sexta-feira, 26 de julho de 2013

Eu acredito em Nick Cave

Cave está de volta com toda a sua melancolia e beleza
Para Wagner Ataídes

Um alemão maluco numa tarde cinzenta numa Brasília sem engarrafamentos me apresentou Nick Cave. Eram dias derradeiros dos anos oitenta e eu, cheio da irrefreável sede do conhecimento, atado e atento ao que o mundo me oferecia de mãos beijadas. O louco alemão falou de Cave com sua também voz cavernosa, naquele seu dialeto que misturava sua língua pátria com a minha língua mátria, entrecruzando expressões meio incompreensíveis entre os dentes encardidos de nicotina. Consegui, enfim, entender um “você vai gostar” bem pronunciado e decidido. Para quem já havia me apresentado The Smiths, tinha que dar crédito para o cara. Comprei a bolacha do Kicking Against the Pricks(1986) e botei pra girar na vitrolinha, depois de encarar intrigado um sujeito na capa do disco de black tie e um topete gigantesco envolto num ambiente esfumaçado de cabaré. Era um álbum de covers com versões nebulosas, às vezes experimentais, às vezes farsescas de músicas de gente boa. John Lee Hooker, Johnny Cash, Tom Springfield, Lou Reed dançando nos sulcos do vinil em catárticas e raivosas interpretações. Pensei, o louco alemão tinha razão, aquele australiano era realmente bom pra caralho.

Veja o vídeo de “Jubilee Street”:


E esse Cave do alto de sua eterna magreza foi me surpreendendo a cada disco rodado, confirmando de vez minha admiração num show que fez para poucos agraciados numa virada de década debaixo de uma lona de circo em Brasília montada para shows populares. Tender Prey(1988), Henry´s Dream(1990), Murder Balads(1996), só para citar alguns exemplos, traziam um músico inteiro, bem intencionado, de voz marcante e afinada, acompanhado de uma super banda, os fabulosos The Bad Seeds. Que cantor e compositor não gostaria de estar acompanhado daqueles caras talentosos? Juntos fizeram álbuns antológicos, nos quais Cave exorcizava fantasmas, cantava sobre deserdados, sentimentos periféricos, assassinos, a crueza da vida e, claro, o amor sem muitas concessões. De uma tal forma que pesava no coração e rodopiava latente na cabeça. Parte desse universo, do sentimento de urgência e principalmente da melancolia que trespassava a música como flechas sorrateiras está presente de forma estupenda em Push the Sky Away(2013), o último e mais um acerto de Cave e as más sementes nesse que é o 15 álbum de estúdio deles.

Cave ao lado de uma das melhores bandas de apoio da terra
Não que fosse inesperado, mas depois de uma série de obras em que se esbaldaram, feito crianças num grande parque de diversôes, num rock ligeiro e insidioso, caso dos discos Dig, Lazarus Dig!!!(2008) e os dois que assinaram como Grinderman, um projeto paralelo, muitos acharam que Cave e The Bad Seeds iriam engrenar uma quarta marcha. E continuar acelerando as batidas da batera e do coração. Que nada. O cara e a banda trouxeram de volta aquele som soturno, em marcha lenta, marcial. Minimalista, o músico canta noturnos num tom menor que, apesar disso, não tira a grandiosidade e a estranha beleza de suas composições. A noite se faz cercada de um sentimento taludo, de tão triste e melancólico é quase palpável, como uma carne a se cortar. E a voz, mais segura do que nunca, ressaltada pela delicadeza instrumental, repetitiva e hipnótica torna os ouvidos reféns das histórias e do universo denso e introspectivo, cheio de sereias, devaneios e alma desnuda do australiano.

Cave: trinta anos de carreira e vários álbuns antológicos
Em descompasso com a velocidade do mundo que briga feroz com o relógio, as músicas de Push the Sky Way devem ser sentidas como, nessa aparentemente absurda e venal comparação, aplicações de agulhas em uma sessão de acupuntura. As leves alfinetadas na pele transformam-se em sensação de prazer e acolhimento, como chaves para a transcendência proposta pelo álbum. Logo de cara, “We No Who U R”, com seu instrumental mântrico e letra obscura e repleta de metáforas, amansa os ouvidos e nos entrega um Nick Cave introspectivo, marginal. A linda “Wild Lovely Eyes” segue esse caminho de serenidade a falar de ondas cristalinas de amor com um toque quase, não se espantem, de música eletrônica. É o artista, como diz a própria letra da música expandindo sua música e sentimentos sem medo de ser transparente ou de parecer louco ou um desgarrado poeta destilando crenças e delírios. “Eu acredito em Deus/Eu acredito em sereias também/Eu acredito em 72 virgens acorrentadas(por que não? por que não?)”, sussurra em “Mermaids”, um dos muitos pontos altos do disco ao lado da fantástica “Higgs Boson Blues”, um torto e enigmático blues interpretado de peito aberto pelo bardo australiano, e da pungente “Push the Sky Away”, com seu teclado lento que lembra igrejas góticas. No final da bela composição, o músico questiona, em minha tradução livre: “Algumas pessoas dizem que é apenas rock’n roll/Mas, isso deixa você em contato direto com sua alma”.

Push The Sky Away é mais do que rock. Transcende esse rótulo e reforça a coerência, explícita em 30 anos de carreira, de Nick Cave e sua incrível banda em dialogar diretamente, abertamente com aquilo que mexe profundamente com eles. São dores, cores, tesões traduzidos em uma música redentora. É talvez redenção para o grupo que a toca. É presente para quem a ouve embevecido e agradecido. Um dia um maluco alemão me apresentou Nick Cave. Há 25 anos. Num desses dias cinzentos de 2013 da mesma Brasília, um amigo daquela época me alertou para ouvir o novo álbum do cara e sua banda de lá. “Acho que você vai gostar”, disse sem sotaque e com a firmeza de quem confia no que diz. E eu sempre dei crédito – por tudo que escutamos e amamos juntos - para a sensibilidade dele. Aquele sentimento de força e beleza atravessou décadas e hoje se renova como se o tempo tivesse parado. Acho que é assim com a música boa, como uma fonte de juventude. Vai ser sempre assim.

Cotação: 4

Tente o download por aqui:

http://www.mediafire.com/download/1vm5axm1one8mvl/Nick_Away.rar