domingo, 13 de março de 2011

Trilha com substância

No nordeste profundo, onde a paisagem árida mistura galhos secos, homens secos, tapetes de seixos, o azul amortecido pelo sol inclemente, no mundo descrito por Euclides e que parece ter parado no tempo. Ali, num outro Brasil, o sertão que vai virar mar, vi um dia um burro morto. A boca escancarada, cheia de dentes, o corpo avolumado pela morte, inchaço festejado por milhares de moscas que preenchiam com seu zunido o silêncio do nada ao redor, olhos duros, fitando quem passasse em frente. O burro morto é uma presença triste naquele universo onde o bicho representa resistência e trabalho. Fim da resistência. Pra quem é nordestino, a imagem cala. Vi o animal morto por uns instantes naquele nordeste profundo.

Veja clipe de "KalaKuta":



O burro morto que inspira pesar foi a mesma imagem que incitou também garotos paraibanos a formar uma banda instrumental com aquele nome. Que faz um som que também cala. Seguem o caminho aberto pelo pioneiro Hurtmold, paulistanos cultuados e de responsa, e pelos talentosíssimos matogrossenses do Macaco Bong, autores de um dos petardos mais aclamados pela crítica em 2008, o bem tocado e fantástico álbum Artista igual Pedreiro. Meninos atrevidos os da Paraíba, com cultura musical e potencial para fazer trilhas de filmes. E eles usaram aquilo que mais parece influenciá-los, a black music e o experimentalismo, para produzir com toda independência um disco surpreendente, trilha sonora de filme, chamado Baptista virou Máquina(2011).

Não assisti o filme, mas ele parece estar incluído naquele gênero mais moderno e interativo de obra orgânica, coletiva, na qual música, imagem, a cargo do cineasta Carlos Downling, e design gráfico, pilotado pelo incrível Shiko dialogam e se complementam. Na obra cinematográfica, Baptista vive num mundo cerebral, frio, onde as pessoas vivem para trabalhar. Um dia ele sonha nos prazeres que a humanidade está perdendo com sua sanha workaholic. Sonha com sexo, amor e diversão. Esse roteiro inspirou a música que inspirou as imagens. O resultado é uma trilha musical robusta, com timbres e matizes ricos que marcarão, com certeza, a carreira do grupo paraibano e já marca o ano de 2011.

Escute "Cataclisma":



O álbum do Burro Morto é o segundo da carreira. O primeiro, na verdade um EP, Varadouro(2009), já havia chamado a atenção dos antenados de plantão. Diferentemente do Macaco Bong, que faz um som mais stoner rock, os caras da Paraíba buscam, pelo menos nesse Baptista virou Máquina, no jazz, no funk, no afrobeat e no rock, o verniz para suas composições. E ousam com um conteúdo que não dispensa improvisações e até atonalismo. Em “O Céu acima do Porto”, que abre com impacto o disco, psicodelia e teclados setentistas servem a uma melodia forte, que ecoa em nossos ouvidos. Elementos funkies fazem a delícia de músicas como as bacanas “Transistor Riddim” e “KalaKuta”. Reparem, nas duas, no contraponto feito por guitarra e teclado.

Os bons instrumentistas do grupo (Haley Guimarães, guitarra, Daniel Jesi, baixo, Leonardo Marinho, saxofone e guitarra, Vitor Afonso, percussão, e Ruy Oliveira, bateria) exercitam seu lado jazzy em bons momentos do CD, como a instigante “Baptista, o Maquinista”, um jazzinho que, sem resistir, cai no samba e a animada “Luz Vermelha” com sua cama percussiva minimalista e ecos de nordestinidade. Mas, existem outras referências que deixa claro que a galera leva o trabalho de pesquisa musical a sério. E demonstra ainda que os caras querem sair do lugar comum, provocando nossos sentidos. A climática “Volks Velho” experimenta do nada fácil atonalismo sem passar vergonha. “Cataclisma”, por sua vez, traz elementos da música árabe numa das melodias mais bem acabadas do álbum. Enfim, é trabalho com substância que vale, mesmo pra quem não é fã de música instrumental, uma boa escutada.

Cotação: 4

Taí o instrumento para ouvir Baptista...:

http://www.4shared.com/file/yftuSJo0/DNA_Burro_Morto__2011_-_Baptis.html

Obras do ilustrador Shiko para o filme Baptista virou Máquina: