quarta-feira, 22 de julho de 2009

O céu que desaba sobre nós

Chove demais neste período do ano em Boa Vista. Água aos borbotões, copiosa. Tanta água cai, e tão insidiosamente, que percebi, invernada adentro, que a população da cidade tem uma relação amigável, consensual com esses minidilúvios. Uma espécie de política diplomática com o tempo instável, até porque não adianta fazer cara feia ou esbravejar porque ela vem desabonadora sem pedir desculpas, ensopando os desavisados, liberando guardas-chuvas coloridos, aglomerando gente debaixo de marquises, fazendo-se imperiosamente dona do dia e de nossa liberdade de movimentos.

A chuva faz a gente parar. E pensar. Refletir que somos reféns da natureza e que há um céu que desaba lá fora. Um céu tão imenso - maior do que o mar que nos aparvalha pelo gigantismo – e opressor que nos sentimos inexpressivos, prisioneiros inquietos nos pequenos e débeis espaços de concreto que nos abriga. A chuva que cai nos coloca em nosso devido lugar, seres humanos indefesos diante daquilo que é maior, incontrolável, sem qualquer poder de mudar paisagens e climas como fazemos em casa – senhores de si – com um controle remoto na mão. Não existe tecnologia que interfira no céu que desaba. Somos nós, sozinhos, e a água dona de tudo lá fora, ser e chuva em diálogo mudo.

Render-se à força da chuva é a solução mais sábia num lugar onda a abundância da água é realidade líquida em invernos amazônicos. Daí, imagino em minha vã filosofia, essa complacência respeitosa e ancestral do povo de Boa Vista com a chuva. Nesse relacionamento amistoso, todos dançam a valsa com ela, pianinhos, sapateando no toró. Abraçando a água para curar ressacas, com a moça molhando um pouco os seis voluptuosos para provocar suspiros, com o rapaz enfrentando, num gesto animal, gotas impiedosas da longa tempestade para vender virilidade aos amigos. Cena que se repete: a água seminal corre nas ruas, empoça avenidas e, sempre em algum lugar, encontra-se com o Rio Branco, o pai dos sonhos e paisagem inspiradora dos macuxis. Encontro de águas. E, no meio, nós.

Fui a uma festa num sábado. Chácara do Tomé a uns poucos quilômetros de Boa Vista. Lugar agradável, repleto de palhoças para abrigar os festeiros e festeiras espevitados, doidos para serem felizes naquela noite. E lá estava ela lá, intermitente. A chuva fremia a paisagem sem dó e descanso, desafiando a vontade de todos de se divertir. Mas, havia ali no fundo a complacência enraizada, a combinação tácita, subliminar, entre homem e água. E a cada segundo corrido ficava bem claro para mim: a enxurrada era mais uma convidada da festa, a mais comentada e reverenciada delas. Irmã fiel da lama e poças que adornavam toda a área da chácara, do estacionamento pastoso e escorregadio ao gramado quase invisível em volta da pista de dança.

No começo da noite, a chuva dominadora lavava e levava as moças, entre gritinhos animados e enconjúrios, a enfiar penosamente os saltos elegantes no lamaçal, instigava os homens a arregaçar as calças engomadas, tentando evitar o inevitável. Uma resistência venal que logo dava lugar, com a ajuda de goles generosos de cerveja e uísque e expectativa alvoroçada de namoro e momentos de luxúria, a uma entrega sem cerimônias à toda a água que imantava o lugar.

E aí a festa se fazia desapegada. Entregues ao prazer das águas e dos risos, homens e mulheres caíam lúdicos no forró da chuva. Tiravam o excesso de umidade dos olhos para enxergar melhor a noite e o alvo escolhido, e, assim, como moleques brincando ao relento, perdiam a elegância sem culpa. Eles corriam de uma palhoça para a outra, pescando as gotas vadias ou andavam em passos lentos, deixando que a pele se banhasse frivolamente. Elas bailavam no meio da chuva, escorregadias, para se secarem depois resolutas e fingindo carência nos braços sempre abertos dos namorados e das amigas. Desse modo companheiro e compreensivelmente servil, eles e elas cortejavam promiscuamente a chuva, de bem com a vida numa Boa Vista chorosa, prenhe de água e promessas de felicidade.

Fotos de chuva em Roraima: Thiago Orihuela

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