segunda-feira, 31 de agosto de 2009

O Método Uhuuu de experiências

Quando me deparei com Fernando Catatau(esse aí do lado) no corredor do teatro antes do show, chamou atenção aquela figura esquelética, de barba cerrada, andar lento e roupa displicente. Parecia um desses personagens podicrê que habitam as histórias em quadrinhos do maluquete Robert Crumb. Invisíveis braços abertos, cara de bons amigos, logo me aproximei dele para um contato rápido. Falar de psicodelia e de suas viagens sonoras. Não deu. O adiantado da hora não permitiu, mas do encontro ficou o sorriso afável dele e o rastro de minha única frase besta, soletrada antes de seus passos acelerarem: “Bota pra fuder!”. E ele botou.

Antes daquele show em Fortaleza, cidade natal do dito cujo, eu já havia virado fã do cara. Culpa, no começo de tudo, de um CD demo de Catatau e sua banda, a Cidadão Instigado. O álbum trazia cinco músicas com o verme daquilo que o artista carregaria dali por diante – o ano era 2001 – em sua carreira: uma tendência à fusão de ritmos e ao experimentalismo. Tinha rock e maracatu (um mais primal, cadenciado, diferente do praticado em Pernambuco e difundido para o Brasil graças a Chico Science) misturados fluidamente, eletroniquices e poética torta, moleque e popular, sem ser popularesca.

Depois aquele surpreendente trabalho, um pequeno ensaio, não demorou muito e Catatau deixou de seu um cidadão da aldeia Ceará para ganhar o Brasil. Perdeu-se e se achou cidadão paulistano. Cidade do tamanho certo para suas divagações e ousadias. Dava para se espalhar ali, deve ter pensado. Lançou dois trabalhos, o difícil O Ciclo da Decadência(2002) e o excepcional O Método Tufo de Experiências (2005), que o colocou no mapa musical da galera mais descolada e abriu as portas para trabalhar, como instrumentista, em vários projetos de gente disposta a fazer um som mais consistente, menos radiofônico. Puta guitarrista que é, hoje com certeza um dos melhores do Brasil, não lhe faltou convites e oportunidades para dar uma temperada em uma penca de álbuns de artistas bacanas como Cibelle, Otto e o coletivo Instituto, entre outros.

Paciente, Catatau gosta de burilar seus trabalhos solos à frente do Cidadão Instigado. É quando tem mais liberdade e pode investir no desenvolvimento de um som que ganhou uma cara mais definida a partir de O Método Tufo. Aqui, sua guitarra roqueira, que algumas vezes se aproxima da latinidade e sensualidade de Carlos Santana e em outras traz ecos da pompa e psicodelia do rock progressivo, se aliou – em momentos sublimes – ao brega para provocar os nossos sentidos e chamar a tenção de uma aturdida crítica. Tudo volta a se repetir em seu mais recente e um pouco menos inspirado álbum de nome singelo, Uhuuu(2009).

Vamos abrir um parêntese. Eu como contemporâneo de Catatau, filho de classe média numa Fortaleza ainda provinciana, imagino a equação possível na cabeça do artista. Esse rock com pitadas do brega, que ganha aqui outro nível e conotação, deve ter a gênese, deduzo, na infância cearense do cara. Houve uma época em que Carlos Alexandre, Waldick Soriano e Odair José (o bonitão da foto ao lado), entre outros expoentes da também chamada, nos anos 70, “música de corno” empesteavam as AMs com suas melodias e letras melosas. Muito coração partido, mulher infiel e choro na cama. Muitos hits nas rádios, companheiros nos bares de românticos pés inchados e aqueles verdadeiramente traídos.

Voltando a Uhuuu!. O título do disco pode enganar os incautos. Uhuuu! é um grito de guerra de surfistas, assumido também por roqueiros. E não podemos chamar o último trabalho do Cidadão Instigado exatamente de roqueiro, apesar do artista ter esse gênero como uma influência marcante. Até porque o resgate do brega romântico, com tintas e vigor renovado, volta a aparecer ainda mais depurado no disco. “Como as Luzes” é uma canção de amor com pegada brega, com direito a coro feminino e bateria características daquela música, mas que, de uma hora para outra, ganha um solo de guitarra manhoso e metais épicos, típico do rock progressivo. “Dói”, o nome não poderia ser melhor, eleva esse lado brega um nível acima, falando de sofrimento com uma camada de guitarra e teclado açucarado, sem falar no texto falado, um breque clássico do gênero que Catatau resolveu retrabalhar.

Mas, reduzir o cantor e compositor a esse mundo “brega rock” ou algo que o valha é uma injustiça e erro tremendo. Uhuuu! reforça também a tendência experimental da música do Cidadão Instigado, que é muito mais complexa do que pensa nossa vã filosofia. Em “Doido”, por exemplo, o som pode soar levemente brega em alguns momentos da composição, mas surpreende, num passe de mágica, quando as cordas da guitarra pesam um pouco mais ou quando vozes , sons e barulhos indistintos se misturam num emaranhado confuso, revelando uma faceta anárquica que a banda sempre exercita.

A anarquia e a provocação podem tanto estar na mistureba sonora que o Catatau cria, a exemplo da fusão de rock pesado e um certo ar circense vistos na intrigante “O Nada”, como quanto em suas letras surpreendentes. Quem, fã do artista e sua banda, não lembra das vacas loucas e dos urubus vorazes da cultuada “Os Urubus só Pensam em te Comer”, faixa de seu disco anterior. Em Uhuuu!, o cearense continua viajando sem medo de ser feliz e qualquer pudor em sua poética alucinada.

Na climática, “Radiação na Terra”, assume a gramática da ficção científica e tomzeniana, para a letra curta: “Vou comprar um óculos infraestelar só pra não ter mais que ouvir os terráqueos daqui cantando”. Em “Ovelhinhas”, rock com rajadas eletrônicas que se aproxima ainda mais da cultuada “Os Urubus só pensam ...”, um bando de ovelhinhas “pulam na cerquinha de madeira e do lado de lá desapareciam”. Já na ótima e roqueira “O Cabeção”, ao som de guitarras pesadas, o personagem da música promete tomar conta do mundo colocando, conectado a ele, um piolho espião na cabeça de cada terráqueo com a missão de “destruir todos os pensamentos e unir todas as gerações numa nova dimensão”. Quadrinhos puro.

No final das contas, Uhuuu! soa como uma continuação mais bem produzida de O Método Tufo..., mas sem o impacto e o frescor deste. Talvez porque a sonoridade proposta não seja mais nenhuma novidade. Mas,de qualquer forma, temos o bom e velho Catatau tocando um foda-se para a caretice e dizendo para o resto da humanidade “eu sou eu, nicuri é o diabo”, como diria Raul, ou numa tradução mais jovem guarda, "que tudo mais vá pro inferno”. E essa ousadia e desapego ao comercial faz um bem danado para a gente.

Cotação: 4

Uhuuu! pra você também:

http://rapidshare.com/files/267109332/Cidad_o_Instigado_-_Uhuu___2009_.rar

Quer conhecer O Método Tufo de Experiências, tente:

http://www.mediafire.com/?mjyuqw5yyzz

Gosta de guitarra? Vá no blog de Catatau:
WWW.fernandocatatau.blogspot.com