sexta-feira, 31 de julho de 2009

Luz no fim do tunel

A personalidade de um homem às vezes se sobrepõe a de sua banda. E aí a visão pessoal transcende o trabalho coletivo, revelando marcas próprias. No Brasil, um exemplo disso foi o atormentado Renato Russo, kamikaze e cérebro da saudosa Legião Urbana. Outro caso típico é o de Mark Oliver Everett, a alma da cultuada Eels. Depois de quatro anos de silêncio, o discurso obsessivo desse norte-americano volta a tona com o mediano Hombre Lobo:12 songs of Desire (2009) .

Para quem não conhece, a Eels é uma banda que desde a obra-prima Beautiful Freak (1996) faz uma mistura de folk, pop e indie (no que esse termo tem de experimental) à sombra do espírito introspectivo de Everett. O álbum citado acima tem um título que o definia à perfeição: belas melodias cercadas de estranheza por toda a parte. De lá para cá, o grupo foi tentando aparar arestas, aproximando sua música de uma sonoridade mais casual, mais comum aos ouvidos da maioria.

Mas, o pulsante Electro-shock Blues (1998) e, principalmente, o soturno Blinking Lights and Other Revelations (2005) indicavam que essa tentativa caminhava no tempo e no processo interno do líder da banda. E, aqui, o processo, como diria o rapper brasileiro B Negão, é lento. Até porque Everett passou pela barra pesada de vivenciar o suicídio de uma irmã e de acompanhar a agonia da mãe na batalha contra um câncer. Os anos sem um álbum de estúdio serviram provavelmente para expurgar um pouco essas dores.

E Everett deve ter saído um pouco mais leve desse diálogo que teve com o sofrimento. E veio Hombre Lobo, provavelmente aquilo que de mais pop o Eels pode se aproximar. O lado rocker e folk está mais transparente e amigável, como em “Prizefighter”, um rock caipira à moda antiga inspirado e gostoso de ouvir. “Lilac Breeze” é rock and roll básico, com a guitarra pedindo licença para passar e a voz rouca de Everett soando urgente. E a melhor de todas, “Tremendous Dynamite” aproxima-se do blues, com baixo e bateria em conversa instigante valorizando a boa melodia.

Essa brecha aberta para o mundo pop está evidenciada ainda na música de trabalho do disco, “Fresh Blood”. Esse rock cadenciado é trilha sonora para filme de terror, daqueles blockbuster, com direito a uivo de hombre lobo, o lobisomen que dá nome ao CD. Canção movimentada e bem acabada para tocar no rádio e na MTV. “Sweet Baby, I need fresh blood”, canta um lupino Everett, no limite pop de suas criações.

A face lunar da banda dá também o ar da graça. O lo-fi que ajudou a fazer a fama da banda entre os mais antenados volta capenga em “That Look You Give That Guy”, uma baladinha downtenpo e linear com o vocalista cantando de forma propositadamente desleixada. Um recurso natural, aliás, de quem não tem lá uma voz muito atraente. Mais atonal, “Longing” é canção desesperada, aquela que apenas ensaia um retorno à tendência depressiva de Everett. Melancolia exposta como uma ferida aberta. E é nas mais lentas, uma dos pontos fortes do grupo, que o álbum derroca. Faltou apetite e inspiração para o aparentemente cansado e intenso band leader liberar seu discurso de perdedor. Quem sabe é o sinal para uma mudança mais radical na sonoridade do Eels. É aguardar para ver.

Cotação: 3

Vá de Eels:

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segunda-feira, 27 de julho de 2009

Baita negona

Quando morava em Brasília, notava que o nome de Ellen Oléria era uma constante na agenda cultural dos telenoticiosos. Incansável, a moça parecia onipresente nas noitadas dos fins de semana candangos. Muitos falavam para mim que a cantora e compositora era talentosa, mas nunca havia aparecido uma oportunidade mais clara de vê-la para comprovar a teoria dos amigos. Até que um dia me vi ali, em frente ao palco, bem no gargarejo, hipnotizado pela intensidade daquela baita e maravilhosa negona.

Ellen é negra e não nega. Os grooves, a black music, o rap e o jazz incidentais nas musicas suingadas comprovavam isso. Toda aquela incandescência no palco estava para sentar praça em um disco, informou ela naquela noite fria e chuvosa de maio em que me vi, pela primeira vez, presa do talento daquela mulher. O álbum aconteceu, enfim, fruto de uma experiência musical de quatro anos e muitos bares afora. Peça é o nome da peça, um CD bacana, mas que infelizmente não faz jus à eletricidade e alegria que a artista incorpora em seus shows ao vivo.

Peça tenta trazer a energia intransigente de Ellen Oleria para o registro definitivo de um álbum. E até consegue em certos momentos nas faixas mais iluminadas e vibrantes do trabalho. É o caso das duas elétricas versões da ótima “Senzala(A Feira da Ceilândia)”. A primeira puxa por um irresistível acento funk, com a metaleira chamando para dançar. Mais dançante ainda, a versão remix promove a fusão do funk com o rap, com a participação do ótimo Gog nos vocais. “Sinto necessidade, uma vontade grande de dançar”, canta a artista na música. A gente também, Ellen, com certeza.

Também boa pra fazer dançar é “Pedro falando com o reflexo”. É outro funk com letra e refrão espertos. A composição, sobre um trabalhador com urgência para curtir a noite depois de uma semana de muito suor, engata, a exemplo de “Senzala”, na mistura black music, funk e rap, com invejável suingue. Difícil, para os mais afoitos, não rebolar o esqueleto. Mesmo caso de “Forró de Tamanco”, uma versão deliciosa para um xote do Três do Nordeste. Aqui o pé de serra do trio ganha uma cadência roqueira e pop, com destaque para a sanfona sedutora e uma guitarra pesada, num inimaginável casamento, e a interpretação vigorosa de Ellen.

Há ainda sambinhas legais, como “Só pra Constar”, com levada jazzy e melodia mais candente, mesma linha de “Posso Perguntar?”, que abre o disco apresentando estrategicamente para os incautos a voz negra, forte e limpa de Ellen Oléria. Mas essas canções e as baladas intimistas que se espalham pelo disco, todas compostas pela artista, assim como 90% do disco, não criam um corpo orgânico e nem traduzem a robustez da música e negritude inflamável da artista. Irregular, Peça peca pela escolha do repertório. Mas, da artista não há o que duvidar: o encantamento começou.

Cotação: 3

Funke-se:

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quarta-feira, 22 de julho de 2009

O céu que desaba sobre nós

Chove demais neste período do ano em Boa Vista. Água aos borbotões, copiosa. Tanta água cai, e tão insidiosamente, que percebi, invernada adentro, que a população da cidade tem uma relação amigável, consensual com esses minidilúvios. Uma espécie de política diplomática com o tempo instável, até porque não adianta fazer cara feia ou esbravejar porque ela vem desabonadora sem pedir desculpas, ensopando os desavisados, liberando guardas-chuvas coloridos, aglomerando gente debaixo de marquises, fazendo-se imperiosamente dona do dia e de nossa liberdade de movimentos.

A chuva faz a gente parar. E pensar. Refletir que somos reféns da natureza e que há um céu que desaba lá fora. Um céu tão imenso - maior do que o mar que nos aparvalha pelo gigantismo – e opressor que nos sentimos inexpressivos, prisioneiros inquietos nos pequenos e débeis espaços de concreto que nos abriga. A chuva que cai nos coloca em nosso devido lugar, seres humanos indefesos diante daquilo que é maior, incontrolável, sem qualquer poder de mudar paisagens e climas como fazemos em casa – senhores de si – com um controle remoto na mão. Não existe tecnologia que interfira no céu que desaba. Somos nós, sozinhos, e a água dona de tudo lá fora, ser e chuva em diálogo mudo.

Render-se à força da chuva é a solução mais sábia num lugar onda a abundância da água é realidade líquida em invernos amazônicos. Daí, imagino em minha vã filosofia, essa complacência respeitosa e ancestral do povo de Boa Vista com a chuva. Nesse relacionamento amistoso, todos dançam a valsa com ela, pianinhos, sapateando no toró. Abraçando a água para curar ressacas, com a moça molhando um pouco os seis voluptuosos para provocar suspiros, com o rapaz enfrentando, num gesto animal, gotas impiedosas da longa tempestade para vender virilidade aos amigos. Cena que se repete: a água seminal corre nas ruas, empoça avenidas e, sempre em algum lugar, encontra-se com o Rio Branco, o pai dos sonhos e paisagem inspiradora dos macuxis. Encontro de águas. E, no meio, nós.

Fui a uma festa num sábado. Chácara do Tomé a uns poucos quilômetros de Boa Vista. Lugar agradável, repleto de palhoças para abrigar os festeiros e festeiras espevitados, doidos para serem felizes naquela noite. E lá estava ela lá, intermitente. A chuva fremia a paisagem sem dó e descanso, desafiando a vontade de todos de se divertir. Mas, havia ali no fundo a complacência enraizada, a combinação tácita, subliminar, entre homem e água. E a cada segundo corrido ficava bem claro para mim: a enxurrada era mais uma convidada da festa, a mais comentada e reverenciada delas. Irmã fiel da lama e poças que adornavam toda a área da chácara, do estacionamento pastoso e escorregadio ao gramado quase invisível em volta da pista de dança.

No começo da noite, a chuva dominadora lavava e levava as moças, entre gritinhos animados e enconjúrios, a enfiar penosamente os saltos elegantes no lamaçal, instigava os homens a arregaçar as calças engomadas, tentando evitar o inevitável. Uma resistência venal que logo dava lugar, com a ajuda de goles generosos de cerveja e uísque e expectativa alvoroçada de namoro e momentos de luxúria, a uma entrega sem cerimônias à toda a água que imantava o lugar.

E aí a festa se fazia desapegada. Entregues ao prazer das águas e dos risos, homens e mulheres caíam lúdicos no forró da chuva. Tiravam o excesso de umidade dos olhos para enxergar melhor a noite e o alvo escolhido, e, assim, como moleques brincando ao relento, perdiam a elegância sem culpa. Eles corriam de uma palhoça para a outra, pescando as gotas vadias ou andavam em passos lentos, deixando que a pele se banhasse frivolamente. Elas bailavam no meio da chuva, escorregadias, para se secarem depois resolutas e fingindo carência nos braços sempre abertos dos namorados e das amigas. Desse modo companheiro e compreensivelmente servil, eles e elas cortejavam promiscuamente a chuva, de bem com a vida numa Boa Vista chorosa, prenhe de água e promessas de felicidade.

Fotos de chuva em Roraima: Thiago Orihuela

terça-feira, 21 de julho de 2009

Contundência e beleza

Estão lá as músicas longas, o indubitável virtuosismo do guitarrista Omar Rodriguez-Lopez e a voz vigorosa e técnica do excelente Cedric Bixler-Zavala, pontas de lança ferozes acompanhados de uma zaga competente, formada por Thomas Pridgen (bateria), Juan Alderete de la Peña (baixo), Isaiah Ikey Owens (teclado), Marcel Rodriguez-Lopez (percussão) e Adrian Terrazas-Gonzales (flauta, sax tenor, clarinete baixo e percussão). Mas, o que se ouve em Octahedron(2009), o quinto CD do excepcional The Mars Volta, não é o mesmo e esfuziante som com o qual aquela turma costuma embebedar os fãs.

A mudança na sonoridade do último trabalho da banda pode até parecer estranha, mas nem de longe é decepcionante. Pelo menos para mim. Tentaram inclusive – os fãs e críticos mais radicais – desmerecer a obra exatamente pelo o que ela tem de melhor, a sua construção mais pop e acessível. Diferentemente do difícil e esquizofrênico, The Bedlam in Goliath(2008), álbum anterior, neste o The Mars Volta está mais lúdico, melodioso e, podemos até arriscar, afetivo.

O que não falta no disco são belas melodias, devidamente ilustradas pela guitarra matadora de Omar e encorpadas por arranjos inteligentes, levados com maestria pela banda inteira. Octahedron tem baladas definitivas, dessas que vão certamente marcar a carreira o grupo, como “Since we’ve be Wrong”, que abre o CD tensa e progressiva, com guitarra agridoce, para envolver depois com uma lancinante interpretação de Cedric em emocionantes sete minutos e meio. Tão intensa quanto “With Twilight as my Guide”, uma composição tristíssima, valorizada até a última nota pelo afinado vocalista. De corroer a alma.

Entre as viagens psicodélicas e progressivas, tão próprias do grupo, há intervenções sonoras mais pesadas, outro traço característico, mas, a exemplo das baladas, do mesmo modo bem digeríveis. São os casos de “Teflon”, um rock acelerado e com direito a falsetes de Cedric, e da curta “Cotopaxi” (3’38”, um flash dentro da prática de prolixidade da rapaziada), canção explosiva e com guitarra e percussão numa levada alucinada. Repare na transição da mudança de andamento da composição feita com extrema harmonia dentro do contexto da música.

Tudo o que foi dito aqui, essa mudança de tempero e agressividade do The Mars Volta não quer dizer que a banda perdeu seu caráter irrequieto e contemporâneo. Aqui e ali há pinceladas de experimentalismo, daquela “velha” modernidade dessa turma do Texas. Isso pode ser visto nos teclados viajandões e nas guitarras distorcidas em “Halo of Nembutals” ou no progjazz da bacana “Luciforms”, que fecha de forma magnífica o disco.Octahedron é um disco de responsa, um The Mars Volta mais careta, mas igualmente contundente.

Cotação: 4

Conheça os oito lados de Octahedron em quatro tentativas possíveis:

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segunda-feira, 20 de julho de 2009

Nasce um pequeno clássico

The Fiery Furnaces é uma daquelas bandas que despertam inegável interesse a cada disco. Quando ouvi o bacanudo Blueberry Boat(2004), possivelmente o único disco desses norte-americanos lançado no Brasil, percebi que tinha ali algo diferenciado, uma sonoridade distante dos modismos e do lugar comum. Um som taludo, cheio de nuances e experimentações, com variações ousadas de andamentos nas músicas que chegavam a desorientar o ouvinte. E eis que os irmãos Friedberger(foto) voltam a surpreender com I’m Going Away(2009).

A maior surpresa desse sétimo disco dos prolixos Matthew, compositor e multiinstrumentista, e Eleanor Friedberger, vocalista talentosa, é exatamente a guinada pop que resolveram dar em sua carreira. Para quem ouviu alguns dos trabalhos da banda, é estranho dar de cara em I’m Going Away com uma espécie de reverência ao rock’n roll no que ele tem de mais radical, no sentido mesmo “back to black”, pedindo emprestada a expressão da porralouca Amy Winehouse.

O álbum é uma deliciosa e consistente volta ao rock básico, aquele que tem raízes no folk, country e na música negra, potente mistura que o gerou. Claro, com uma pitada da modernidade e inventividade que marcaram a trajetória do Fiery Furnaces. Já no cartão de visitas, a country-rock “I’m Going Away”, a dupla engata uma composição viciante com os elementos que darão as cartas do álbum jornada adentro: piano rocker, riffes marcantes de guitarra e melodias beirando o pop.

É fácil identificar algumas pérolas de fácil digestão no disco. Há as baladas, como a bipolar “Drive to Dallas”. Cool e envolvente, é canção esperta, com um que de soul music para dançar agarradinho, interpretada com devoção e tesão por Eleanor. Uma grande melodia que, lá pelo meio, ganha contornos estridentes, trazendo de volta o lado experimental da banda com a guitarra quebrando tudo, para depois voltar a velejar mansa, agradável. Ainda mais calminha, “The End is Near” apela para uma arrebatodora elegância para desarmar de vez quem a ouve.

Um pouca mais adiante o disco engrena uma série de composições irrepreensíveis, deixando claro o senso melódico afiado de Matthew. “Even in the Rain” é uma achado pop, um pequeno clássico da banda com seu refrão que teima depois em sair da cabeça. Assim como “Staring at the Steeple”, a música seguinte, com uma guitarra mais pesada, que remete ao rock setentista de Led Zeppelin e Black Sabbath, quando essas ainda alimentavam uma influência bluesy. A seqüência matadora segue com a encantadora “Ray Bouvier” e a ganchuda “Keep me in the Dark”, com um riff de guitarra cheio de personalidade e sensualidade à flor da pele.

I’m Going Away é dessas obras que devem se tornar referência com o tempo, um Fiery Furnaces da melhor lavra. É, para mim, o melhor produto de uma banda que amplificou o lado pop, antes adormecido, exercitado com extrema sabedoria. Discaço. Já está, sem dúvida, na minha lista dos melhores do ano.

Cotação: 5

A porta para o som da dupla:

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sexta-feira, 17 de julho de 2009

Pra cima e avante

Uma música moleca teima em se repetir, incansável, no meu tocadisco. Um reggaezinho moderno e malemolente, bem defendido pela voz roufenha de uma das mais talentosas cantoras brasileiras da novíssima geração. O nome da composição é “Cangote”. A moça cantadeira tem alcunha pueril, mas produz um som encorpado, desencanado: Céu. Acaba de ser lançado Vagarosa(2009), o segundo e esperado CD da bela, depois de um hiato de quatro anos de lançamento do debut, Céu (2005).

O que me agrada em Céu é essa vontade da cantora e compositora, como prenuncia o seu nome, de procurar o ilimitado, de não se acomodar em praias calmas. Depois do superelogiado álbum que a apresentou ao mundo, a artista retorna mais amadurecida, disposta a buscar uma batida própria, contemporânea. E é isso que salta depois da primeira audição de Vagarosa: um eco de modernidade que transparece em praticamente todo o trabalho.

A contemporaneidade imanente no disco está nas melodias personalistas, todas compostas por Céu com uma ou outra parceira, prenhes de uma aura new hippie (a natureza é personagem ativa) mas travestidas de uma linguagem atual, e, principalmente, nos arranjos. Toques de eletrônica misturam-se ao reggae, como na já citada “Cangote”, um verdadeiro achado, e ao psicodelismo em “Nascente”, melodicamente uma das mais fracas do CD.

Os beats modernos ajudam a dar volume à “Comadi”, uma boa canção que se utiliza de uma levada jazzística da guitarra e bateria e de metais precisos para falar de uma mulher forte, uma “ponta de lança que às vezes se amua com tamanha herança”. A artista mistura numa mesma música, com charme e eficiência, imagens antigas e batidas modernas, originando um caldo grosso e instigante. Caso também de “Rosa Menina Rosa”, uma das primeiras músicas gravadas por Jorge Ben, que ganha aqui uma versão lenta e hipnótica, com a ajuda dos Los Sebozos Postizos.

A participação dos Sebozos é bastante sintomática da atual fase de Céu. A banda, que conta com integrantes da Nação Zumbi, como o baterista Pupillo e o baixista Dengue, empresta à música uma sonoridade que tem como base a música afro-latina, o dub, e a black music de ponta. Os dois participam de algumas faixas de Vagarosa e fazem parte, no Nação, de um grupo de músicos brasileiros que buscam referências musicais diversas para criar um som novo, autoral. Céu também é assim, como outros convudados do disco a exemplo de Fernando Catatau e Curumim, dois outros expoentes da moderna música brasileira .

A fusão rítmica potencializa em muito o trabalho de Céu. Em “Bubuia”, uma das mais radiofônicas do álbum, elementos musicais árabes encontram um baixo e bateria cadenciados numa criação de suíngue esperto. Na bem legal e inventiva “Papa”, tango e dub, fazem um pas-de-deux irressistível. A latinidade de “Cordão da Insônia” chama, por sua vez, para dançar.

Em raros momentos, o disco derrapa ou cai numa certa acomodação. O momento cansei de ser moderna está no sambinha malandro “Vira Lata”, com participação especial do grande Luiz Melodia, cuja voz se casa à perfeição com a da dona do terreiro, canção que finca os pés na tradição, mas conquista o ouvinte com seu jeitão clássico e requintado. Dispensável: a estranheza sonora de “Ponteiro”, com seu teclado demente e ritmo impreciso. No mais, é um disco corajoso e bem arquitetado. É Céu confirmando sua personalidade marcante e antenas ligadas com o que é feito de mais interessante aqui e mundo afora.

Cotação: 4

Experimente um desses:

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quinta-feira, 16 de julho de 2009

Ah, quantas lágimas

“Tem dias que a gente se sente como quem partiu ou morreu”, cantou um dia Chico Buarque chafurdando em sua genialidade. Nesses dias é bom olhar para si próprio e tentar aprender algo de bom, um fiapo que seja de sabedoria. O australiano Scott Matthew deve ter passado por algumas longas sessions dessas para produzir o choroso e terno álbum de nome tão extenso quanto o desejo do artista de se desvelar: There Is An Ocean That Divides And With My Longing I Can Charge It With A Voltage Thats So Violent To Cross It Could Mean Death (2009).

There is An Ocean... é o segundo trabalho desse cantor e compositor que resolveu montar base em Nova Iorque para conquistar um público maior. É um álbum emotivo, de uma lentidão proposital e, acredito, conceitual. Há em cada música do disco um certo vagar que acompanha as letras descaradamente intimistas. O acento folk, na maioria das composições, é consubstanciado por quilos de violões acústico, pianos e arranjos de cordas climáticos e, claro, melodias rebuscadas.

Esses penduricalhos instrumentais estão a serviço do universo extremamente pessoal do artista exposto nas letras. Em “Ornament”, Matthew revela que se drogou e viveu muitos lados da vida, devidamente “amparado” pelo coisa ruim: “O próprio diabo me ensinou os álibis”, canta nessa que é das raras músicas mais alegres e próximas do rock do disco. O resto são músicas confessionais onde o amor está quase sempre levando a pior: "Meu amor mente além do oceano”, diz na canção sussurrante e lentíssima que dá nome ao trabalho.

Ainda que aponte uma luz no mais escuro dos oceanos, como em “Friends and Foes”, o que se vê é um sujeitinho com tendências à depressão, cantando composições melancólicas, mas, calma, não o suficiente para dar sonolência no ouvinte. Porque há beleza melódica nelas, exemplo da linda “White Horse”, que começa com um ar mais épico abrindo para uma interpretação intensa e emocionada de Scott Matthew. Casos também da música de ninar “For Dick” e da elegante “Every Traveled Road”, cujo timbre do cantor lembra a impostação vocal de Elvis Costello em seus tributos a grande compositores.

Há ainda, como destaque, a voz marcante de Matthew que ajuda a suportar suas tristes confissões e baladas tocantes. Soa delicada, honesta e, o que é melhor, curtida por uma técnica apurada. O que incomoda em There is An Ocean That Divides... é sua obsessão em ser cru demais e sistemático em seu foco introspectivo. Essa linearidade reforça a integridade do álbum e sua personalidade, mas cansa um pouco os ouvidos. Faltou, perdão pela brasileira liberdade poética, samba. Não deixe, porém, por conta disso de dançar a valsa.

Cotação: 3

O ticket para o vale de lágrimas:

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quarta-feira, 15 de julho de 2009

O natal em que seu Flores dançou o tango

Seu Flores fumava maconha com o nascer e morrer do dia. Nas noites de natal, seus olhos miúdos e circunspectos rivalizavam com as bolas vermelhas e lustrosas da corpulenta árvore natalina entronizada no canto da sala. Nesse momento de gala e confraternização, seu Flores apenas refletia mansinho, sentado por sobre sua gordura desavergonhada na melhor poltrona da casa. Afinal, patriarca tem seus direitos, mesmo sendo fã confesso da erva e sob o guarda endurecida dos filhos que vinham lhe pedir a benção com cara de desaprovação.

Não faltava o sussurro aviltado de um dos cinco filhos corroendo a noite buliçosa. Seu Flores imaginava as letras soltas se juntando preguiçosas como nas ondulações leves do mar traiçoeiro que convergem para a onda ruidosa. O texto seco e chulo, com poucas variações, que devia seguir no rumo do lugar comum: Já pensou! Um velho de mais de sessenta naquela situação. Mundo virado este! O bom velhinho, bomconheiro, imaginava tudo e ria com o cantinho da boca, muito tranqüilo e bem postado no alto de seus honrados sessenta e poucos anos.

Demorou pouco, o tempo já cronometrado por seu Flores – toda noite de natal era assim, como um velho filme riscado a rodar intermitente na parede sem cor da casa centenária – para que a filha mais velha, sempre ela, viesse segredar conselhos. Ela escolhia com cuidado as palavras, emolduradas por uma voz cansada, mas entranhada de carinho e respeito.

- Meu pai, preserve seu nome. O senhor não tem mais idade pra essas coisas...

Seu Flores ouvia paciente, segurando com força a mão nervosa da filha, meneando a cabeça assertivamente entre uma e outra respiração mais forte da professorinha que, ele sabia, mal amada, falando perto de seu ouvido para que ninguém mais ouvisse. Pensava, no meio do discurso aconselhador, na bituca repousada no fundo do bolso do paletó puído que ele deixou guardadinha para a madrugada alta, quando, afastado de todos e de todos os olhares, ele falava com Deus.

Naquela noite, antes de conversar com Deus, seu Flores tinha, porém, planos diferentes. Um corte seco programado naquele velho longa-metragem com os mesmos e displicentes atores, a mesma maionese metida a besta, o mesmo peru recheado, a mesma promessa de alegria e esperança vendidas de meia em meia hora em cada quadrante da sala como produtos de primeira necessidade. Seu Flores, como planejado há um mês, iria dançar o tango.

Essa vontade foi se agigantando desde a última semana de novembro, quando ouviu um lancinante e bêbado Carlos Gardel na vitrolinha rubra que mantinha acesa em seu quarto desarrumado. Um vinil gasto escarafunchando desejos empaludados. Agulha riscando afiada o cérebro.

É isso que dá, argumentou depois para si mesmo, um velho ter horas a fio e a fio para pensar na vida. Os desejos reclusos teimam fatalmente em dar as caras, de um jeito insolente, soberano, cobrando passos não dados, sugerindo loucuras rabiscadas, mas nunca corporificadas. Naquele exato instante, teve a completa certeza, sorveu um gole rejuvenescedor da invisível fonte da juventude.

- Que porra de velho, nada! – Decretou na hora.

E foi assim, depois dos conselhos sibilantes da professorinha malamada, que seu Flores abandonou a mão da filha, que ficou solta no ar como um balão à deriva, e se dirigiu solene para o meio da sala diante da pequena multidão familiar. E tartamudos, os parentes viram, ao som de um indigente jingle bell, os passos decididos daquilo que o velho maconheiro chamava de tango. Primeiro, sozinho, num balé algo sonolento, em câmera lenta, mudando o roteiro daquele filme natalino, arrastando o sapato preto na cerâmica de mau gosto. Depois, arrastando a neta desarmada em volteios alucinados, derrubando a porcelana antiga, quebrando taças de cristal, espalhando farofa, feito confete de carnaval, por todo o raio de sua pequena e incontida loucura.

Corte seco naquele velho filme. Com um sorriso largo, como há anos o rosto enrugado não via mais, o velho foi desacelerando seu tango, com a neta nos braços, até parar enfim em um lance acrobático, clássico, a réstia de sua piedosa loucura. Agradeceu a todos os espectadores, ainda em estado vegetativo, com um meneio gracioso e foi para o quintal com a alma lavada. Sentou debaixo da mangueira frondosa, pegou a bituca dentro do bolso, acendeu e começou seu diálogo com Deus. Pronto – pensou entre baforadas suaves – estava novamente pronto para a vida.

Ilustrações : The Last Tango - Juarez Machado e Tango Room - Juarez Machado

terça-feira, 14 de julho de 2009

Regurgitando o passado

Estava com saudades de ouvir um trip hop genuíno, carregado daquela melancolia avassaladora que escorre entre cada nota da música, entre cada frase suspirada. Aquelas canções doídas, downtempo, assombrosas em suas viscerais viagens alma adentro. Dei de cara então com The 39 Steps, um duo inglês que lançou seu primeiro projeto sonoro, o álbum Coming Clean (2009), um disco que tenta retomar a magia criada por pioneiros do gênero, os excepcionais Moloko e Portishead.

O que é legal em Coming Clean é que o DJ e produtor inglês Kato e a cantora convidada Laura Fowles não buscam dourar a pílula nem inventar a roda. Apesar do autor do projeto chamar a música que faz de “Dark Soul”, talvez apenas para efeito de marketing, o que há na verdade é uma puta reverência ao trip hop de raiz, aquele que sufoca o fã do gênero com fartas injeções de tristeza e estranhamento.

Impossível não remeter a música da dupla aos primeiros passos de Portishead e Moloko na construção musical do trip hop. Do primeiro, é possível pescar com vara curta a melancolia e clima opressivo, incluindo detalhes como o barulho de vinil riscado, em músicas como a linda “I'll Be There” ou na seqüência impressionante de “The Pinch” e “Piano Killer”. Nessas duas, a paisagem soturna toma conta do ambiente com a voz firme de Fowles ora pendendo para um timbre infantil ora indo para o sensual, Lolita de todo. Repare ainda no efeito “voz dentro de caixa” que torna tudo mais estranho e instigante.

De Moloko, vem o lado mais solar e pop de Coming Clean, se é que podemos perseguir algumas réstias de luz nele. Mais palatáveis, composições como “Road To Where?” e a cinematográfica “Ghost Writing”, classuda e estilosa, dão um descanso ao castigado coração do ouvinte. Há ainda esparsos momentos em que The 39 Steps buscam inspirações no jazz, como na cool “Since You”, uma tentativa que acaba sendo soterrada, no frigir dos ovos, pelas pás de programação eletrônica jogada veementemente por Kato (o cara da foto).

A comparação com Portishead e Moloko não significa que temos aqui um disco à altura dos que fizeram aqueles no limiar do trip hop. Mas, Coming Clean é um álbum digno, bem arranjado e com uma vocalista escolhida a dedo. Daqueles que nos faz lembrar que o gênero em questão nunca vai cair em desuso e que ainda pode render obras de grande apelo emocional. Vale escutar, mas, sempre tentando resguardar o coração, viu.

Cotação: 3

Abandone-se:

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segunda-feira, 13 de julho de 2009

Pequena obra-prima

Ter o que dizer é algo sempre muito bem vindo e surpreendente no cenário roqueiro brasileiro. Até porque, com algumas raras exceções, nossos letristas do gênero não são lá muito cultos e afiados. E, vazio por vazio, às vezes é melhor ficar de cara pra televisão. E aí, quando você se depara com uma banda que tem conteúdo e, além disso, empresta organicidade ao discurso, temos que tirar o chapéu. É o caso da paulistana Pullovers, que lançou o excelente Tudo que eu Sempre Sonhei (2009).

Pullovers tem dez anos de estrada e uma fidelidade ao indie rock, inclusive na opção de cantar somente em inglês, o que sempre achei uma tremenda bobagem, traída somente agora com este quarto trabalho. Na verdade, de 1999 para cá, a banda, muito cultuada nas internas, mudou, evoluiu e manteve apenas em sua formação, o cérebro, poeta e vocalista do grupo Luiz Venâncio. Para chegar à clara maturidade teve, olha só que ironia, que cantar em português!

Cantando em português, a banda afiou o verbo optando ainda por revelar uma urbanidade aterradora. Os paulistanos do Pullovers resolveram ser radicalmente paulistanos, desenhando as ruas e o clima de uma cidade cosmopolita, moderna, mas que vive as niveladoras dores de amores e o duro cotidiano de quem apenas quem ser feliz. Nisso, são brutamente orgânicos e sinceros e, por isso, conquistam inapelavelmente, corroborados pela poesia solta, o ouvinte.

Falar de Tudo o que Sempre Sonhei é falar de uma pequena obra-prima. Na investida em um rock com influências da MPB, a banda acerta em cheio, lembrando até em certos momentos Los Hermanos. E com méritos. Melodias doces e criativas infestam o álbum, com muita guitarra dedilhada, bateria marcada, cordas e piano, tudo bem orquestrado e com refinamento matemático. Bom ouvir e reouvir para sentir a inserção precisa dos instrumentos de cordas e a riqueza melódica das composições. Repare na delicadeza de “Lição de Casa” e na introspecção beirando o trip hop da arrepiante “Quem me dera houvesse Trem”.

Já as letras, estrelas do disco, são casos a parte. Luiz Venâncio, autor da maioria das músicas, libera a verborragia represada para cantar canções de amor e mostrar-se um inveterado paulistano. A música que dá título ao álbum é uma grande mostra da veia poética caudalosa do compositor. Com tintas autobiográficas, desnuda a vida de um brasileiro de classe média, comum, feliz com suas conquistas. E com sua nacionalidade e senso crítico: “Ainda bem que eu sou brasileiro, tão teimoso, esperançoso, orgulhoso de ser pentacampeão/já que se eu fosse americano, pegaria uma pistola e a cabeça ia perder a razão: mataria quinze na escola, estouraria a caixola e apareceria na televisão”.

Outro bom achado poético é a letra de “Marinês”, a bem contada história de uma suburbana que luta pra crescer na vida, mas desfaz todos os planos diante do olhar apaixonado de um “mano” nos corredores do metrô. E também a construção concreta dos versos de “O que dará o Salgueiro?”, que não tem, raríssima exceção, melodia à altura da letra ou, por fim, o despachante discurso da circense “Tchau” que fecha, definitiva, o disco. “Tudo que eu Sempre Sonhei” é álbum pra fazer história, um dos grandes e inspiradores lançamentos do ano.

Cotação: 5

O download pode ser feito gratuitamente no site da banda: www.pullovers.com.br . Passe lá que vale a pena.

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Asteróides da Dinamarca

Eles já foram trilha sonora de um comercial da Apple na Europa e emplacaram também uma música na série Gossip Girls. Hoje, o álbum de estréia desses dinamarqueses de Copenhagen, Fruit(2009), pode ser encontrado facilmente no drive dos aparelhos de muitos descolados mundo afora. O duo tem nome extenso e estranho, The Asteroids Galaxy Tour, e faz um som esperto, um dance funkeado com tintutas psicodélicas e levada cool, gostoso de se ouvir.

Fruit lembra a estréia de uma banda que virou moda no ano passado, a dançante Santogold, só que em um ritmo um pouco mais desacelerado. A voz marcante da loirinha Mette Lindberg ajuda imperiosamente na comparação. O vocal da charmosa parceira de Lars Iverson, que comanda o baixo e os teclados, é a alma do grupo. Às vezes rascante, como na ótima “Lady Jesus”, que abre pote o CD, às vezes aveludada, como na sensual e provocante “Satelite”, a blondie conquista fácil fácil o ouvinte.

A boa voz de Mette (olha a moça na foto ao lado) equilibra, na verdade, um disco de repertório que peca pela falta de variações na sonoridade. Se você tem, por um lado, os metais e teclado arriscando vôos funks e souls na tentativa de se criar um clima envolvente, como na graciosa “Hero”, ou esquentando a festa como nas bacanas “Around the Bend”, aquela da Apple, e na sensacional “Bad Fever”, por outro, o trabalho acaba ficando comprometido pela sonoridade um tanto repetitiva.

Essa sensação de mesmice atacou-me de forma incômoda lá pelo meio do CD, mas nada que me impulsionasse também a acionar o stop. Culpa talvez da falta de diversidade nos arranjos, sempre reféns dos citados metais e teclados e à sombra de um revivalismo que, usado de forma abusiva, acaba mesmo desgastando um projeto musical. De qualquer forma, considero The Asteroids Galaxy Tour uma das boas surpresas do ano, um bom ensaio para uma arrancada em direção à conquista de um público maior de terráqueos desse pobre planeta de nossa imensa galáxia.

Cotação : 3

Conecte-se à tour dos asteróides:

http://www.mediafire.com/?ymmwzzmmwzm ou

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quarta-feira, 8 de julho de 2009

Parceria mais que afinada

De um lado, um artista recluso, dono de uma pena fina e extrema sensibilidade para compor músicas tão estranhas quanto belas. Do outro, um produtor requisitado, competente artífice de hits grudentos. No meio, um dos cineastas ingleses mais cabulosos e originais dos últimos tempos. Os três, respectivamente, Mark Linkous, o cérebro por trás do Sparklehorse, Danger Mouse, o criativo do Gnarls Barkley, e David Lynch assinaram um projeto gráfico-musical que redundou no consistente Dark Night of the Soul (2009), um dos álbuns mais sinceros e bacanas do ano.

O “assinar” aqui é no sentido lato da palavra. A assinatura dos três está muito pulsante e evidente nesse projeto gráfico que traz fotos de Lynch e músicas elaboradas por Sparklehorse e Danger Mouse. Não vi o livro, somente fotos esparsas, algumas das quais ilustram essa resenha. As composições, por sua vez, caíram na internet depois que a gravadora desistiu, por motivos não divulgados, de prensar os CDs. E encheram meus ouvidos e, provavelmente, daqueles que gostam de música autoral e com estampa bem definida.

Dark Night of the Soul traz Sparklehorse e Mouse afinadíssimos, ampliando os laços musicais que já haviam testado com sucesso em Dreamt for Light Years in the Belly of a Mountain (2006), último álbum de Linkous. Os dois mantém no disco a identidade que os fizeram respeitadíssimos – cada um em seu campo – casando a programação eletrônica orgânica do engenheiro do Gnarls Barkley com a musicalidade complexa do mentor do Sparklehorse.

A programação eletrônica intensa, com barulhinhos, chiados, distorções criam texturas instigantes e em completa harmonia com o universo indie e sempre no limite do desespero construído por Linkous. Talvez seja isso que provoque a sensação de encantamento. É como se o cerebralismo de Mouse enquadrasse, de alguma forma, os devaneios do Sparklehorse. A mescla da arte dos dois encontra real equilíbrio no conjunto da obra, com o auxílio luxuoso de muita gente boa que participa do álbum.

Mesmo com esse equilíbrio o disco é desiquilibrado. Os autores da obra conseguem ser orgânicos em cada peça, mas não exatamente no repertório que oferecem, que vai de músicas mais palatáveis a outras que travam o cérebro. A fusão de um produtor racional com um artista viajandão produz momentos sublimes que podem beirar, inclusive, o pop. Casos de “Revenge”, música lenta e sensual, na qual o Flaming Lips rasga o coração do ouvinte, ou nas competentes “Jaykub” e "Everytime I'm With You", as duas com melodias acachapantes interpretadas com paixão por Jason Lytle, a alma do extinto Grandaddy.

Pop também, mas numa linha mais roqueira é “Little Girl”, uma música vibrante que conta com o participação fundamental de Julian Casablancas, do Strokes. O refrão é um achado sonoro. Boa pra cacete. Nessa linha mais pé no chão e “popular” está também "Daddy's Gone", na qual Mark Linkous divide o vocal com uma tímida Nina Persson, a voz feminina do Cardigans, numa música de doer a alma.

A tristeza, aliás, perpassa parte do repertório de Dark Night of the Soul. Escurte a curta e bela "Grim Augury", música bêbada na qual o casmurro Vic Chesnutt, dono de um timbre único, arrepia no vocal ao som de batidas secas e teclado espesso e hipnótico. Mas há também momentos mais insubmissos e enérgicos, a exemplo de "Angel’s Harp", onde um raivoso Black Francis, ex Pixies, arranha uma melodia meio alucinada com guitarras pesadas e distorções atacando nosso cérebro sem dó nem piedade. E de “Pain”, com Iggy Pop destilando sua insolência roqueira numa composição provocativa e bem mais "macho" do que se mostra em seu recente trabalho, Preliminaires (2009).

Dark Night of the Soul é, enfim, um álbum que ganha o ouvinte pela diversidade, arranjos densos e pela qualidade das composições. Um disco rico e memorável de músicos que tem algo a mostrar. A inteligência aqui, pode ter certeza, é a grande alma do negócio.

Cotação: 5

De bandeja. Sirva-se à vontade:

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domingo, 5 de julho de 2009

Inventor moderno

Em minha primeira viagem para Recife fui surpreendido pela sonoridade da cidade. O caos urbano, misturado ao cheiro indigesto do Capibaribe na linha fronteiriça que separa o Recife antigo da zona central, parecia inteiramente coadunado com o som que saía dos instrumentos percussivos que tomavam as esquinas naquela terça-feira de carnaval. Percebi que o recifense absorve com espantosa naturalidade o ritmo que vem da cidade e transforma em música para esquentar a alma.

Caso à parte no Nordeste, os músicos pernambucanos, a partir do exemplo de Chico Science, parecem ter plugado definitivamente, nas duas últimas décadas, suas antenas na contemporaneidade. De vez em quando aquela cena nos apresenta ótimas surpresas, artistas prontos para nos encantar. Eu fiquei devendo uma resenha sobre a estréia em CD de um desses novos e inquietos caras, Jam da Silva, que lançou no fim do ano passado o excelente Dia Santo (2008).

Para quem gosta de ler encartes de CDs até a última letra, o nome Jam da Silva não vai passar despercebido. Esse pernambucano é um dos percussionistas mais requisitados por artistas da MPB e já andou ciscando também mundo afora, emprestando seu talento para gente como a francesinha Camille, o combo internacional Massilia Sound System e o fantástico angolano Wysa, que aliás foi uma das atrações do último RecBeat.

Agora Jam da Silva resolveu mostrar em disco solo todo seu arsenal e bagagem musical. E olhe que esse conteúdo pesa uma tonelada, como fica bem claro neste Dia Santo. O pernambucano, que começou sua carreira musical tocando bateria e depois resolveu assumir o ofício percussivo, revela-se um inventor de sonoridades de mão cheia. O disco traz, em cada música e com a ajuda de muitas participações especiais, um impressionante mar de camadas sonoras, que tem como centro a percussão.

A mistura de texturas, de barulhinhos extraídos das ruas que ele grava em um notebook, de vozes capturadas no vento é evidenciada nas composições instrumentais do disco, como na esfuziante “Música Branca”, onde berimbau, gaitas, chocalhos e uma grande profusão de instrumentos parecem criar um efeito caótico, mas que, ouvindo com atenção, reverberam em uma música orgânica, moderna e contemporânea. Mesmo exemplo de “Macumba”, com seus ecos de carimbó e ritmos nordestinos azeitados por um tecladinho vintage.

Como os conterrâneos do Nação Zumbi, Jam da Silva deixa-se levar pela influência adquirida provavelmente em suas viagens pelo mundo e as traz para o território brasileiro. Em “Samba Devagar”, uma das melhores do disco, ele divide, cosmopolita, o vocal com o rapper angolano Soba, adicionando uma guitarra cool no contexto duro desse quase rap. O caldo sonoro engrossa e seduz na bacana “Dub das Cavernas”, com participação do francês Moussu T., com voz modificada por computador e embalada pela música eletrônica.

A música eletrônica, aliás, é parte importante mas não exatamente norteadora da construção de Dia Santo. Criador, ao lado de DJ Dolores, da Orchestra Santa Massa, que produziu o ótimo Contraditório(2002), Jam absorve bpms na linha do drum’n bass para arquitetar boas invenções sonoras, como é o caso da bela instrumental ”Capoeirando”. Tudo isso sempre com um acento de brasilidade que é o que, no fundo, dá todo o charme ao álbum. Ouça o aboio misturado a intervenções eletrônicas em “Congamix” e o batuque de “Agô” e confira. Uma estréia de arrepiar.

Cotação: 4

Santifique seu dia:

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ou

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