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Patrick Watson gravou o disco em casa |
Sempre achei que a delicadeza fosse uma virtude dos fortes. É
difícil dar tratos a ela. Poder ser assim solícito quando o outro, em meio à
cegueira, tanto precisa, abrindo uma porta que antes parecia intransponível,
fechada por mil cadeados. Desacelerar o dia, sutilmente, sem alarde, num gesto
simples, invisível, para que a vida desencane e o nó se desfaça. É preciso hoje
que saibamos coroar a gentileza, para que a bala não venha, para que a
truculência não vença a razão, ou que seja só para clarear a vereda como tocha
que ilumina sem arder. Algumas canções de tão inteiras foram feitas para
amansar feras, assim como uma gentileza que se faz para que tenhamos um escape
para driblar as tantas tormentas que se formam em nós. Tem o poder balsâmico de
supurar, nem que seja momentaneamente, as feridas. Aquelas que vêm com uma
leveza devastadora, invadindo sem solenidade os poros e se instalando urgente
em nossa alma para nos acalentar. É desse mesmo tecido que foram estruturadas
as encantadas composições de Adventures
in Your Own Backyard (2012), um álbum cheio de boas intenções, não daquelas
do qual o inferno está cheio, propostas por um grupo canadense chamado Patrick Watson, mas bem que poderia se
chamar gentileza.
Assista clipe de Adventures
in Your Own Backyard gravado em cima de
um prédio:
Há quem não tenha muito estômago para encarar canções
moldadas pela melancolia, aquelas que busquem, longe da afetação e claramente
também da predisposição, o sublime. Por isso, ouvir o quarto disco de um cara
como Patrick Watson, que deu nome ao
coletivo de músicos que o acompanha, exige um certo desprendimento e paciência
para escrutinar a beleza vigorosa dos arranjos e a serenidade das composições.
É assim como riachinho que corre perene no meio de uma paisagem pedregosa e
árida onde você põe o pé e deixa a água riscar a pele. Refresca e apascenta. A
banda vem nessa direção desde Close to
Paradise(2007) e Wooden Arms(2009),
com suas melodias elaboradas e num tom mais baixo, em contradanças imprecisas
com a leveza e o acolhimento. Com esse último trabalho, o grupo parece ter
acertado o passo e os compassos. Em boa parte do repertório o piano se faz
presente, evidenciado, convocando quase sempre uma instrumentação rica, na qual
cordas, sopros, timbales encorpam os arranjos exatos, pensados para amplificar
os climas de melancolia e redenção que as músicas desse gratificante álbum
sugerem sem indulgência.
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Patrick Wilson: linhagem de cantores líricos |
Como o título antevê, o álbum foi gravado na casa de Patrick Watson, o seu quintal. Para
poder ter tempo de cuidar dos filhos ao mesmo tempo, no andar sem pressa do
trabalho. Essa opção parece se refletir nas canções que trazem à memória ecos
solitários de artistas de lirismo acentuado como Jeff Buckley, Andrew Bird
e até Antony and the Johnsons.
"Lighthouse" inicia sua jornada melancólica com um piano lindo e
lentíssimo para crescer estupenda e
quase dramática lá pelo meio com a surpreendente utilização de trompetes
mariachis, bem ao estilo das trilhas assinadas por Ennio Morricone para
bang-bangs italianos. O mesmo e fulgurante naipe de metais dá o ar da graça e
esquenta a música que dá título ao disco e uma das mais belas do conjunto.
Aqui, a voz afinada de Watson se vê
acompanhada de uma orquestração equilibrada, com arranjo límpido, sem excessos,
cada instrumento trabalhando em perfeita harmonia, características aliás que
dão o tom da obra. Para entender melhor, é só escutar com cuidado a
instrumental "Swimming Pools". Sereníssima e abraçada com a
melancolia, a faixa tem melodia rica e climática, como ver em um quintal da
casa de um ermo interior a passarada na arquitetura complexa da manhã que nasce.
Ouça a bacanéssima "Into
Giants":
Na letra de "Adventures in Your Own Backyard", Watson reforça a velha tese de que às
vezes você não precisa ir tão longe para encontrar aquilo que estava
procurando. Que, às vezes, essa busca acaba ali mesmo, a doze passos, em seu
próprio quintal. O que os canadenses procuraram, e acharam, estava ainda mais
perto deles, aliás, dentro deles, em seu próprio coração. Inspirada, a banda
nos oferece um punhado de canções sentimentais, sem ser sentimentalóides, com
tendência à melancolia, sem se embarafustar na lama da tristeza. Na mansa
“Blackwind”, timbales, banjo, violinos e violões promovem um casamento delicado
com o expressivo vocalista da banda. Guitarra
e coro entram no final para pontuar esse união. A instrumental “The
Things you Do” é uma canção de ninar com um arranjo refinadíssimo. “Noisy
Sunday” é um outro acalanto no qual a leveza da composição é como um amanhecer
de domingo com seu ruidoso silêncio. A pianíssima "Quiet Crownd", por
sua vez, tem melodia forte, emotiva, e performance
excepcional de Watson. O solo de
piano tenso, quase freak precede um refrão revigorante, como o sol que força o
caminho vencendo a tempestade e deixando tudo mais claro.
A música de Patrick
Watson é feita assim, de clarões. Nela, o que parece nublado logo se refaz
em luminosidade. “Step out for a While”, por exemplo, cresce com seus vários
andamentos e abre clareiras, forçando espaço para uma percussão forte, como um
som de marcha. Uma composição em dois tempos, a doçura e o amargo encadeados em
três minutos com gostinho e cheiro de nostalgia. Dois sentimentos em uma das
mais belas canções do disco. Mais uma eficiente construção sonora que remonta à
mágica atmosfera circense. Como nos circos românticos e telúricos de tempos
remotos. Como num filme de Federico
Fellini. “Morning Sheets” é derramada, languida, com um acento mais pop, economizando
na guitarra aquilo que sobra na orquestração classuda. Lembra, ainda que de
longe, a soul music fogosa de Isaac Hayes.
Adventures in Your Own Backyard é,
enfim, obra para mentes e corações abertos, gentil como um beijo de
agradecimento. É Patrick Watson e
seus parceiros do Canadá brincando de ser feliz em seu próprio quintal e
transferindo essa felicidade para nós. Encare sem preconceito.
Cotação: 5
Se aventure neste
quintal:
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