quarta-feira, 29 de junho de 2011

Bendita herança

Todos somos frutos de heranças, quer sejam culturais, genéticas, filosóficas e políticas. Somos o que somos porque antes de nós houve já quem moldasse o mundo à imagem e semelhança do homem. Sorvemos assim as características de nossas famílias e as influências que, de Platão a Bill Gates, mudaram com o jeito da gente se relacionar com o planeta e com o próximo. Na música, há quem tente negar essa inexorável verdade. Filhos de artistas famosos fogem ou subestimam o sobrenome com medo da inevitável comparação ou do menosprezo, por parte da crítica, da personalidade em detrimento daquela de quem os pariu. Outros entregam-se ao que é óbvio e exploram, da maneira mais saudável possível, o DNA que corre em suas veias. É o caso de Anelis Assumpção, ou Anelis, como preferiu ser chamada artisticamente a bela negra, que lança o bom Sou Suspeita, Estou Sujeita, Não Sou Santa(2011). A filha do iconoclasta, ou seria íconeclasta?, Itamar Assumpção, estréia em disco com um trabalho plural e vigoroso que reforça o bom gosto e a grandeza dessa artista que, tudo indica, veio para ficar.

Anelis canta “Passando a Vez”:



O nome de Itamar Assumpção(1949-2003) é recorrente aqui neste blog. Sou fã declarado e rendido do cara. O genial paulista mexeu e estremeceu com as estruturas da comportada MPB nas décadas de 80 e 90 do século passado, criando um repertório único, de assinatura própria, no qual o batuque, a dissonância e estruturas melódicas surpreendentes marcaram o circuito undergound naquele período e fizeram história. Anelis debuta expondo e assumindo de forma cristalina sua herança bendita. Disse em entrevista que está, assim, pagando uma dívida. E que bela dívida! E essa é emocional e concreta. Sou Suspeita, Estou Sujeita, Não Sou Santa só existe fisicamente com a ajuda dói dinheiro arrecadado com a venda da Caixa Preta(2010), box com a reunião de todos os CDS do Negro Dito, incluindo dois inéditos que Anelis ajudou a dar forma. Comprei essa caixa em São Paulo e acabei dessa maneira, orgulhosamente, colaborando também com o lançamento da estréia dessa afinada cantora e compositora.

A herança sanguínea , os genes são assumidos na dedicatória do álbum – “pela ancestralidade que me fez continuar”, assume no encarte – e, de cara, na forte primeira música. “Mulher Segundo meu Pai” é batizado pelo próprio Itamar, em resgate vocal, que faz dueto psicografado pela filha. O beatbox característico do revolucionário músico, o som do baixo repetitivo e marcante traz de volta, com beleza e energia, a sonoridade do seu autor. Bela homenagem de Anelis, que demonstra nas entrelinhas, que aprendeu, com reverência, a lição de Itamar. É uma das grandes canções do disco que, em análise mais detalhada, não se reduz felizmente a essa generosa sombra. Anelis tem personalidade suficiente para dizer: olha, existem ecos de meu pai em mim, mas tenho cá minhas próprias idéias. Afinal, a paulistana já está na lida há muito tempo, tendo já participado como backing vocal em vários discos de gente graúda da MPB, sem falar é claro, como integrante da banda DonaZica e do trio Negresko Sis. Daí a grande expectativa gerada em torno dessa estréia.

Escute “Mulher segundo meu Pai”:



A maioria das músicas de Sou Suspeita, Sou Sujeita, Não Sou Santa são assinadas por Anelis. E para desenvolver sua poética e sonoridade, a artista contou com um arsenal de peso de amigos aquinhoados durante sua evolução musical. A ficha técnica lista gente talentosa como Céu, Thalma de Freitas(parceiras no Negresko Sis), a revelação Karina Buhr e mais Curumim, Lurdez da Luz, Alzira E., Flavia Maia e o ator Gero Camilo. Uma constelação, enfim, que ajuda a dar ainda mais consistência a essa álbum que peca apenas pelo excesso de canções. São 17, contando com algumas faixas-bônus presentes apenas em mídias alternativas. Nessa lista, a artista vai do samba ao reggae, passando pela bossa nova, mantendo, contudo, um refinamento nos arranjos que terminam por dar uma perceptível unidade ao disco. A sonoridade é moderna, “cool”, como diriam os norte-americanos. A elegância se faz presente no exercício instrumental, com metais e base percussiva usados com inteligência, como pode ser sentido, por exemplo, no estiloso dub “Bola com os Amigos”, outra das composições com ecos mais visíveis de Itamar.

De levada mais latina, bolerinho desregrado com letra lúdica que explora tema caro aos ecologistas de plantão, “Amor Sustentável” conquista fácil o ouvinte. “Eu quero ter uma vida biodegradável com meu amor/consumir conscientemente o gozo e a dor”, diz a letra oportunista. O samba alegre e malandro “Passando a vez” é outra forte candidata a cair no gosto popular. As características mais pop dessas duas composições, contudo, não é regra. Anelis baixa o tom, explorando sonoridades mais densas a exemplo da jazzy “Secret” e do reggae “Neverland”, com a participação de Céu, essa última uma das mais belas e perenes do CD. Karina Buhr e Flávia Maia fazem coro na bacana “Sonhando”, de autoria da primeira, pernambucana revelação de 2010 com “Eu Menti pra Você”. Afrobatuque envernizado por metais eloqüentes é música que fica na cabeça. Assim como as lindas baladas “Alta Madrugada” e “Quaresmeira”, ode à delicadeza na qual Anelis divide os vocais com Alzira E., irmã de Tetê Espíndola. Sou Suspeita, Sou Sujeita, Não Sou Santa corresponde, enfim, às expectativas criadas. Não chega a surpreender, por tudo o que a paulistana já demonstrou até agora. Um trabalho bem resolvido, redondo, que traduz a alma forte e talentosa e o espírito de Anelis. Um disco com substância, desses que nossas mãos estão sempre procurando, mesmo imperceptivelmente, para colocar no toca-cd. Deixa tocar.

Cotação: 4

Não seja santo, entre na lista dos suspeitos:

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