimental. Vai ver Charlie Fink, vocalista e principal compositor da banda, estivesse vivendo uma daquelas desilusões amorosas cinematográficas e o que é melhor, para nós ouvintes, disposto a reparti-la com o mundo.

The First Days of Spring é assim um belo e melancólico testemunho de corações partidos, mas dispostos, em algum momento, a começar tudo de novo. A sonoridade é folk resvalando aqui e ali em tons orquestrais que só ampliam a intensidade das canções. Pelo menos uma delas, “Instrumental I” tem uma roupagem mais clássica, meio épica e próxima à erudição, com coro de orquestra e cordas e metais ensaiando pompa. Uma melodia que parece ter se inspirado na parte dedicada à primavera da famosa sinfonia “As Quatro Estações”, do italiano Antonio Vivaldi. Seu andamento febril evoca fortemente domingos de sol, piqueniques e crianças alegres correndo no gramado.

A grandiloqüência daquela música não é, porém, lugar comum neste trabalho do grupo londrino. O álbum de Noah and The Whale flerta mesmo é com a melancolia, mas sem ser, antes que isso espante aqueles que fogem de sons mais delicados e downtempo, estupefaciente. É uma tristeza tratada com ternura, com a abertura para uma virada de sentimentos e postura citada no início desta resenha. “The First Days of Springs”, a música que dá nome ao CD, por exemplo, começa marcial, com um tambor monolítico, e segue com uma linda melodia que, num crescendo, desaba em arranjo orquestral clareando um cenário que pendia para o glacial.

“Our Window” utiliza-se de um piano tristíssimo, em compasso preguiçoso, chamando a cumplicidade de um violão emotivo e de uma bateria doce e sossegada. A bonita composição rivaliza, em inspiração melódica e arranjo consistente, com “Blue Skies”, que ganhou um clipe e espaço nos hds da galera antenada com a boa música indie. “Esta é uma canção para qualquer um que tenha o coração partido”, avisa Fink, abrindo lá na frente um clarão de esperança e alegria: “Céus azuis estão chegando”. Corinho e pandeiro hippie ajudam a criar uma imagem positiva para acalentar aqueles feridos e desterrados pelo amor.

Os corações destruídos voltam na mediana “My Broken Heart", cujo grande problema é sua vocação para a monotonia, temática e sonora, depois de quatro músicas incandescentes e apaixonadas. Talvez, seja isso na verdade, o que incomoda um pouco no álbum. Essa coesão conceitual, centrada na perda amorosa, e o abuso de violões dedilhados e pianos açucarados dão canseira em certos momentos da audição. Não tiram, contudo, o mérito de uma obra densa, introspectiva e com honestidade poética. O talento de Noah and the Whale para a criação de canções de forte apelo dramático torna-se aqui evidente. Quem sabe no próximo disco, com todos do grupo vivendo grandes amores, tenhamos um trabalho com uma carga de otimismo transformada em canções para dançar sob o sol.

Cotação: 3

Junte os caquinhos:

http://www.mediafire.com/?wwzznymxzzw

segunda-feira, 7 de setembro de 2009

Asas aos sonhos

Milhares de balões coloridos levando um velho rabugento e uma criança rumo a um antigo sonho. Uma história com sabor de clássico e que lembra o otimismo impresso com toda ternura nas películas de Frank Capra. Esta foi a primeira sensação que me deixou Up – Altas Aventuras, a mais recente mostra de virtuosismo técnico e emocional da parceria Pixar/Disney. Feito também em 3D, a atual obsessão dos estúdios de animação, o fabuloso longa-metragem vende magia, lições de moral e preciosismo em doses democráticas. Diversão feita com esmero e inteligência.

Difícil, para quem não tem preconceitos com qualquer gênero cinematográfico, não gostar de um desenho animado de tamanha boa intenção e pretensão artística. Ainda mais quando o roteiro, simples e inventivo, tem elementos de sobra para encantar crianças e adultos, mesmo utilizando-se de lugares mais que comuns. Lá estão o velho castigado pelas inevitáveis perdas provocadas pelo impiedoso tempo e a criança em estado puro de energia, representação icônica do novo e da esperança. Os dois com níveis de expectativas diferentes na vida, mas que se encontram em torno de uma mesma paixão que os vai unir: o desejo pela aventura.

Essa intersecção se dá de forma inesperada na bem bolada história com jeitão de fábula urbana. Carl Fredricksen, um ex-vendedor de balões de 78 anos que perdeu o bom humor depois que a esposa faleceu, dá asas, por uma circunstância fatal, a um sonho que o tempo se encarregou de frustrar: morar no topo de uma montanha na América do Sul marcada por uma imensa cachoeira. O local é um paraíso quase mítico que o homem nunca conseguiu alcançar. Suas asas são incontáveis balões coloridos que transformam a casa em que viveu com sua única mulher num histriônico dirigível. Voar é a chave para a fábula aventureira.

Aqui entra o contraponto que vai gerar o conflito emocional e toda a afetividade presentes no filme. Inesperadamente, Fredricksen é obrigado a levar um “fardo” na sua surpreendente viagem em direção ao desconhecido, o garotinho Russel, um escoteiro com traços nipônicos cujo sonho, por sua vez, é ganhar um distintivo. É a única premiação que falta na coleção do menino para que ele ganhe a honra de ser, na hierarquia do escotismo, um “grande explorador”. A química dos sonhos acaba abrindo as portas no filme para um relacionamento antes marrento, mas depois terno e altruísta.

Esse é resumidamente o mote da animação que, lá na frente, apresenta o vilão da história, uma surpresa para o espectador. No meio de um tiroteio de interesses divergente vividos pelos personagens, Up – Altas Aventuras, dirigido por Pete Docter(Mostros S.A), é construído de momentos tocantes e bem humorados. Não faltam mensagens ecológicas e de companheirismo numa trama lúdica que ganha a platéia exatamente por não complicar o meio de campo. Tudo ali está muito objetivo, palpável e sólido como a impressionante técnica em 3D desenvolvida pela Pixar, a mesma de Toy Story e da obra-prima Wall.E, que aproxima magicamente o público do real.

É alta tecnologia a serviço de uma fábula contada com alegria e emoção. E, o que é melhor, com ares nostálgicos que remetem à era de ouro do cinema norte-americano. Os sensacionais cinco minutos iniciais, praticamente sem diálogos, reforçam ainda mais esse clima. O espírito de aventura, um mundo desconhecido no meio do continente sulamericano, dois insuspeitos e simpáticos “indiana jones”, os coadjuvantes que fogem da linha do tradicional, tudo isso colabora para aquela sensação que rende uma grata e saborosa sessão. Fascinante para as crianças e divertida para os adultos. Mais um grande desenho animado, que tem tudo para entrar na lista de clássicos de uma parceria que está reinventando a história da animação na sétima arte.

Cotação: 4

Veja o trailer legendado do filme:

http://www.youtube.com/watch?v=ydmQXtfnnFY

quinta-feira, 3 de setembro de 2009

Casagrande é do rock

Naquela tarde quente de 15 de agosto, a deliciosa costela de tambaqui que havia comido alguns minutos antes ainda estava sendo digerida pelo meu preguiçoso aparelho digestivo quando vi, redivivo, Walter Casagrande na TV Globo. Vidrei: o ex-jogador e comentarista de muitas tardes de domingo de futebol, defenestrado de nossa telinha após um relacionamento hardcore com as drogas e um longuíssimo silêncio, voltava inesperadamente a ativa. E pra falar logo de...rock and roll. Uau, imaginei, pra emendar depois: isso é o que pode se chamar de uma volta emblemática.

Casagrande foi o primeiro apresentador de uma série de sete filmetes sobre aquele gênero musical, baseada no documentário “Seven Ages of Rock” da BBC britânica, que o Jornal Hoje iria exibir somente nos sábados. Esse resgate relâmpago só veio confirmar para mim o quanto nossa televisão é, algumas vezes, terrivelmente irônica e surpreendente. A imagem do cara, com seu jeitão de troglodita e a mesma cabeleira desgrenhada, ali, falando do libertário mundo rocker, trazia fatalmente à memória o incidente que parece ter acabado de vez com sua carreira de comentarista.

Pra quem não se lembra, Walter Casagrande foi notícia depois de um acidente feio com sua Cherokee em setembro de 2007, em São Paulo, que o levou malzão ao hospital (foto abaixo). Depois sumiu, sem explicações, da televisão. A Globo, patroa do comentarista de jogos de futebol, emudeceu. “Licença médica”, dizia apenas atrás de sua capa moralista.Ele voltou a virar notícia quando revistas e jornais informaram que estava em uma clínica de recuperação de viciados. Cocaína e heroína, o vício, apurou a tradicional Placar numa reportagem de sete páginas. Virou capa de conhecida revista semanal. Drama exposto para vender mais exemplares nas bancas. Tava lá o astro, desnudado e infeliz, desintoxicando diante da platéia big brother atônita.

A moral brasileira de ranço católico é podre como um toco de coqueiro castigado durante anos pela maré. A maioria tende a não perdoar alguém que é exposto de forma tão explosiva e pública como foi o ex-ídolo do Corinthians. E Casagrande foi o responsável, naquele primeiro Sábados de Rock – esse é o nome da série – por um texto que vendia o espírito explosivo do rock em sua gênese. Fatalmente, ele teria que citar a inevitável trinca sexo, drogas e rock and roll. Mas, a maior das ironias é que em seu texto rolou sexo, rock, mas as drogas ficaram estranhamente de fora do roteiro. Esquecimento ou protecionismo, quem vai dizer? Mas, que ficou uma lacuna ninguém tem como negar.

O artilheiro começava seu texto, numa locução acelerada, impessoal, listando aquilo que moveu o rock e o colocou como um dos combustíveis mais revolucionários do século passado: “Guitarra, bateria, baixo, volume máximo, atitude, transgressão, sexo, estilo, mensagem, conteúdo.” Mas, e as drogas? Como tirar dessa lista aquilo que, pelo bem e pelo mal, empurrou dezenas de ídolos, centenas de rockeiros a tomar atitudes que ajudaram a dar uma cara transgressora ao gênero e o colocou na “black list” de pais e religiões mais conservadores. Esperei Casagrande falar das drogas, mesmo numa vírgula de seu texto, mas, o cara não falou.

Fora isso, foi interessante ver nosso louco ex-comentarista esportivo muito à vontade para falar superficialmente – até por uma imposição do meio eletrônico - do rock, uma de suas grande paixões. Fã dos ícones doidões Hendrix, Janis Joplin e The Doors, cujos band leaders tiveram fim trágico, dois deles vítimas de overdose e o terceiro à sombra da suspeita, Walter Casagrande bate um bolão quando o assunto é guitarras no volume máximo. O que deve ter surpreendido muito espectador. Ou não, como diria Caetano Veloso, outro influenciado pelo rock no início de carreira.

Muitas carreiras e dezenas de dias enfurnado em uma clínica depois, Casagrande ficou longe dos noticiários desairosos sobre seus prazeres antes secretos. Deve ter se curado. Apareceu bem e cheio de energia na televisão, refrescando a tela naquele meio de agosto cansado de tantas manchetes requentadas sobre a morte de Michael Jackson. O fato é que cinco minutos e meio depois de ouvir o cara falar de Beatles, Dylan, Clapton, Kinks e Rolling Stones na televisão em horário nobre, não tem como deixar de dizer: Casagrande é do rock!


Se você não viu o Casa no Sábados de Rock, se ligue:

http://www.youtube.com/watch?v=V3dMO6aqpTc&feature=related

Mais à vontade ainda, Casagrande opina sobre seus ídolos pessoais e o rock brasileiro:

http://g1.globo.com/jornalhoje/0,,MUL1266072-16022,00-WALTER+CASAGRANDE+ARTILHEIRO+INTELECTUAL+DO+ROCK.html

segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O Método Uhuuu de experiências

Quando me deparei com Fernando Catatau(esse aí do lado) no corredor do teatro antes do show, chamou atenção aquela figura esquelética, de barba cerrada, andar lento e roupa displicente. Parecia um desses personagens podicrê que habitam as histórias em quadrinhos do maluquete Robert Crumb. Invisíveis braços abertos, cara de bons amigos, logo me aproximei dele para um contato rápido. Falar de psicodelia e de suas viagens sonoras. Não deu. O adiantado da hora não permitiu, mas do encontro ficou o sorriso afável dele e o rastro de minha única frase besta, soletrada antes de seus passos acelerarem: “Bota pra fuder!”. E ele botou.

Antes daquele show em Fortaleza, cidade natal do dito cujo, eu já havia virado fã do cara. Culpa, no começo de tudo, de um CD demo de Catatau e sua banda, a Cidadão Instigado. O álbum trazia cinco músicas com o verme daquilo que o artista carregaria dali por diante – o ano era 2001 – em sua carreira: uma tendência à fusão de ritmos e ao experimentalismo. Tinha rock e maracatu (um mais primal, cadenciado, diferente do praticado em Pernambuco e difundido para o Brasil graças a Chico Science) misturados fluidamente, eletroniquices e poética torta, moleque e popular, sem ser popularesca.

Depois aquele surpreendente trabalho, um pequeno ensaio, não demorou muito e Catatau deixou de seu um cidadão da aldeia Ceará para ganhar o Brasil. Perdeu-se e se achou cidadão paulistano. Cidade do tamanho certo para suas divagações e ousadias. Dava para se espalhar ali, deve ter pensado. Lançou dois trabalhos, o difícil O Ciclo da Decadência(2002) e o excepcional O Método Tufo de Experiências (2005), que o colocou no mapa musical da galera mais descolada e abriu as portas para trabalhar, como instrumentista, em vários projetos de gente disposta a fazer um som mais consistente, menos radiofônico. Puta guitarrista que é, hoje com certeza um dos melhores do Brasil, não lhe faltou convites e oportunidades para dar uma temperada em uma penca de álbuns de artistas bacanas como Cibelle, Otto e o coletivo Instituto, entre outros.

Paciente, Catatau gosta de burilar seus trabalhos solos à frente do Cidadão Instigado. É quando tem mais liberdade e pode investir no desenvolvimento de um som que ganhou uma cara mais definida a partir de O Método Tufo. Aqui, sua guitarra roqueira, que algumas vezes se aproxima da latinidade e sensualidade de Carlos Santana e em outras traz ecos da pompa e psicodelia do rock progressivo, se aliou – em momentos sublimes – ao brega para provocar os nossos sentidos e chamar a tenção de uma aturdida crítica. Tudo volta a se repetir em seu mais recente e um pouco menos inspirado álbum de nome singelo, Uhuuu(2009).

Vamos abrir um parêntese. Eu como contemporâneo de Catatau, filho de classe média numa Fortaleza ainda provinciana, imagino a equação possível na cabeça do artista. Esse rock com pitadas do brega, que ganha aqui outro nível e conotação, deve ter a gênese, deduzo, na infância cearense do cara. Houve uma época em que Carlos Alexandre, Waldick Soriano e Odair José (o bonitão da foto ao lado), entre outros expoentes da também chamada, nos anos 70, “música de corno” empesteavam as AMs com suas melodias e letras melosas. Muito coração partido, mulher infiel e choro na cama. Muitos hits nas rádios, companheiros nos bares de românticos pés inchados e aqueles verdadeiramente traídos.

Voltando a Uhuuu!. O título do disco pode enganar os incautos. Uhuuu! é um grito de guerra de surfistas, assumido também por roqueiros. E não podemos chamar o último trabalho do Cidadão Instigado exatamente de roqueiro, apesar do artista ter esse gênero como uma influência marcante. Até porque o resgate do brega romântico, com tintas e vigor renovado, volta a aparecer ainda mais depurado no disco. “Como as Luzes” é uma canção de amor com pegada brega, com direito a coro feminino e bateria características daquela música, mas que, de uma hora para outra, ganha um solo de guitarra manhoso e metais épicos, típico do rock progressivo. “Dói”, o nome não poderia ser melhor, eleva esse lado brega um nível acima, falando de sofrimento com uma camada de guitarra e teclado açucarado, sem falar no texto falado, um breque clássico do gênero que Catatau resolveu retrabalhar.

Mas, reduzir o cantor e compositor a esse mundo “brega rock” ou algo que o valha é uma injustiça e erro tremendo. Uhuuu! reforça também a tendência experimental da música do Cidadão Instigado, que é muito mais complexa do que pensa nossa vã filosofia. Em “Doido”, por exemplo, o som pode soar levemente brega em alguns momentos da composição, mas surpreende, num passe de mágica, quando as cordas da guitarra pesam um pouco mais ou quando vozes , sons e barulhos indistintos se misturam num emaranhado confuso, revelando uma faceta anárquica que a banda sempre exercita.

A anarquia e a provocação podem tanto estar na mistureba sonora que o Catatau cria, a exemplo da fusão de rock pesado e um certo ar circense vistos na intrigante “O Nada”, como quanto em suas letras surpreendentes. Quem, fã do artista e sua banda, não lembra das vacas loucas e dos urubus vorazes da cultuada “Os Urubus só Pensam em te Comer”, faixa de seu disco anterior. Em Uhuuu!, o cearense continua viajando sem medo de ser feliz e qualquer pudor em sua poética alucinada.

Na climática, “Radiação na Terra”, assume a gramática da ficção científica e tomzeniana, para a letra curta: “Vou comprar um óculos infraestelar só pra não ter mais que ouvir os terráqueos daqui cantando”. Em “Ovelhinhas”, rock com rajadas eletrônicas que se aproxima ainda mais da cultuada “Os Urubus só pensam ...”, um bando de ovelhinhas “pulam na cerquinha de madeira e do lado de lá desapareciam”. Já na ótima e roqueira “O Cabeção”, ao som de guitarras pesadas, o personagem da música promete tomar conta do mundo colocando, conectado a ele, um piolho espião na cabeça de cada terráqueo com a missão de “destruir todos os pensamentos e unir todas as gerações numa nova dimensão”. Quadrinhos puro.

No final das contas, Uhuuu! soa como uma continuação mais bem produzida de O Método Tufo..., mas sem o impacto e o frescor deste. Talvez porque a sonoridade proposta não seja mais nenhuma novidade. Mas,de qualquer forma, temos o bom e velho Catatau tocando um foda-se para a caretice e dizendo para o resto da humanidade “eu sou eu, nicuri é o diabo”, como diria Raul, ou numa tradução mais jovem guarda, "que tudo mais vá pro inferno”. E essa ousadia e desapego ao comercial faz um bem danado para a gente.

Cotação: 4

Uhuuu! pra você também:

http://rapidshare.com/files/267109332/Cidad_o_Instigado_-_Uhuu___2009_.rar

Quer conhecer O Método Tufo de Experiências, tente:

http://www.mediafire.com/?mjyuqw5yyzz

Gosta de guitarra? Vá no blog de Catatau:
WWW.fernandocatatau.blogspot.com

sábado, 29 de agosto de 2009

Retrô inspirado

Vem do Alaska a banda que produziu um dos lançamentos fonográficos do ano mais bacanas que ouvi até agora. O nome da banda de indie rock é um tanto esquisito, até mesmo surreal: Portugal. The Man (esse ponto no meio faz parte da esquisitice). O quarteto norte-americano que veio daquela gélida região faz um som terno, aconchegante, com textura próxima do pop e alma retrô. Essa é a boa liga de The Satanic Satanist (2009), - eles realmente parecem gostar de nomes bobos – quarto e alentador trabalho do grupo.

Nunca tinha ouvido falar de Portugal. The Man. Quando escutei o álbum mais recente da turma, me interessei em conhecer melhor a obra de John Gourley(vocalista), Zach Carothers (guitarrista), Jason Sechrist (baterista) e Wes Hubbard (tecladista). Os fundadores da banda vieram de um grupo de grupo de post-hardcore do Alaska chamado Anathomy of a Ghost. Essa origem parecem ter influenciado os dois primeiros discos da galera Waiter: “Your Vultures”(2006) e Church Mouth(2007), nos quais a carga de experimentalismo que fez a crítica compará-los aos loucos do The Mars Volta. Irregulares, esses dois CDs revelavam um quarteto em busca de um caminho próprio.

O terceiro álbum do grupo, Censored Colors, com instrumentos de sopro e corda, como trombone e violino, colocou Gourley e companhia (olha os caras bem na foto ao lado) em um novo patamar. Qualitativamente acima, é bom que se diga, apesar de todo o ecletismo proposto pelo bom disco. Com The Satanic Satanist, Portugal. The Man parece ter se cansado de suas viagens experimentais e mergulhado com fome no passado. Mais orgânico, esse trabalho soa deliciosamente retrô, com suas referências ao rock e soul com a cara dos anos 60 e 70. E a coisa funciona melhor ainda graças ao sotaque pop emprestado às composições.

Difícil não ouvir ecos dos anos 70, por exemplo, em “People Say”, que abre o disco e a primeira música do CD a se espalhar pela rede. Das melhores do disco, a alegre canção tem guitarra setentista e refrão matador. A também bacana “Guns and Dogs” segue a mesma toada, com uma melodia cheia de graça. Reparem, lá pelo fim da música, no piano suave contrastando com a guitarra mais animal. Mais pop e viciante, a banda acerta na mão com duas outras belas criações, as garageiras “Do You” e “Lovers in Love”, na linha do rock urgente e enérgico do Arctic Monkey, mas ainda com um pezinho no passado, ainda que nos detalhes. É só ouvir com cuidado para perceber.

O lado soul do banda aparece com mais evidência em músicas como a ótima “The Home” e a intensa e carregada “Mornings”, que fecha muito bem o álbum. Inteligentemente, Portugal. The Man deixou as baladas para o fim do disco. A galera mostra-se também competente quando desacelera. Além de “Mornings”, o pessoal do Alaska produziu outra excelente e tocante composição com título auto-explicativo, “Let You Down”. O piano marcado e repetitivo ajuda no clima de melancolia, reforçado pela voz doída de Gourley. Para noites à base de vinho e boa companhia.

Não sei se Portugal. The Man acaba aqui, com esse disco, sua busca por uma sonoridade que esses norte-americanos possam chamar de sua. Mas, o fato é que encontraram em The Satanic Satanist um caminho consistente e, de quebra ainda, afinaram a criação, com melodias inspiradas e de muito bom gosto. Se eles continuarem nesse rumo, os ouvintes só têm a agradecer. Eu do meu lado só espero, pacientemente, que o trem se mantenha nesses trilhos. Assim sendo, estarei numa estação qualquer para pegá-lo.

Cotação: 4

Embarque nessa:

http://www.mediafire.com/download.php?zg210tmwzgd

quarta-feira, 26 de agosto de 2009

Santa fidelidade

Na culinária popular brasileira, o trivial feijão com arroz ocupa um lugar de destaque. Virou substância cotidiana e eficaz pra defenestrar o fantasma da fome que ronda secularmente as mesas tupiniquins. Velhos amigos e conhecidos nossos. Os dois. Transformavam-se em guerreiros nos pratos de alumínio das crianças sem brinquedos quando, amalgamados com as pontas dos dedos miúdos, viravam soldados imaginários a lutar em fileiras. Brincar de capitão, dizia-se então. No linguajar do dia a dia virou também expressão praquilo que é comum, sem muita frescura. Dinosaur Jr. é por aí, feijão com arroz. Da melhor qualidade.

Quem conhece um mínimo da história do rock alternativo, sabe que J. Mascis, Emmett Murphy e Lou Barlow faziam um rock direto e inspirado. Bateria, guitarra e baixo barulhentos a serviço de canções com frescor e alto poder garageiro. Eles nunca mudaram muito em sua trajetória de 24 anos, apesar das longas paradas, uma delas com duração de uma década(1997-2007)!. É Feijão com arroz honesto, bem substancioso num universo, o indie, propenso a malabarismos e sonoridades estrambóticas. Eles retornam com Farm(2009), dois anos depois do último trabalho, Beyond(2007), fazendo com a mesma competência de sempre o mais do mesmo.

Na fazenda do Dinosaur Jr., é produzido um rock com apetite jurássico, fincado firmemente na garagem, com o barulho e a despretensão típicos do gênero que alimentaram muitas bandas no fim do século passado e alimentam até hoje. Essa energia garageira, misturada a uma poesia objetiva, ganhou muitos adeptos e fãs, a ponto da banda norte-americana virar objeto de culto, uma referência a ser seguida por outros garotos – a exemplo dos que montaram grupos como Built to Spill e Buffalo Tom – na busca de simplesmente se divertir com música. O trio e seus integrantes tornaram-se involuntariamente espécies de semi-deuses no Olimpo dos que curtiam o indie rock.

É louvável como 24 anos depois do debut, Dinosaur (1985) e do seminal You’re Living All of Me(1987), Mascis e companhia mantém fidelidade a esse rock`n`roll direto, inflamado, ora com ecos punk, escola desse vocalista e band leader, ora com um acento mais pop. Tudo com muita garra e desprendimento. Abra a garagem e sinta a lufada vigorosa de “Pieces”, música que inicia bem o disco com sua levada mais pesada e solo de guitarra superbacana. Uma das melhores e mais viciantes de Farm. A energia continua solta, e a guitarra também, com a bonita e mais pop “I Want You to Know”, com melodia contagiante e que remete aos momentos mais delicados e inspirados do Jane`s Adicction, outra banda de alta voltagem. Mesmo exemplo da deliciosa “Your Weather”, com bateria precisa e tintas fortes. Claras cores dos anos 90.

Mais objetivas e sujas, “Over It”, “Friends” e “There`s no Here” são pequenos e preciosos petardos juvenis, que podem figurar garantidamente no set list de festinhas animadas. Numa linha mais bluezzy, “Said the People” com seus quase oito minutos é uma balada de cortar o pulso, com Mascis cantando com a alma exposta e pedindo salvação para um coração dolorido. Menos introspectiva, mas também, a meu ver, um outro grande destaque do disco, “Plans” começa com cordas climáticas para, num crescendo, desaguar numa linda composição de melodia grudenta e memorável.

Farm é mais um atestado da perenidade musical da veterana Dinosaur Jr., uma banda que não precisa remar a favor de modismos. Basta somente seguir viajando em linha reta no trem que os colocou nos trilhos da história. Ser simples, direto e honesto num momento musical franco-atirador, onde vender espalhafato e levar vida desvairada virou passaporte para ter sucesso na mídia, é uma atitude ironicamente corajosa e, no mínimo, madura. E maturidade, dá pra perceber no final da audição desse disco soberano, aquela boa e velha banda tem de sobra.

Cotação: 4

Aperte o play:

http://www.mediafire.com/?5myy2mwdmz1

quinta-feira, 20 de agosto de 2009

Movimento sem tradução

Tem anta, caititu, jandaia-sol, buriti. Tem taperebá, murici, bacaba. Misteriosa pedra pintada de arquitetura graciosa e o canto dos índios, invocando deuses. Nações múltiplas, tantas cores e etnias. Wapixana, macuxi, taurepang, waimiri-atroari. Penas de arara. Caxiri e pajuarú, vinhos indígenas para ver melhor a lua. E antes do almoço, para ficar pensando melhor. Tem rios volumosos repartindo verdes. Sei pouco da cultura seminal de Roraima. Mas, rio e mata, terra e peixe, natureza com DNAs expostos e outros a serem descobertos por cientistas sedentos por conhecimento, definem a alma desse estado tão pouco conhecido. Sou um ignorante assumido, uma partícula imberbe no meio de toda essa impactante roraimeira.

Roraimeira é o nome do documentário de Thiago Briglia, um jovem jornalista aqui de Boa Vista. O segundo longa dele, também contemplado (o único do estado) pelo projeto DOCTv, uma bela iniciativa da TV Brasil de estimular visões documentais da realidade. Roraimeira é também o nome de um pretenso movimento cultural que floresceu aqui no começo dos anos 80 da década passada, capitaneado por três músicos, três verdadeiras instituições boavistenses: Eliakin Rufino, Zeca Preto e Neuber Uchôa (os caras ao lado em foto de Jorge Macedo). Sou também ignorante nessa história e por isso fui com muita expectativa assistir à pré-estréia do documentário no Palácio da Cultura, um prédio com traços modernos encravado nas margens da Praça dos Três Poderes local.

Quis entender, mas saí cheio de interrogações. Qual a real dimensão da Roraimeira? Até que ponto aquele momento cultural pode ser considerado um “movimento” na acepção plena da palavra? De que forma ele repercute nos dias de hoje? O documentário me frustrou com todos seus hiatos e sua capa tendenciosamente bairrista. Havia uma claque na hora da exibição. Amigos. Amigos dos amigos dos produtores, do diretor, dos fãs dos artistas – agentes centrais da obra -, do diretor, ovacionado efusivamente durante vários momentos. Havia autoridades, preparadas para aplaudir com sua postura oficial. Um acontecimento e um final feliz: aceitação geral da obra. E a consequente pergunta na minha cabeça frustrada com o que viu: o diretor fez Roraimeira para aquele público previamente conquistado?

Mais perguntas. Que público Thiago Briglia quis atingir? Por que aquela sensação inquietante de que Roraimeira, o filme, não fez jus ao tema que quis destrinchar? Adianto: sou ainda estrangeiro aqui. Vivi algumas temporadas intensas no estado e conheço algumas poucas características do roraimense e sua cultura. Mas, tenho um carinho muito grande por Roraima e quero estreitar esse relacionamento afetivo. Pensei que Roraimeira podia ser uma dessas portas. Oba, pensei, vou me enraizar um pouco mais na história do estado e assim me arvorar no futuro em falar de onde escolhi morar com alguma propriedade. Mas, para um estrangeiro como eu – e, por favor, contabilizem minha capacidade de compreender o mundo ao meu redor – o documentário não funcionou.

Explico. Roraimeira teria sido, a grosso modo, um movimento cultural cujo objeto de devoção é a cultura e a natureza exuberantes do estado. Frutos, peixes, árvores, índios, as cores e belezas naturais cantadas e expressadas em versos, prosa, dança, telas. Esse caudaloso objeto, e suas infindas possibilidades, ficou contudo mascarado no vídeo. Senti falta das aspas, de respiros que traduzissem objetivamente a inspiração que levou Eliakin, Zeca e Neuber a criar o dito movimento.

Que peixes, frutos e pássaros de nomes sonoros são esses, que paisagens deslumbrantes são essas que recheiam e alimentam a cabeça dos poetas? As imagens ficaram sobrepostas ao discurso. Um discurso que a ouvidos estrangeiros somente instiga a visualização da cultura “roraimeira”. Ao sair do território local e viajar pelo Brasil, o filme vai perder a força por não clarear – ou pelo menos tentar – o universo que ele indiretamente trabalha. O documentário, enfim, não parece ter sido feito para todos os brasileiros, apenas para a geografia local com sua bela gramática roraimense, com todos seus signos ali sem tradução.

E aí, eu volto para uma outra questão, já colocada antes. Se o movimento teve mesmo a força de um acontecimento do tipo – e me permitam o direito da dúvida por, insisto, desconhecimento de causa – ele com certeza teria se refletido em outras expressões artísticas, além da música, onde pelo visto fincou o pé com mais fortaleza. Mas, a participação reduzida no filme de uma coreógrafa e de uma artista plástica não contribuiu muito para testemunhar a verdadeira extensão do movimento. As intersecções entre música, dança e artes plásticas não ficaram muito claras. Faltou assim, a meu ver, uma unidade, uma homogeneidade na mensagem proposta. Como peças de um móbile sem os fios para as interligarem.

Legal as cenas dos talentosos artistas do movimento cantando para uma platéia abancada em beira de rios, em pedras à margem de aldeia. Bacana a honestidade despudorada de Zeca Preto e a verbalização de Eliakin que erroneamente – pausa para um contraponto – disse que o Roraimeira teria sido o último movimento cultural do século passado no Brasil. Eu lembraria do mangue beat, de Pernambuco, no início da década de 90, que, com seus tentáculos, ainda ecoa até hoje. Valeu ainda pela coragem de Thiago Briglia que encarou o desafio com as inúmeras dificuldades que, com certeza, teve pela frente. Mas, a Roraimeira ainda espera uma tradução mais precisa de sua existência. O tempo e a força da idéia, acredito, vão se encarregar disso.

Atenção para os dias e horários de exibição do Roraimeira na TV Brasil e em Boa Vista. Não deixem de assistir:

27.08.2009 (quinta-feira)
22h na TV Brasil - Canal 2 - Exibição Nacional

28.08.2009 (sexta-feira)
16h na UNIVIRR

31.08.2009 (segunda-feira)
19h no Cine Sesc

sexta-feira, 14 de agosto de 2009

O retorno das almas barrocas

Falar de João Bosco é de uma responsabilidade tremenda. Eu, quando jovem, me perdia na encruzilhada rítmica do cantor e compositor mineiro que me turbilhonava ainda mais a cabeça com seus floreios vocais esquisitos que, soube depois, tinham sabor negro. Fazia músicas lindas, eternas, ele e o parceiro de guerra Aldir Blanc. Lembro de escutar “Mestre Sala dos Mares” e “De Frente pro Crime”, na época ainda do velho vinil compacto, o único disco levado junto a uma vitrolinha portátil à base de pilhas para um sítio no interior do Ceará num fim de semana besta. Uma noite inteira ouvindo aqueles dois clássicos a luz de lampeões e embaixo de um céu opressivamente estrelado. Primeiro contato catártico com a poesia urbana e amorosa dos dois.

Virei fã de Bosco e de Aldir. Acompanhei a carreira dos caras e fiquei até um pouco enlutado quando, no fim da década de 80, os dois, por incompatibilidade de gênios, romperam a parceria. Um pra lá, o outro pra cá. 22 anos depois veio a notícia que os dois reataram, enterraram enfim as diferenças e resolveram fazer um bem necessário à música popular brasileira. Os primeiros lampejos de luz desse auspicioso retorno estão registrados no novo álbum de João Bosco, de nome comprido, mas belo e definidor do seu conteúdo: Não vou pro Céu, mas já não Vivo no Chão (2009).

Uma boa notícia em dose dupla. A outra é que Bosco pôs no mundo um CD de inéditas depois de longos sete anos de gestação. A dupla ajuda a fazer de Não Vou pro Céu... um dos grandes disco do artista mineiro, uma obra maiúscula e tão prenhe de elegância e sensibilidade que chega a emocionar. Meu pobre coração é bobo para tamanha carga de beleza que o álbum oferece. Uma beleza que parecia perdida na carreira do compositor, cujos últimos trabalho de estúdio, Na esquina (2000) e Malabaristas do Sinal Vermelho (2003), pelos menos a mim, não convenceram. Eram bons discos, mas não tão inspirados.

E agora, junto com Blanc, a inspiração voltou. Intensa. Com o antigo parceiro, fez quatro biscoitos finos que estão no disco. Três deles recuperam o brilho e a harmonia dos tempos de “Bala com Bala”, “Gol Anulado”, “Linha de Passe” e tantas outras grandes canções. O samba lento “Navalha” mistura espiritualidade e paixão em uma letra e melodia felizes. “Ai, eu fui crucificado nos cravos do teu amor/Não me lembro de outra coisa que causasse tanta dor”, canta um Bosco comedido e maduro.

“Navalha” nasce clássica assim como a delicadíssima “Mentiras de Verdade”, que cita frase de "Cansei de Ilusões" música de Tito Madi com pequena mudança de letra e que traz ainda um belo diálogo entre violão e guitarra. A terceira é “Sonho de Caramujo”, por meio da qual entendemos um pouco o silêncio de sete anos de Bosco. “Cumpri o astral de caramujo musical: eu gripo ou canto/ não vou pro céu mas já não vivo no chão eu moro dentro da casca do meu violão”. Menos inspirada, a intimista “Plural Singular”, não desmerece de qualquer jeito essa reunião.

Francisco Bosco, o filho do cara, é o parceiro mais corrente no disco. Bom poeta, Chico, como o pai lhe chama, é co-autor de outra grande composição do álbum, “Tanajura”. Aqui, o velho Bosco volta com suas junções de expressões sonoras que parecem criar uma nova língua, uma herança assumidamente negra. “Se bole seu balaio/Me bate na moleira/Me abala feito raio/Seu bumbo de primeira”, canta ao som de uma percussão e violão monocórdicos que hipnotizam como um batuque. É da mesma lavra da sensacional “Jimbo no Trio”, parceria inusitada com Nei Lopes, que fala sobre um tocador de trombone que bota todo mundo pra dançar com suas fusões rítmicas. “E o jazz e o samba e a milonga e o tango e o candombe/E a rumba e o mambo, tudo é lá do congo”, interpreta Bosco em composição moderna e suingada.

O que se vê no último Bosco, por fim, é um homem amansado pelo tempo, sentado serenamente à sombra de seu imenso talento. Um artista que recupera o refinamento de outrora, refreando os floreios vocais que eram uma assinatura pessoal, explorando mais as linhas do sambajazz e buscando na simplicidade do arranjo o ponto de interseção com a harmonia melódica. A quase valsa “Desnortes”, dele e do filho Chico, e a linda “Pronto pra Próxima”( essa dividida com Carlos Rennó) traduzem uma complexidade e elegância musical que ajudam a garantir a inscrição de Não vou pro Céu... na lista dos melhores discos do MPB do ano. Eu diria mais, do alto de minha inquestionável rendição, é um dos grandes álbuns de música brasileira da década.

Cotação: 5

Vá pro céu:


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quinta-feira, 13 de agosto de 2009

Trilha pra fantasias

É porque a gente não pára pra pensar. Mas, esse mundão imenso é como uma caixinha de surpresa musical, tal é a quantidade de ritmos, gêneros, batidas, tambores, cordas, barulhinhos exóticos e inusitados. Faz-se rock do Brasil à Cochinchina. Da Estônia à Bariloche. E, muitos de nós, dentro de nossos casulos, não nos plugamos no que é produzido lá fora. Mas, apertemos a tecla “se ligue”. A internet taí para nos aproximar de todo esse universo. Conheci há dois anos uma banda islandesa chamada Múm, que faz post-rock, música experimental ou algo que o valha. Grupinho legal, que vale o investimento de nossos ouvidos, e que acabou de lançar Sing Along the Songs you Don’t Know(2009).

Pois é, alguns leitores desse blog devem pensar: rock da Islândia? Temos alguns exemplos relativamente famosos de bandas deste país que conquistaram renome internacional. Para lembrar: Björk e Sigur Rós. Como esses dois, a Múm faz um som experimental, cerebral, onde a utilização de instrumentos diferenciados e a melodia quebrada e que explora a atonalidade tornam a audição mais complexa. Mas, é um desafio que vale a pena encarar. Afinal, somos ratos ou homens? E Sing Along... não está exatamente entre aqueles trabalhos chatos nos quais o artista fala mais pro seu umbigo do que pros tímpanos de nós, pobres mortais.

Desde 2000, quando lançaram Yesterday Was Dramatic - Today Is OK, a Múm caminha pelo terreno do experimentalismo, de um rock que luta contra rótulos. O primeiro álbum que ouvi deles foi o elogiado Go Go Smear the Poison Ivy (2007), no qual a instrumentação e canções chegaram a me assustar. Coisa de doido, pensei logo ao primeiro impacto. Neste quinto trabalho, a turma parece ter arrefecido um pouco a sanha experimental. Há, inclusive, instantes em que eles soam até mesmo convencionais (como se isso fosse possível em se tratando desse grupo), como em “Blow Your Nose”, uma linda canção de ninar com um violoncelo cortante, e “If I were a Fish”, toda climática e com tessitura de sonho.

Múm faz uma espécie de trilha sonora para filmes de fantasias, do tipo O Labirinto do Fauno e da encantadora série O Senhor dos Anéis. As canções são quase todas delicadas, algumas beirando a melancolia, como a quase folk “Last Shapes Of Never”, uma das mais bonitas do CD, e a estranha “Illuminated”, com uma orquestração de cordas de arrepiar. Mas, a grande maioria do álbum é feita mesmo de canções serenas, que não invocam tristeza, apenas magia. Casos do samba de criolo doido "The Smell Of Today Is Sweet Like Breastmilk In The Wind” e de “Show Me”, na qual ficam evidentes os toques de eletrônica sutis – e que fazem algumas publicações rotularem erradamente o grupo como “eletrônico” – que permeiam todo o trabalho da banda.

Colaboram para esse clima mágico e sedutor(prepare-se para nomes impronunciáveis), a voz fantástica e aveludada de Kristín Anna Valtýsdóttir, acompanhada em vários momentos pelo coro masculino de Ásthildur Valtýsdóttir e Olof Arnalds, este responsável também pelos trompetes e teclados, e ainda os bons instrumentistas Hildur Guðnadóttir (cello e vocal) e Samuli Kosminen (percussão).

Toda essa galerada e mais alguns convidados são os operários, a base instrumental das canções de Örvar Þóreyjarson Smárason e Gunnar Örn Tynes (os dois caras aí do lado), os únicos integrantes fixos do grupo, criadores da sonoridade às vezes onírica às vezes estranha do Múm. São os artífices talentosos dessa banda que fez de Sing Along... um álbum de música experimental delicioso e cativante. Desses que vale a pena ser tocado no amanhecer e no crepúsculo tardinho, horas em que estamos mais propensos para refletir, quer seja para instigar o cérebro quer seja para domar o espírito inflamado. Uma pausa certeira para a delicadeza nesta nossa mui corrida e aloprada vida.

Cotação: 4

Experiencie os islandeses:

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terça-feira, 11 de agosto de 2009

Mould no tempo certo

Mister Bob Mould é um sujeito iluminado. Cabeça de duas das bandas alternativas mais legais e elogiadas dos anos 80 e 90, respectivamente Hüsker Dü e Sugar, o carinha tem talento incomum de criar belas composições que buscam a batida pop perfeita, desenhadas com linhas melódicas robustas e arranjos que valorizam a guitarra e a objetividade. Som direto, sem meio termo. Desde 1988, quando lançou seu primeiro álbum solo, o excelente Workbook, ele vinha apurando sua veia roqueira e popular. A experiência no Sugar é uma prova disso. O ápice, depois do ensaio que foi District Line(2008), é este definitivo Life and Times (2009), uma aula de bom gosto e equilíbrio musicais.

O último do novaiorquino Mould é cheio de bons achados em sua simplicidade. Arranjos eficientes e canções inspiradas fazem de Life and Times um feliz exemplar de coesão sonora. Tudo está aqui na medida certa. O álbum tem criações roqueiras pops feitas pra dançar, com um gostinho, de leve, dos anos 90, como as bacaninhas “City Lights(Days go by)”, “Mm 17” e “The Breach”, com bom solos de guitarra e um discreto teclado criando clima para a pista. Mais acelerada e compulsiva, “Argos” traz uma energia como não se via no artista já há algum tempo. Um pouco mais calma, “Life and Times” chega a lembrar a cena grunge com o peso das cordas e o vocal urgente do artista.

Vire o disco e encontramos o compositor e guitarrista Bob Mould ainda melhor, assinando baladas arrebatadoras, sem açúcar e com muito afeto. Destaque para pelo menos duas obras-primas do artista, a inebriante “Bad Blood Better”, que começa com acordes de violinos dissonantes e emenda numa melodia deliciosa, que abre espaço generoso para uma guitarra lancinante. A outra é a sensual “Wasted World”, com tocante interpretação de Mould que parece destoar do instrumental no refrão um tanto barulhento, mas que, no fim das contas, soa totalmente adequado à composição. Vale ainda citar “Spiraling Down”, que remete a Pearl Jam em seus melhores momentos. Rock dos bons.

A lentinha “I’m Sorry, Baby, but you Can’t Stand in My Light Anymore” e a climática “Lifetime” – a que mais destoa da linha roqueira do álbum - mantem, ainda assim, o nível de um grande álbum que tem tudo para colocar Bob Mould no lugar que merece estar: na linha de frente do rock mundial. Que as novas gerações e ouvintes fiquem espertos para esse compositor talentoso e que ainda vai dar muita alegria para saudosos como eu e para aqueles que se interessam por um som honesto. Life and Times é, até agora, o melhor trabalho solo desse cara. E que venham mais desses pela frente.

Cotação: 5

Não pense duas vezes e vá:

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quinta-feira, 6 de agosto de 2009

Depois do chá

Resisti com todas as minhas forças em escrever sobre o último trabalho do Arctic Monkeys, o bem produzido Humbug. Até porque a banda já é bem conhecida e, com certeza, tem espaço garantido na mídia. E, pra mim, blogs que falam de música são como organismos alternativos que servem para abrir flancos pros grupos que não conquistaram ainda seu lugar ao sol. Mas, fui fraco, admito. De vez em quando caio na tentação de tecer comentários, fazer resenhas, principalmente quando sou fã da galera. E é esse o caso.

Humbug é o terceiro trabalho do Arctic Monkeys, aquela banda britânica que tornou-se notícia por ter virado um fenômeno da internet. Os músicos caíram, com todo mérito, nas graças dos internautas com milhões de acessos, levando uma gravadora a bancar o bacana Whatever People Say I Am, That’s What I’m Not (2006). Consistente, o grupo amparou-se em riffs poderosos de baixo (Andy Nicholson) e guitarra (Jamie Cook), numa bateria vigorosa(Matt Helders) e nos inspirados canções e vocais de Alex Turner para conquistar crítica e público. O talento da moçada confirmou-se no irretocável Favourite Worst Nightmare(2007), um álbum afiado e repleto de hits instantâneos.

Dois anos depois veio este Humbug que traz elementos que podem causar cissões entre os fãs. O som dos ingleses está mais sereno, menos ensandecido, mais elaborado e “soturno”, como apontaram vários blogueiros de plantão. É como se Turner e cia tivessem tomado um bom chá de erva cidreira, um calmante natural. E é essa desaceleração da levada, antes mais juvenil e urgente, que pode desagradar e dividir a opinião dos apaixonados pela banda. Chamaram a mudança de “maturidade”. Prefiro chamar de evolução e experimentação.

O que se ouve é um Arctic Monkeys concentrado em fazer um som mais denso e técnico. Por trás de Humbug há a produção de James Ford, do projeto eletrônico Simian Mobile Disco, e Josh Homme do visceral Queens of the Stone Age. Os dois, cada um do seu jeito, encorparam o som da galera. De um lado, Ford, antigo colaborador, manteve o apelo pop, mais leve e radiofônico do grupo. Do outro, Homme influenciou na gestação de músicas mais viajandonas, experimental sem perder a medidado palatável, e com cordas mais pesadas, na linha stoner rock, a praia onde o cara surfa bem.

A fronteira entre a parceria de Ford e Homme com o Arctic Monkeys muitas vezes sê confundem, o que faz a diferença em Humbug. Músicas mais cerebrais e menos desacelaradas como as boas “My Propeller”, com o usual riff de baixo e guitarra em conversa afinada com a bateria marcial, e “Fire and the Thud”, que começa sensual, com um coro climático, e se desenvolve lenta, para desaguar num cortante e pesado solo de guitarra, mostram que os garotos da banda querem experimentar sonoridades novas. Querem fazer um discurso musical mais adulto, com referências de um rock psicodélico, com raízes no passado, pero sem perder, lógico, a identidade.

É interessante ver como há uma tendência do grupo em fazer músicas com mudanças de andamento. Não há uma linearidade clara, como se viu nos dois discos anteriores. São os casos da já citada “Fire and the Thud” e de “Dance Little Liar”, lisérgica no início, lembrando as trilhas sonoras dos westerns spaghetti e surpreendente no final, com a entrada da guitarra nervosa. E falar em urgência, quem quiser matar a saudade do velho Arctic Monkeys pode pular direto para “Pretty Visitors”, pedreira boa para se dançar. Pop do mesmo jeito é a empolgante “Crying Lightning”, a cereja do bolo, não à toa a escolhida para música de trabalho.

O que achei, por fim e sem mais delongas, de Humbug? É um grande álbum. Eficiente em sua pretensão de experimentar novos rumos, bem tocado e produzido, mas sem a coesão de Favourite Worst Nightmare, ainda o meu favorito. Ainda assim, altamente recomendável.

Cotação: 4

Vá enquanto é tempo:

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segunda-feira, 3 de agosto de 2009

Macaco Bong na veia

Lá estavam o mesmo visual e marra de sempre. Camisetas pretas, a maioria, entregavam os ídolos da molecada cheia de gás. Muita estampa de Slipknot, Linkin Park, Limp Bizkit, Korn, essas bandas de new metal que os surdos pra boa música endeusam, poucas meninas e um ou outro saudosista com velhas bandeiras no peito, Led Zeppelin, Iron Maiden, todos circulando, peitos estufados, num espaço amplo. Um ginásio espaçoso que tornava o minguado público presente ainda mais desapontador. Noite de cinco bandas locais e a atração nacional, a sensacional Macaco Bong. Bem vindos à primeira noite do V Roraima Sesc Fest Rock.

Um parêntese necessário: o Sesc em Boa Vista é um reduto, heróico, para os fãs do rock and roll. O som que circula à exaustão na cidade é o forró e o sertanejo, daqueles mais bregas, invasivos e românticos, com alguma sobra nas ondas radiofônicas para o axé music, pagode e o reggaeton, uma buliçosa mistura de música caribenha com rap. Os roqueiros reúnem-se nas noites de Sesc para bater cabeça com bandas covers de grupos famosos, principalmente na linha do hard rock, hardcore, death metal e afins(se estou errado que alguém daqui que faça parte desse seleto grupo, por favor, me conserte).

Voltando ao Fest Rock. Tirando a seqüência de bandas que caracteriza um festival daquele tipo, tudo o mais ali não apontava para um evento que se arvora como um... festival. A estrutura oferecia uma barraca para vender cervejas e duas outras, uma vendendo algo relativo a motos, que logo descartei por não gostar do veículo (que em Boa Vista prolifera), e uma outra vendendo CDs. “Oba”, pensei. Gosto de barracas de CDs em festivais de rock porque vendem álbuns de bandas alternativas que você não costuma encontrar nas lojas oficiais. Mas, decepção, a oferta era reduzidíssima e acabei me contentando com um Cascadura dos idos de 2003. A vendedora, cascadura, não cedeu aos meus argumentos de “trabalhador que ganha pouco” e me deu um desconto bem aquém do que tinha oferecido.

Concentrando no som do festival. Nota dissonante: cheguei tarde ao evento e tive ao azar de pegar logo de cara uma tal de Kadima, uma banda gospel de metal ruinzinha que tentava, entre uma música e outra, evangelizar a pobre platéia lendo trechos da bíblia. Nada contra a religião de cada um, mas aquele tipo de festival não deveria, a meu ver, ser instrumento de pregação, ainda mais em um nível tão explícito e truculento. Sem preconceito, acho ainda que o apresentador do festival também não deveria sugerir, com toda sua lábia, que a platéia ouvisse essa ou aquela banda evangélica. O palco e suas luzes não estavam ali, num festival de rock, armados para discursos tendenciosos. Isso não faz parte da cultura rocker. Atitude sim, pregação, não.

Mas aí, depois, veio a remissão de todos os pecados praticados antes no V Fest Rock. Macaco Bong, em sua primeira aparição em solo roraimense, entrou em cena. Afiada como sempre. O que acontece quando depois de um som desprovido de identidade vem um outro carregado de paixão e talento? Claro, êxtase. E foi isso o que se viu na minúscula platéia, grande parte, provavelmente, virgem do som dos caras: um transe comedido, mas coletivo e catártico. É o que se dá normalmente quando a guitarra virtuosa de Bruno Kayapy, o baixo elegante de Ney Hugo e a bateria demoníaca de Ynayã Benthroldo tocam os primeiros acordes. Técnica apurada e raçuda a serviço de composições inspiradas.

A matogrossense Macaco Bong já havia feito estardalhaço nos maiores festivais independentes brasileiros com seu som exclusivamente instrumental, do Rec Beat, em Recife, ao Porão do Rock, em Brasília. Instrumental, sim, e esse sucesso de público e crítica, num país onde, infelizmente, as bandas e artistas que dispensam o vocal não são valorizados, é extremamente louvável. No palco, o power trio mostrou para o público local porque fizeram, na estréia, um dos melhores discos de rock – se não o melhor – de 2008. Artista Igual Pedreiro é um petardo roqueiro onde psicodelismo, progressivo, stone rock e jazz misturam-se num som robusto e convincente.

No primeiro show em Boa Vista, mesmo sem um público tão receptivo, a Macaco Bong entregou-se de corpo e alma ao espetáculo, curto mas eficiente, com direito a corda de guitarra quebrada e solos delirantes. Os dreads de Bruno voaram alto em músicas instigantes como “Fuck You Lady” e “Amendoim” e carregaram junto nesse voo uma platéia antes curiosa e depois atônita. “Tu toca pra caralho, véi”, ouviu-se aqui e ali de um espectador mais afoito apontando o dedo para Bruno. O elogio deveria valer, contudo, também para os outros dois músicos que incendiavam o palco com suas composições bipolares, com suas mudanças de andamento surpreendentes e performance honesta.

Fim do show. Aquela sensação de missão cumprida dos músicos da banda, que devem ter sentido a energia da platéia parada ali na frente deles, com aquela cara de quero mais. Som que é bom ecoa. E no ginásio do Sesc o rock consistente do grupo ficou pairando por um tempo no ar até que a banda seguinte, Sic Maggots, num tributo(?!) a Slipknot aparecesse, com os integrantes vestidos a caráter, para fechar a noite e esfumaçasse tudo. Mas, aí, já era tarde demais. A Macaco Bong já tinha dado seu recado e arrebanhado, com certeza, novos fãs. Pelo menos aqueles com neurônios a mais. Uma noite para ficar na memória.

Fotos deste post: Jotapê Pires (valeu, fi, pela força. Sorte e fortuna em Brasília). Conheça mais o trabalho do cara. Vá em: http://www.flickr.com/photos/heaven_hills/

Para baixa Artista Igual Pedreiro:

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sábado, 1 de agosto de 2009

A paz invadiu o meu coração

Quando coloquei Fanfarlo para tocar no meu CD player não esperava absolutamente nada do que ia ouvir. Cérebro em branco doido para ser surpreendido. Para ser sincero, não tinha ouvido falar um “a” dessa banda londrina de nome exótico. Era uma noite em que estava meio pra baixo com problemas no trabalho e com o espírito inquieto. Sabe aquela história da alma em turbilhão buscando um conforto externo para deitar no berço esplêndido da calmaria? Aí, Reservoir – esse é o nome do disco – foi acontecendo, criando corpo devagarzinho e trazendo o interesse e a quietude que eu buscava. Ah, o poder transformador da música!

Reservoir, pesquisei depois, é o primeiro trabalho desse grupo pilotado pelo sueco Simon Balthazar. O cantor de timbre parecido com o do cigano Zach Condon, mentor da fascinante Beirut, banda que ganhou visibilidade no Brasil graças à minissérie Capitu. Ah, o poder massificador da televisão! A sonoridade do projeto Fanfarlo, aliás, tem algumas semelhanças com a perpetrada por Condon e sua rapeize. Isso porque, como nesse caso, a turma de Londres se apropria generosamente e de forma inteligente de um instrumental diverso e vigoroso.

Pegue aí uma voz calorosa e diferente, como a do sueco Balthazar, e junte com a guitarra de Mark West, o trompete e o violino marcantes, respectivamente, de Leon Beckenham e Cathy Lucas, o baixo de Justin Finch e a bateria de Amos Mermon, todos bons instrumentistas, e você tem uma banda azeitadinha. Tempere tudo isso ainda com a produção esmerada de Peter Katis, que tem no currículo nada menos que as excelentes The National e Interpol, e aí tudo fica mais redondo. Pense em espírito de grupo, em um coletivo trabalhando afinado e apaixonadamente em torno de um projeto querido. Essa é a sensação que tive no final da apascentadora audição do disco.

O debut do Fanfarlo é (desculpem, mas adoro essa palavra) orgânico. Você tem um par de instrumentos incomuns na maioria das bandas de rock – o violino e trompete –, e outros incidentais, trabalhados com precisão e a serviço de arranjos bem construídos. Repare na delicadeza de “I’m a Pilot”, que abre surpreendentemente o disco, e seu trompete melodioso contrastando com a bateria minimalista criando uma massa sonora costurada pela voz também incomum de Balthazar. Uma bela canção que emenda na melhor ainda “Ghosts”, com suas cordas dedilhadas, bateria marcial e instrumento de sopro perfeitamente coadunados.

As músicas seguintes reforçam a boa sensação causada no início. As composições mantêm o nível de beleza e cuidado das primeiras, navegando entre canções mais animadinhas, como a boa “Fire Escape” ou mais calmas, como a linda “Luna”, com um quê de Interpol, e a viciante “If It Is Growing”, com um refrão mais definido e melodia que tende a ficar dando voltas em sua cabeça. Reservoir cai um pouco nas duas últimas faixas, mas nessa hora você já está vencido e convencido pelo que ouviu antes. Uma estréia superlegal com argumentos suficientes para que Fanfarlo figure irremediavelmente entre os meus grupos queridinhos do ano. Escute sem medo.

Cotação: 5

Vê se você concorda comigo e vá:

http://www.mediafire.com/?dwh4jwdmmyc