sexta-feira, 28 de setembro de 2012

O quilombo do gringo de alma brasileira



O gringo Maga Bo: pesquisa dos ritmos afrobrasileiros
Tem Lia de Itamaracá com ciranda, Selma com seu côco tradicional, a embolada inventiva da dupla Peneira e Sonhador, o jongo mágico da Serrinha, o cacuriá da carismática Dona Tetê, a Chula, refinada pelo violonista Roberto Mendes, o frevo e maracatu de uma tonelada de fortes raízes pernambucanas, o zambê da loca potiguar, o siriri e o cururu trabalhados pela crueza encantadora da viola de cocho matogrossense, a catira do Goiás. Tem muito mais nesse Brasil multifacetado, que no passado desigual sempre guerreou contra a miséria fazendo música pro pé mexer, pra barriga esquecer a fome. Tantos ritmos que não caberiam, mesmo arrochados, nessa minha página fuleira. Som demais, uma riqueza restrita, infelizmente, na maioria das vezes, a guetos culturais, a casas de cultura e salvadores projetos oficiais. Herança africana, portuguesa, alemã devidamente moldada pela alma brasileira e que impressiona os gringos que pesquisam nossa passado musical. Um desses estrangeiros, o dj norte-americano de nome tupiniquim Maga Bo, que corre o mundo fisgando ritmos e batidas, mergulhou em algumas das sonoridades praticadas aqui. O resultado é Quilombo do Futuro(2012), um álbum com sotaque nacional, mas com um inegável tom multinacional.

Veja o clip de "No Balanço da Canoa":


Maga Bo é um desses muitos estrangeiros apaixonados pela eclética e complexa cultura brasileira. Clara rendição. Chegou em 1999 e, na virada do século, deixou-se ficar, presa de sua sede de arqueólogo de sons, seduzido pela música produzida nos quatro cantos do país. Entre uma discotecagem e outra, nos hiatos das festas em que trabalhava como DJ mundo afora, foi absorvendo batuques e transes, harmonias e ritmos, foi se preparando para fazer de Quilombo do Futuro uma obra sincera, verdadeira. Clara intenção. O norte-americano parece ter trabalhado com o propósito de fazer um disco com assinatura verde-amarela, como se tivesse sido idealizado por músicos do Brasil. Quem desconhece a origem do produtor é levado facilmente a achar que aquela obra é coisa nossa. Mérito de um artista que, sabiamente, manteve no repertório desenvolvido por ele, a essência, a alma e estrutura das sonoridades que explorou. E que soube ainda fazer parcerias certas nessa empreitada. O que se vê no álbum, principalmente, são os ecos de um país que se formou em terreiros, nos quilombos e nas senzalas, cultivando, mesmo sob a repressão policial e a intolerância dos brancos, as raízes africanas. Maga Bo tenta e consegue, muitas vezes, captar a magia da batucada afro brasileira.

A cor negra está por toda parte envolvendo a arte de Maga. Pra tocar tambor, pra falar do Brasil filho da mãe África, o artista cercou-se de uma pá de gente boa, aqueles que valorizam o batuque e o carrega no sangue. Outros magos como B Negão, que dá o ar de sua pegada na ótima"Tempos Insanos". Na missão, os dois convocam os deuses da percussão e da música eletrônica pra chamar pra roda, pra dança. Afrobeat, som afro brasileiro. O convite é irresistível e faz dessa faixa de abertura de Quilombo do Futuro uma síntese de grande parte que o ouvinte vai ouvir na sequência. "Pois se prepare então, se prepare que o pavio vai acender", avisam os dois. Aqui também está o engajamento, os toques politizados que fazem do CD um veículo para o protesto, para mensagens que vem do morro, das comunidades que vivem a margem da sociedade: "Espírito combatente, guerreiros do terceiro mundo. Sobrevivente no suor e na raça/(...)O povo com saúde e educação é uma ameaça". Os ecos da violência, as gírias e agonias da favela estão presentes ainda nos ferventes funks cariocas "O Neguinho", com a participação especial de Biguli, e "Piloto de Fuga", com sua letra direta: "Só piloto boladão tem que ter disposição/De Pajero ou de Corola a 120 por hora, nós capota mais não freia, estilho guerrilheiro".

Ouça "Tempos Insanos", com B Negão:

Os representantes do gênero funk carioca no repertório de Maga Bo não são exatamente o que de mais instigante traz o álbum. Refletem, contudo, uma opção inteligente do produtor norte-americano: a de investir nos ritmos nacionais sem abusar da eletrônica. Seus beats, completamente integrados a batucada, são utilizados com moderação, envernizando um som que já tem seu verniz e grandeza próprios. Talvez para não brigar com a sonoridade crua e a autenticidade dos ritmos afros. Nesse sentido, o bom ragga "Maga traz a Lenha", com o guianense Jahdan Blakkamoore no vocal, tem vibração roots e um casamento equilibrado de batuque e eletrônica. Melhor ainda são as canções que bebem direto na negra fonte do candomblé, quase pontos de macumba, como a deliciosa "Eu Vim de Longe" que abusa das palmas e atabaques para tocar a raiz africana. A participação de Rosângela Macedo com seu timbre aveludado agiganta a música. Cachoeira pura. Mesmo caminho da tribal "É da nossa Cor", homenagem a capoeira e a Mestre Camaleão, professor de Maga Bo nessa arte. É tecnobatuque, canto negro da cor do Brasil.

O DJ Maga Bo convidou músicos brasileiros para sua festa
De profunda cor brasileira também, o DJ vai até o Nordeste para pinçar um das mais bonitas canções de Quilombo do Futuro. "No Balanço da Canoa", que traz de volta Rosângela Macedo no vocal, é canto de lavadeira modernizado. Na linha do que já fez produtores brasileiros, como o talentoso pernambucano Dolores em sua eterna pesquisa dos ritmos populares tradicionais. Programação a reboque de zabumba, triângulo e tambores com letra regional. "É no balanço da canoa que eu tou peneirando/É no balanço da canoa que eu vou peneirar/Eu quero ver quem vem, eu quero ver chegar/ Eu quero ver quem brinca no meu arraiá", cantam as lavadeiras pós-modernas. Daquela região também vem a competente guitarra baiana(a mesma que marcou história no trio elétrico de Dodô e Osmar) de Robertinho Barreto, do coletivo Baiana System, que dá uma roupagem colorida à emocionante "Xororô". Tantos ritmos assim repaginados com eficiência ajudam a esquecer algumas derrapadas do álbum como os fracos sambões "Hurry Up" e "Immigrant Visa Part II", que resvalam para a típica tendência gringa de cair no samba de carteirinha, bem ao gosto dos turistas desavisados. No final das contas, e isso é admirável, o disco de Maga Bo rescende uma brasilidade traduzida com clareza e humildade, algo raro, para um olhar estrangeiro. Bom pra cabeça. Bom pro pé. Maga Bo tem alma brasileira, como seu bom álbum. Escute com atenção.

Cotação: 3

Visite o Quilombo do Futuro:

www.facebook.com/magabodj