quinta-feira, 27 de outubro de 2011

De costas para o sistema

Quando me vi de repente tomado pela maré de notícias sobre as revoltas protagonizadas por uma jovem população européia parei, diante da minha antiquada TV de 21 polegadas, num estúpido átimo de aturdimento. Como se tudo o mais em minha volta também se visse suspenso. Talvez porque envolvido pelo silêncio das horas que satelizam aqueles jornais de televisão da madrugada feitos para insones e viciados em informações. Ou talvez por aquela típica leseira de quem começa a perder a batalha contra o sono. Foi assim um dia desses. Manifestações pipocando no velho mundo contra a crise econômica, a falta de emprego, a truculência de políticos arrogantes. Em todas elas havia uma boa parcela de irritados jovens, cheios de vigor e caras e bocas na defesa de suas bandeiras. Não como no Maio de 1968 em Paris, até porque parte daquele romantismo sucumbiu diante de uma certa lógica e frieza de como a maioria passou a encarar o mundo. Mas, eles estavam lá, belos, se posicionando, agrupados em massa, como um corpo vivo. E fiquei feliz, depois do espanto, por aquela demonstração de proatividade com o que os incomodava. O velho continente costuma dar lições mais fortes e impactantes de insatisfação, de como se colocar diante da perda da inocência corrompida pelo capital. Os europeus têm cultura, estofo, para isso. Pensando nisso, voltava a uma recorrente elocubração: viria de lá a revolução musical, aquele inesperado movimento a esquerda para sacudir os alicerces da estagnação musical que parece ter tomado conta da humanidade. Tem quem ache que o WU LYF seja isso. E aqui, após tantos desvãos, chegamos ao foco desta resenha.

Assista ao clip de “Dirt”:



Isso que parece um erro de grafia é uma sigla. Das mais canhestras e propositadamente cabulosa. World Unite Lucifer Youth Foundation, o WU LYF. Uma banda inglesa, da mesma Manchester das icônicas Stone Roses e The Smiths, que anda assombrando vários críticos pelo rompante radical de fazer música e por suas letras ácidas e com forte acento político. “Revolucionária”, arriscou um desses resenhistas puxando um coro, para mim, um tanto precipitado. Não sinto que seja tudo isso. O que o quarteto britânico faz é captar aquele sentimento de inconformismo que preenche os jovens, o mesmo que os fazem sair para a rua para reclamar os temas mais caros a um mundo em crise. Capturam o zeitgeist, aquele senso coletivo que se torna quase concreto e imanta toda uma sociedade. O crítico Alex Ross escreveu em seu livro Escuta Só, do Clássico ao Pop: “Em qualquer momento da história, existem alguns compositores e músicos criativos que parecem deter os segredos da época”. É por aí. O que se ouve em Go Tell Fire to the Mountain(2011), título do primeiro trabalho desse grupo, não é revolução, nem é exatamente novo. É uma música raivosa, incômoda, difícil de ser consumida. Há aqui um paredão sonoro composto de um vocalista gutural, Ellery Roberts, responsável também pelo órgão, instrumento barroco em diálogos estranhos com o baixo de Tom McClung, a guitarra de Evans Kati e a bateria tribal de Joseph Manning, sugerindo um som anárquico, algumas vezes claustrofóbico, mas quase sempre e provocador.

Em meio às vociferações de Roberts, gritos que se tornam uma das marcas registradas de Go Tell Fire to the Mountain, existe ecos do krautrock, do post rock e do post punk ou seja, tudo aquilo que de moderno e pouco traduzível tem o rock em suas mais radicais tentativas de renovação do gênero. Em panos limpos: muita barulheira e o uso de elementos antigos com uma roupagem contemporânea numa tentativa de se criar o novo. Em “Dirt”, que considero a melhor composição do disco, há um batuque introdutório, uma percussão com tintas africanas que reforça uma melodia nervosa, guerrilheira, como as imagens do clip oficial(acima) da banda que traduz muito bem o espírito da canção. Como uma granada explodindo próximo de nossa epiderme e de nossos agoniados tímpanos, essa música convoca o ouvinte para uma batalha, para uma franca resistência aquilo que entorpece a alma. E isso é, claramente, um fazer político. Saída da boca do vocalista do WU LYF, essa convocação tem compreensivelmente um vigor quase panfletário. Soa como o retrato de uma juventude desencantada que usa o rock e o verbo para se comunicar com o mundo. E a escolha por essa “poética”, por um repertório mais politizado é outra das características marcantes desse álbum sem apelo popular e que tem tudo para virar cult.

Esse veio político é centrado, nas letras, numa crítica mais genérica à humanidade, não a temas conjunturais específicos das terras britânicas ou qualquer outro continente do planeta terra. Como o ímpeto capitalista, e a força da grana, resgatando aqui Caetano Veloso, que constrói e destrói coisas belas. “Tem crianças nas ruas, vendo o concreto se transformar em ouro/Você é tão jovem, mas essas cidades o fazem envelhecer”, canta Roberts em "Summas Bliss". No início do disco, a banda já entregava a senha dessa crítica engajada ao sistema econômico que atropela tantos interesses comuns e fragiliza uma já castigada e pouco valorizada espiritualidade. “Quantos dos seus garotos temem a morte?”, questiona a banda em “LYF”. É o discurso hippie reformado, adaptado aos quentes dias de hoje. Os gritos de guerras repetem-se durante toda a barulhenta trajetória desse estranho, mas conseqüente álbum. A ponto mesmo de se tornarem diretos e impactantes. Papo reto. “Coloquem suas armas e cantem conosco essa canção”, sugere a letra da bacana “We Bros”. E para isso, complementa o quarteto na já citada “Dirt”, resumindo de vez essa batalha contra um declarado inimigo, “não importa o que eles dizem, o dollar não é seu amigo”. Enfim, um bando de jovens resolvem deixar de lado canções açucaradas sobre boys and girls apaixonados para botar pra fora essa revolta adquirida e alimentada em tantos anos de desconcerto e de falência de um sistema(olha ele aqui de novo) que esqueceu, em suas contas, de contabilizar o que há de mais humano em nós.

Ouça “Cave Song”:



Mas, claro, são apenas gritos de revolta que fazem um grande disco. Musicalmente, as composições são, numa comparação meio absurda, como aquelas engenhocas de transmissão de mensagens dos filmes da série Missão Impossível: parecem querer se autodestruir em poucos segundos. Soam quase toscas, mas têm poder em sua urgência. Mesmo quando tentam ser mais comportadas, como nas mais lentas “Such a Sad Puppy Dog” e “14 Crowns for me and your Friends”, na qual o órgão cria uma atmosfera glacial, perturbadora, pecam por uma ansiedade desenfreada. Essa música rende-se algumas vezes à anarquia, chegando a um paroxismo que lembra o combo Mano Negra, a exemplo de “Cave Song”. Dito tudo isso, você pode perguntar: “E aí, o disco é bom?”. É mesmo, lembrando de um ótimo jargão publicitário, toda essa Brastemp? Tive uma primeira impressão negativa do dito cujo. Não gosto de bandas que se escondem atrás de siglas maneiristas, de muito barulho e gritaria para impor uma idéia. A melhor idéia musical, sempre acreditei nisso, é ser claro nas intenções mesmo que ela esteja amparada numa contundente parede sonora. WU LYF é como um rascunho de uma arte que tenta se desenhar ideologicamente, que busca identidade própria. É um projeto em andamento, aquilo que os americanos chamam inteligentemente de work in progress. No que todo aquele barulho vai se tornar, só o futuro dirá. Mas, até lá vale ouvir os caras, até porque é sempre bom dar atenção a quem foge da obviedade. Afinal, é assim que caminha a humanidade.

Cotação: 4

Na base da brodagem, vá lá antes que o sistema destrua o link:

http://www.mediafire.com/?b5xxi7d2vn8qrkf

domingo, 16 de outubro de 2011

Armadilhas do amor

O quanto de nitroglicerina pode conter uma paixão? E o quanto de segredos não revelados, ocultos na profundeza das retinas? Muitas das histórias, das pequenas rusgas, de compleições e incompatibilidades que um relacionamento amoroso carrega e que, muitas vezes, descarregam em um buliçoso fim, cabem em uma canção. Pélico, um paulistano de peito aberto, experimentou contar casos de amor, romances, com um desprendimento à flor da pele. O resultado é Que Isso Fique entre Nós(2011), uma espécie de delicado diário de amores perdidos. Essa complexa trama que une duas pessoas é o objeto de dezesseis composições intimistas que deságuam em um álbum em que palavras diretas e sem rodeios são acompanhadas por arranjos que as vestem em trajes mínimos, desvelando por completo o coração do autor. Trespassado, fudido, rendido ao inevitável. Um coração à mostra. É um álbum sobre a dor de cotovelo, disse o cara em uma entrevista. Mais do que isso: é o retrato de um sentimento que, repleto de delícias e armadilhas, ajuda a mover uma humanidade inteira.

Veja vídeo de “Recado”:



Pélico é paulistano de dois discos. O primeiro, “O Último Dia de um Homem sem Juízo”, foi gravado em 2008. Mais rocker, mais gritado, mais irônico, revela quem o criou. Depois, confidencia o mesmo, resolveu escarafunchar as coisas ditas, escritas e cantadas por Lupicínio Rodrigues, Ataulfo Alves, Orlando Silva(terá sido deste os “erres” cúmplices e bem pronunciados pelo artista no álbum em questão?), mestres dos imbroglios do amor. Contaminou-se. E o vírus dos amores mal resolvidos, dos casos afogados em copos de cachaça, revelados com letras firmes por aqueles ilustres antepassados, foi inoculado nele. Resolveu inspirar-se em sua própria trajetória de vida e a de amigos próximos para enfileirar mágoas e lições de sucumbidos relacionamentos em Que isso Fique entre Nós. O título/expressão é a melhor tradução deste segundo trabalho de Pélico. Assim como aquilo pronunciado e encerrado em um caso de amor, transmitido com zelo para um único ouvido, com endereço certo, somente para quem interessar possa. Aquilo que o resto do mundo, por favor, não precisa saber.

Esses diálogos da paixão são destilados em canções que parecer soar lineares em todo o disco, assim como o amor, plural que é, provoca coincidências. Como capítulos de um mesmo caso amoroso alinhavado por uma humana pulsão. Pelo desejo de entender o que sepultou o relacionamento. Que redunda no medonho julgamento que busca culpas e afunda tanta gente naquele mergulho dolorido popularmente conhecido como “dor de cotovelo”. Daí a definição sugerida por Pélico. Como em “Sem Medida”, de linda melodia e arranjo delicadíssimo, sobre um homem que tenta esquecer a amada: “Quem me dera ter a coragem de te negar/Mas, não se mede sensatez com você”, sublinha o cantor de voz grave, de canto sem a mesma personalidade dos versos. Na tocante música que dá titulo ao CD, a visão exata do relacionamento depois do vendaval, num longo desfile de adjetivos que definia o casal: “Não éramos tão tolerantes assim, não éramos tão perigosos assim, não éramos tão fiéis assim”, e por aí vai. Em “Tenha Fé meu Bem”, o amor virou saudade dos dias em Mongaguá. “Lembra da gente sentado olhando o mar?”. Cena de cinema com trilha de Henry Mancini.

Escute “Não Corra, não Mate, não Morra”:



Todos esses romances comuns, cotidianos são expostos com letras diretas e encantadas. Essa coisa de abrir o peito e encantar não é pra qualquer um. E Pélico tem esse dom. Talvez também um fruto da simbiose ocorrida entre ele e os mestres da MPB que o impulsionou a ser assim tão intimista. Alimentado também é claro por seu talento nato. O paulistano sabe misturar letras, provocar o ouvinte. Nessa obra sobre o amor, brinca com os contraditórios como os versos da quase brega “Levarei”: “De todas as tristezas que tive na vida/Nenhuma me deu tanta alegria como essa”. Incorporando Lupicínio, solta o dramático e teatral que há nele, caprichando no português, na ótima “Recado”, uma das melhores do disco: “Da liberdade que sucumbe as leis/Nem anjos e santos de pura bondade pra te perdoar”. A palavra é bem tratada ainda na sensível “O Menino”, uma das poucos em que o amor não é verbo recorrente: “O menino fugiu, se perdeu nessas ruas que sabia de cor/ As palavras ardiam, soavam mais duras do que seu pai lhe ensinou”.

Mas não é só do cuidado com as letras e seus verbos que brilha Que Isso fique entre Nós. Existe toda uma bem tramada costura de instrumentos que soa, num primeiro momento, minimalista, mas que vai ganhando peso e sentimento a cada audição do disco. A arte do produtor Jesus Sanchez, integrante da bacana Los Piratas, e os arranjos de sopros e violinos, assinados pelo próprio Pélico e por Bruno Bonaventure, responsável também pelo piano e sintetizadores, ajudam a fazer a diferença. E ainda é preciso fazer justiça com João Erbetta e Regis Damasceno (guitarra), Tony Berchmans(Wurlitzer) e Richard Ribeiro(bateria), músicos mais constantes no trabalho. A inteligência dos arranjos fica evidente, por exemplo, na hora em que os sopros são usados na construção do clima das músicas, como em “Vamo Tentá” e “Sete Minutos de Solidão”, as duas com leve e adorável acento brega, ou ainda na mistura do som típico do western spaghetti com o tango da muito boa “Não Corra, não mate, não morra”, que encerra o álbum com chave de ouro. Pélico e suas confidências amorosas são uma grata surpresa, um disco para nenhum apaixonado, e não só eles, botar defeito.

Cotação: 4

Sinta o amor de Pélico:

http://www.mediafire.com/?o7cdidp7i6c2up7

quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Pra nunca mais esquecer

A voz agoniada, angustiada negava a letra da música acompanhada por um arranjo que começa desolado até cair no refrão quase gutural, primitivo. “Eu estou tão feliz”, cantava aquele rapaz que parecia a beira do desespero uma canção bipolar que soou como um tapa em minha cara naquele início de década. Era 1991. Ainda tinha uma vitrola, um 3 em 1 (toca fita, rádio e toca disco num só e volumoso aparelho, alguém lembra?) guerreiro, que já tinha animado muitas tertúlias, aqueles festinhas de amigos marcadas de última hora e que sempre davam o que falar no dia seguinte. Naquele ano, um novo velho som mexeu com milhões de pessoas no mundo inteiro. O rock sem rebeldia, escravo da ditadura das emissoras, se rendia então ao pop. Aí, aquele cara de voz rasgada e doída tomou as rádios mudando essa história, abrindo as portas para uma tribo formada por bandas garageiras, despojadas, com uma pegada suja e pesada. Misto de punk, com hardcore, recheado de microfonia, guitarras no talo e letras diretas. Era o grunge de Kurt Cobain, do Nirvana, que lançava um disco que se tornou um capítulo rico e marcante da história do rock and roll. E isso no mesmo prolífico ano em que Pearl Jam e Soundgarden colocaria no mercado duas outras belas e capitais obras daquele movimento, respectivamente Ten(1991) e Badmotorfinger(1991). Mas, foi com Nevermind(1991), incensado álbum que completa 20 anos, que o Nirvana chegaria ao nirvana e o rock retomaria sua rebeldia.

Ouça "Lithium":



Eu confesso que não estava muito preparado para ouvir Nevermind ou a zanga de Cobain naquela época. Nunca fui um fã declarado do rock mais raivoso, ainda que umas deliciosas velharias gravadas nos anos 70 e que embalaram minha juventude, como Deep Purple, Led Zeppelin e Rush, continuassem merecendo toda minha atenção e carinho. Estava num momento de culto ao rock alternativo, feito por bandas que a maioria dos meus amigos e, claro, a mídia, insistiam em deixar injustamente no limbo. Era um som torto, trabalhado na contramão dos hits vigentes. Encontrava-me, no período, maravilhado com as possibilidades que o gênero musical propunha com grupos como Pixies(aliás, uma das maiores paixões do Nirvana), Talking Heads, Screaming Trees, Pogues, Guided by Voices, Sebadoh e outras formações honestas que também fizeram história e que de alguma forma ajudaram o grunge a ser o que foi no início dos 90 do século passado. A provocação, a sinceridade, o despojamento e as guitarras distorcidas daqueles antecessores estavam presentes numa fusão bruta no segundo disco do Nirvana, um fenômeno, que contava ainda, na linha de frente, com um cara de alma mergulhada num turbilhão de angústias, medo e contradições.

Assista Cássia Eller cantando “Smells like Teen Spirit”:



Cobain era a força motriz e translúcida do Nirvana. O cara bonito, elétrico, de profundos e inquietos olhos azuis, vestia-se de camisa quadriculada, aberta, com uma camiseta por baixo e um jeans sujinho, rasgado, estilo que se tornou o uniforme do grunge. Essa expressão, aliás, não se sabe se é um sinônimo para sujo ou uma corruptela da palavra garagem. Uma coisa e a outra, contudo, definiam bem o espírito dos meninos da banda. Imagino Cobain sempre com a mesma camisa quadriculada, acordando tarde e indo pra rua beber com os amigos sem o banho tomado. Penso nele ao lado do baixista Krist Novoselic e do baterista Dave Grohl incendiano uma garagem com seus acordes urgentes, plugados em uma música que eles regurgitavam e depois sorviam e regurgitavam novamente pelo mero prazer de estar no meio de toda aquela eletricidade sonora. Ou seja, os via como um bando de garotos cheios de energia e sem muito interesse de se tornar uma referência do rock. Um pouco com a filosofia punk de mandar tudo pro inferno, incluindo a mídia. Um muito com a vontade de dialogar com pessoas da mesma idade e fazer os ouvintes subirem pelas paredes, no ritmo da guitarra e dos berros.

Cobain é assim como um Renato Russo mal comportado. Com a diferença que sua poesia não tinha a mesma virilidade da escrita pelo colega brasileiro. Sabia falar com seus párias, utilizando-se de um verbo curto, pontuado, como se fosse palavras de ordem. E a galera, que não queria pensar muito e só bater cabeça, respondia: “Sim, isso acontece com a gente”. Acredito que a explosão de Nevermind, que entra fácil fácil na lista dos melhores dos anos 90 e também nas grandes obras do rock do século passado, tem a ver um pouco com isso. Em 1991 eu não era mais jovem, pelo menos na idade. Mas, fiquei encantado pelo disco e por um motivo que, acredito, ajudou a fazer daquele disco uma incontestável obra-prima: a entrega de Cobain. O que conta é a sinceridade do que o cara canta. Aquela angústia desbragada que senti em “Lithium”, a força dramática do hino “Smells Like Teen Spirit”, a cadência e o peso bem medido de “In Bloom”, com Cobain derramando seus versos bêbados, que fazem também a força de uma das minhas canções preferidas, “Come as You Are”, com seu impagável riff de cordas. Lembro de um amigo daqueles idos, mais novo que eu, que nem inglês falava, cantando desafinado, a plenos pulmões e com sentidas almas e concentração, “Drain You”, ou de outro colega imitando com mãos nervosas e baquetas invisíveis a bateria matadora de Grohl em “Territorial Pissings”. Lembro também de uma enlouquecida Cássia Eller no Rock in Rio, em 2001, cantando com garra e mostrando os peitos debaixo da camiseta surrada “Smells like...”, depois de dizer para a multidão que seu filho pequeno, de poucos anos de idade, adorava a música. Tudo isso me fazia pensar que Nevermind tinha um poder congênito, a magia daquilo que podemos chamar de clássico.

Nevermind é assim, de cabo a rabo, um disco repleto de hits, belezas e magias insuspeitas. Um cara de confusa psiquê que grita como se o mundo fosse acabar no dia seguinte, que chora como que quisesse compartilhar sua dor com o resto da humanidade, com coragem suficiente para entregar tudo isso de bandeja para o ouvinte e que, depois de se tornar ídolo, se matou. Composições trabalhadas com extrema inteligência pelo produtor Butch Vig, o quarto homem da banda e peça importante nessa história toda, que domou a virulência incontida de Bleach(1989), primeiro e anterior fruto do Nirvana, equilibrando em doses democráticas raiva e suavidade. Canções com melodias fáceis, riffs grudentos, tocadas como se numa garagem. Vinte anos depois, o álbum mais tocante do Nirvana nasceu para ser disco de cabeceira. É atemporal em sua franqueza. Um trabalho que ainda vai fazer merecidamente a cabeça de muita gente que tem o rock no coração. Esse eco ainda será ouvido por longas décadas. Há quem ache que depois de Nevermind nenhum grupo lançou uma obra tão significante. Não sou tão radical, mas essa obra-prima tem argumentos suficientes para que se pense assim. Agora, com licença, vou ali colocar meus fones de ouvido e me deixar levar mais uma vez por esse discaço.

Cotação: 5

Comemore com o Nirvana:

http://www.mediafire.com/?ncntmznd4bn

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Verbo soberano

Desse eu de cara com Chico caminhando no calçadão do Leblon, e ele, por um motivo qualquer, me chamasse a atenção, devolveria ao seu azul e manso olhar o meu melhor sorriso, cheio de verbos nos entredentes (palavra que não há), costurando em silêncio, na respiração breve e suspensa, as entrelinhas do não dito. E seguiria feliz com o encontro assim mesmo, sem dizer nada, com medo talvez de dizer a palavra errada, ele que é tão cheio das mais certas delas. Penso sempre em Chico vagando na beira mar carioca e na minha memória, entre um e outro susto diante da poesia construída por ele, como imensos e sólidos castelos que visito de quando em vez no som provocado pela nostálgica agulha de diamante riscando a bolacha preta em seus volteios mágicos. E quando me deparo com o ídolo num novo disco, depois de toda aquela intimidade que criou em meu coração, fico com medo de que ele tenha errado a mão das palavras. Fico amuado sem querer ouvi-lo, ao mesmo tempo em que a vontade, maior do que a gente, leva-me em direção ao aparelhinho digital para dessa forma revisitá-lo e quem sabe conversar com ele, como antigamente, deslizando no mar de palavras e poesias.

Veja vídeo de “Sinhá” com Chico e João Bosco:



A gente que viveu uma vida mais demorada e tem algum tempo e histórias para contá-la fica assim meio perdido diante de quem é autor de parte da trilha sonora que embalou tantas horas vividas. E aí, estamos num outro momento, mais maduros, provavelmente menos românticos, com os antigos sentimentos dilapidados pela rudeza da humanidade, pelas torres gêmeas implodidas, pelos amores naufragados, pelos tsunamis devastadores, mas, mesmo com toda Brahma e toda lama, ainda vivos e esperançosos. Já passado o pesar da ditadura, os suspiros das alcovas, o drama de Genis, a intempestividade de Anas e Bárbaras, consumado o tempo da gente, Chico Buarque retorna com Chico(2011). Não sendo os mesmo admiradores e apaixonados de antes, não tendo a mesma condescendência, teríamos a mesma reação diante da nova obra? Se já perdemos a noção da hora, será que aqueles belos seios ainda estão em nossas mãos? Difícil responder. Difícil comentar o trabalho de quem parece ter se doado tanto a um universo musical sem comparações e que está tatuado em nossa alma, como aqueles barrocos dragões coloridos que envolvem os braços e seguem por toda a gravada epiderme como um manto a nos proteger. Chico é grande. Seu repertório tão grande quanto ele. Por isso, o cara não me surpreende mais e também não exijo mais, justiça seja feita, do que ele me deu.

Tudo parece, assim, déjavù nesse novo Chico. Tudo parece Chico, o bom e velho Chico. Tudo parece datado, deitado na cama das velhas notas musicais cansadas, mas bem acomodadas, bem casadas, como num bom e velho Chico, senhor soberano de rimas e poéticas completamente assentadas, como equações ricamente elaboradas e cheias de si. E leia isso, por favor, como um elogio. O que se vê em seu mais recente álbum não é um artista renovado, mais um cantor e compositor que se renomeia, que brinca com um novo vocabulário tirado de páginas da internet e do cotidiano corriqueiro dos jovens, e também que se vê no espelho, apaixonado, fazendo declarações de amor ao cotidiano. Em “Tipo Baião”, faz troça com a linguagem dos mais moços, repetindo a expressão “tipo” para cantar um romance “tipo festa sem fim” prometido por uma jovem cheia de vida e amor pra dar, numa canção vestida como um baião moderno. Na belíssima valsa “Nina”. A moça da vez namora o homem da poesia pela internet, explicando que ele pode ver, em um mapa na tela, “a cidade, o bairro, a chaminé da casa dela”. Toque novo numa poesia que nunca perde o lastro de desmedido encantamento como em seu fecho espetacular: “Nina anseia por me conhecer em breve, me levar pra noite de Moscou. Sempre que essa valsa toca, fecho os olhos, bebo alguma vodka e vou”.

Escute a valsa “Nina”:



O Chico que não mede as palavras passeia pelas ruas do Rio, como eu sempre o vejo. E eu o vejo assim passeando e observando o mundo e as pessoas para fazer registros em seu “Querido Diário”. Nessa música, que inicia o disco, Chico Buarque, como fez em suas últimas obras, destila sua apurada poesia num exercício musical e estético que prescinde até de refrão. A música, cuja melodia parece que já ouvi em algum outro momento de Chico, e isso nem importa muito, traz frases enigmáticas como a do cão recolhido na rua e que de “hora em hora me arranca um pedaço” ou impactantes como na passagem em que ele, falando em religião, pensa em “amar uma mulher sem orifício”. Esse artista que faz as palavras crescerem faz crescer também a memória, exibindo filmes passados entranhados nas novas composições. O Chico jazzístico da lúdica “Essa Pequena” já mostrava os mesmos dentes em “A História de Lily Braun”, música de O Grande Circo Místico(1983). O sambinha “Barafunda”, por sua vez, reprisa em um certo momento o amor de Chico pela escola de samba Mangueira, numa levada que lembra, sem tanta inspiração, a verde e rosa “Chão de Esmeralda”, do disco As Cidades(1988).

Esse Chico, com certeza, não vai ser mais um grande disco de Chico de minha vida, ainda que num ou noutro momento, como nas vigorosas “Se eu Soubesse”, em dueto com a namorada Thais Gulin(ainda é ou estou desatualizado?), e “Sinhá”, bela parceria com João Bosco, incite minha paixão. Não vai embalar memórias, como aquelas de outros tempos, que ainda se arrastam solenes diante de mim sempre que meu coração pede arrego. Mas, é um Chico autêntico em toda sua carga poética, com o DNA, a identidade de quem faz música como quem risca mapas de orientação. Ele sabe dos caminhos e, mesmo que não tão iluminados, vale sempre enveredar por eles. Todos nós devemos esse passeio por suas sendas. Sempre vai existir algo a aprender.

Cotação: 3

Não fique vendo a banda passar, linke-se:

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ou

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P.S.: Texto dedicado ao meu sobrinho Marcelo, que sempre gostou de música boa

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

Mergulho no rock direto

Aquela incerta agressividade e o cheiro permanente de cachaça no ar, provocando conversas ao pé do ouvido, o constrangimento e seu efeito silenciador corroendo a amizade de tantos anos, como aquele cilindro na ponta do cano da arma, aquele tiro contra o próprio peito. Toda a violência arde, mas antes que tarde é bom que se diga nesse caso, para que não se faça julgamento precipitado: nem toda a violência é planejada. O tiro contra o próprio peito acionado pelo involuntário, palavra bala saída da boca ácida de Craig Nicholls tinha a ver com Asperger. A síndrome. A Síndrome de Asperger que quase pregou o cara na cruz. Suas brigas e explosões, os tabefes no assustado fotógrafo, imagem que caiu nas graças da imprensa, os vitupérios e a dificuldade de se comunicar, a obsessão por um assunto determinado, mas também pela música, o encanto desmedido pela música, tudo tinha a ver com Asperger e com Craig Nicholls. O vocalista do The Vines era homem de inesperados extremos, do radical vigor do álbum Highly Evolved(2002), que deixou meio mundo de calças arriadas, ao rock aberto, que deixou meio mundo decepcionado, no atual Future Primitive(2011). Tudo isso é o cara. E tudo isso vale o seu tempo.

Veja o clipe oficial de “Gimme Love”:



No tempo em que Highly Evolved foi lançado, Strokes e Hives eram duas das bandas que polarizavam a atenção de milhares de jovens nos quatro cantos da Terra. Momento rico do rock, quando guitarras distorcidas e no talo pegaram a molecada de assalto. O disco dos australianos comandados por Nicholls era cru, garageiro, endiabrado como aquele gênero musical deve ser. De 2002 para cá, The Vines foi perdendo o vigor, tropeçando em trabalhos menos inspirados e de insuspeitada leveza, como o bacana Winning Days (2004), e o apascentado e não tão bom assim Vision Valley(2006). E trombando também na maldita Síndrome de Asperger, que, mesmo sem impedir o vocalista da banda de encarar o mundo, o deixava algumas vezes desarmado diante da moral vigente. Até porque o mundo é realmente cruel com quem desenvolve comportamentos inconstantes. Com esse quinto trabalho, o anterior é o risível Melodia(2008), os australianos dão um passo a frente e revelam uma maturidade e serenidade que nenhuma síndrome pode abafar.

Future Primitive foi achicalhado por boa parte da crítica institucionalizada. É, o mundo continua cruel com quem desenvolve comportamentos inconstantes. Nicholls(o segundo da direita pra esquerda), muito mais calminho que antigamente, pelo menos até a próxima explosão, deixa claro, contudo, que esses jornalistas e blogueiros patinam em um velho e injusto ranço. The Vines voltou diferente, menos elétrico e vigoroso, é verdade, mas fazendo um rock and roll tão limpo e direto que bem merecia um olhar mais cuidadoso e menos patético desses críticos de plantão. Sem se arvorar em fazer o inédito, o grupo, com a voz de Nicholls mais afinada que nunca, busca nos anos 60 a inspiração para um álbum com boas melodias e uma energia que se renova a cada audição. Não buscam de forma alguma impactar ou engendrar um novo Highly Evolved. E é no explícito prazer dos caras de exercitar o rock puro e básico, de fazer o simples que se revelam as delícias do mais recente álbum dos australianos.

Ouça a pedreira “Weird Animals”:



Essa simplicidade está escrita nas entrelinhas da grande maioria das 13 músicas que compõem um álbum ligeiro, curto, espertíssimo. A eletrizante “Gimme Love” abre o disco botando os sentidos para chacoalhar. Bublegum com cheiro de naftalina, traz os acordes dos anos 60, da efusividade que fizeram a fama de bandas como Beach Boys, The Monkeys e The Kinks. Essa mesma musicalidade, com ecos concretos do típico psicodelismo da época, se faz presente em “Candy Flippin’ Girl, com a batida marcada da bateria, o sintetizador manso e a guitarra ditando o ritmo. Essa moldura sessentista continua impressa na convincente "Cry", com seu pandeirinho e barulhinhos eletrônicos hippie-chiques, e no folk datado da linda balada “Goodbye”. E há quem veja ainda os Beatles dos anos 60, uma das influências mais marcantes do The Vines, em “All that you Do”. Enxergo melhor essa bendita herança, ainda que só pincelada, em “A.S.4”, lenta e graciosa melodia que bem poderia fazer parte do repertório do Oasis, quando este extinto grupo tentava imitar com medida competência os ídolos Paul e Lennon.

Afastando-se um pouco dos 60, os caras do The Vines - além do emblemático Nicholls(voz, guitarra), Ryan Griffiths(guitarra), Hamish Rosser (bateria) e Brad Heald(baixo) - encaram algumas viagens por sonoridades mais próximas da geração deles. E isso em algumas das melhores músicas desse injustiçado CD. “Weird Animals”, com sua pegada punk, é suja e feroz. A guitarra distorcida e melodia ganchuda levam o ouvinte à lona. Música tão legal quanto “STW”, que tem um quê de Nirvana, outra das explícitas influências do grupo, e quem sabe um elo com o futuro, uma linha a ser seguida no próximo trabalho do Vines. Os acertos ajudam a relevar a única grande bobagem do disco, a instrumental e paranóica “Outro”, um deslize aliás até compreensível e perdoável para quem vive a sombra da Sindrome de Asperger, né mesmo? Deixando a ironia pra lá, e desafinando o coro dos descontentes, recomendo, sem restrições, Future Primitive, esse regular e despretensioso Vines em sua honesta busca do mero prazer de cantar e nos fazer feliz.

Cotação: 4

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http://www.duckload.com/download/5996922/Future_Primitive.zip

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http://www.zshare.net/download/905442540934d560

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http://leteckaposta.cz/140325948