
De um lado, um artista recluso, dono de uma pena fina e extrema sensibilidade para compor músicas tão estranhas quanto belas. Do outro, um produtor requisitado, competente artífice de hits grudentos. No meio, um dos cineastas ingleses mais cabulosos e originais dos últimos tempos. Os três, respectivamente,
Mark Linkous, o cérebro por trás do
Sparklehorse,
Danger Mouse, o criativo do
Gnarls Barkley, e
David Lynch assinaram um projeto gráfico-musical que redundou no consistente
Dark Night of the Soul (2009), um dos álbuns mais sinceros e bacanas do ano.
O “assinar” aqui é no sentido lato da palavra. A assinatura dos três está muito pulsante e evidente nesse projeto gráfico que traz fotos de
Lynch e músicas elaboradas por
Sparklehorse e
Danger Mouse. Não vi o livro, somente fotos esparsas, algumas das quais ilustram essa resenha.

As composições, por sua vez, caíram na internet depois que a gravadora desistiu, por motivos não divulgados, de prensar os CDs. E encheram meus ouvidos e, provavelmente, daqueles que gostam de música autoral e com estampa bem definida.
Dark Night of the Soul traz
Sparklehorse e
Mouse afinadíssimos, ampliando os laços musicais que já haviam testado com sucesso em
Dreamt for Light Years in the Belly of a Mountain (2006), último álbum de
Linkous. Os dois mantém no disco a identidade que os fizeram respeitadíssimos – cada um em seu campo – casando a programação eletrônica orgânica do engenheiro do
Gnarls Barkley com a musicalidade complexa do mentor do
Sparklehorse.

A programação eletrônica intensa, com barulhinhos, chiados, distorções criam texturas instigantes e em completa harmonia com o universo indie e sempre no limite do desespero construído por
Linkous. Talvez seja isso que provoque a sensação de encantamento. É como se o cerebralismo de
Mouse enquadrasse, de alguma forma, os devaneios do
Sparklehorse. A mescla da arte dos dois encontra real equilíbrio no conjunto da obra, com o auxílio luxuoso de muita gente boa que participa do álbum.
Mesmo com esse equilíbrio o disco é desiquilibrado. Os autores da obra conseguem ser orgânicos em cada peça, mas não exatamente no repertório que oferecem, que vai de músicas mais palatáveis a outras que travam o cérebro. A fusão de um produtor racional com um artista viajandão produz momentos sublimes que podem beirar, inclusive, o pop. Casos de “Revenge”, música lenta e sensual, na qual o Flaming Lips rasga o coração do ouvinte, ou nas competentes “Jaykub” e "Everytime I'm With You", as duas com melodias acachapantes interpretadas com paixão por
Jason Lytle, a alma do extinto
Grandaddy.
Pop também, mas numa linha mais roqueira é “Little Girl”, uma música vibrante que conta com o participação fundamental de
Julian Casablancas, do
Strokes. O refrão é um achado sonoro. Boa pra cacete. Nessa linha mais pé no chão e “popular” está também "Daddy's Gone", na qual Mark Linkous divide o vocal com uma tímida Nina Persson, a voz feminina do Cardigans, numa música de doer a alma.

A tristeza, aliás, perpassa parte do repertório de
Dark Night of the Soul. Escurte a curta e bela "Grim Augury", música bêbada na qual o casmurro
Vic Chesnutt, dono de um timbre único, arrepia no vocal ao som de batidas secas e teclado espesso e hipnótico. Mas há também momentos mais insubmissos e enérgicos, a exemplo de "Angel’s Harp", onde um raivoso
Black Francis, ex
Pixies, arranha uma melodia meio alucinada com guitarras pesadas e distorções atacando nosso cérebro sem dó nem piedade. E de “Pain”, com
Iggy Pop destilando sua insolência roqueira numa composição provocativa e bem mais "macho" do que se mostra em seu recente trabalho,
Preliminaires (2009).
Dark Night of the Soul é, enfim, um álbum que ganha o ouvinte pela diversidade, arranjos densos e pela qualidade das composições. Um disco rico e memorável de músicos que tem algo a mostrar. A inteligência aqui, pode ter certeza, é a grande alma do negócio.
Cotação: 5
De bandeja. Sirva-se à vontade:
http://sharebee.com/ddf490a2