quarta-feira, 12 de outubro de 2011

Pra nunca mais esquecer

A voz agoniada, angustiada negava a letra da música acompanhada por um arranjo que começa desolado até cair no refrão quase gutural, primitivo. “Eu estou tão feliz”, cantava aquele rapaz que parecia a beira do desespero uma canção bipolar que soou como um tapa em minha cara naquele início de década. Era 1991. Ainda tinha uma vitrola, um 3 em 1 (toca fita, rádio e toca disco num só e volumoso aparelho, alguém lembra?) guerreiro, que já tinha animado muitas tertúlias, aqueles festinhas de amigos marcadas de última hora e que sempre davam o que falar no dia seguinte. Naquele ano, um novo velho som mexeu com milhões de pessoas no mundo inteiro. O rock sem rebeldia, escravo da ditadura das emissoras, se rendia então ao pop. Aí, aquele cara de voz rasgada e doída tomou as rádios mudando essa história, abrindo as portas para uma tribo formada por bandas garageiras, despojadas, com uma pegada suja e pesada. Misto de punk, com hardcore, recheado de microfonia, guitarras no talo e letras diretas. Era o grunge de Kurt Cobain, do Nirvana, que lançava um disco que se tornou um capítulo rico e marcante da história do rock and roll. E isso no mesmo prolífico ano em que Pearl Jam e Soundgarden colocaria no mercado duas outras belas e capitais obras daquele movimento, respectivamente Ten(1991) e Badmotorfinger(1991). Mas, foi com Nevermind(1991), incensado álbum que completa 20 anos, que o Nirvana chegaria ao nirvana e o rock retomaria sua rebeldia.

Ouça "Lithium":



Eu confesso que não estava muito preparado para ouvir Nevermind ou a zanga de Cobain naquela época. Nunca fui um fã declarado do rock mais raivoso, ainda que umas deliciosas velharias gravadas nos anos 70 e que embalaram minha juventude, como Deep Purple, Led Zeppelin e Rush, continuassem merecendo toda minha atenção e carinho. Estava num momento de culto ao rock alternativo, feito por bandas que a maioria dos meus amigos e, claro, a mídia, insistiam em deixar injustamente no limbo. Era um som torto, trabalhado na contramão dos hits vigentes. Encontrava-me, no período, maravilhado com as possibilidades que o gênero musical propunha com grupos como Pixies(aliás, uma das maiores paixões do Nirvana), Talking Heads, Screaming Trees, Pogues, Guided by Voices, Sebadoh e outras formações honestas que também fizeram história e que de alguma forma ajudaram o grunge a ser o que foi no início dos 90 do século passado. A provocação, a sinceridade, o despojamento e as guitarras distorcidas daqueles antecessores estavam presentes numa fusão bruta no segundo disco do Nirvana, um fenômeno, que contava ainda, na linha de frente, com um cara de alma mergulhada num turbilhão de angústias, medo e contradições.

Assista Cássia Eller cantando “Smells like Teen Spirit”:



Cobain era a força motriz e translúcida do Nirvana. O cara bonito, elétrico, de profundos e inquietos olhos azuis, vestia-se de camisa quadriculada, aberta, com uma camiseta por baixo e um jeans sujinho, rasgado, estilo que se tornou o uniforme do grunge. Essa expressão, aliás, não se sabe se é um sinônimo para sujo ou uma corruptela da palavra garagem. Uma coisa e a outra, contudo, definiam bem o espírito dos meninos da banda. Imagino Cobain sempre com a mesma camisa quadriculada, acordando tarde e indo pra rua beber com os amigos sem o banho tomado. Penso nele ao lado do baixista Krist Novoselic e do baterista Dave Grohl incendiano uma garagem com seus acordes urgentes, plugados em uma música que eles regurgitavam e depois sorviam e regurgitavam novamente pelo mero prazer de estar no meio de toda aquela eletricidade sonora. Ou seja, os via como um bando de garotos cheios de energia e sem muito interesse de se tornar uma referência do rock. Um pouco com a filosofia punk de mandar tudo pro inferno, incluindo a mídia. Um muito com a vontade de dialogar com pessoas da mesma idade e fazer os ouvintes subirem pelas paredes, no ritmo da guitarra e dos berros.

Cobain é assim como um Renato Russo mal comportado. Com a diferença que sua poesia não tinha a mesma virilidade da escrita pelo colega brasileiro. Sabia falar com seus párias, utilizando-se de um verbo curto, pontuado, como se fosse palavras de ordem. E a galera, que não queria pensar muito e só bater cabeça, respondia: “Sim, isso acontece com a gente”. Acredito que a explosão de Nevermind, que entra fácil fácil na lista dos melhores dos anos 90 e também nas grandes obras do rock do século passado, tem a ver um pouco com isso. Em 1991 eu não era mais jovem, pelo menos na idade. Mas, fiquei encantado pelo disco e por um motivo que, acredito, ajudou a fazer daquele disco uma incontestável obra-prima: a entrega de Cobain. O que conta é a sinceridade do que o cara canta. Aquela angústia desbragada que senti em “Lithium”, a força dramática do hino “Smells Like Teen Spirit”, a cadência e o peso bem medido de “In Bloom”, com Cobain derramando seus versos bêbados, que fazem também a força de uma das minhas canções preferidas, “Come as You Are”, com seu impagável riff de cordas. Lembro de um amigo daqueles idos, mais novo que eu, que nem inglês falava, cantando desafinado, a plenos pulmões e com sentidas almas e concentração, “Drain You”, ou de outro colega imitando com mãos nervosas e baquetas invisíveis a bateria matadora de Grohl em “Territorial Pissings”. Lembro também de uma enlouquecida Cássia Eller no Rock in Rio, em 2001, cantando com garra e mostrando os peitos debaixo da camiseta surrada “Smells like...”, depois de dizer para a multidão que seu filho pequeno, de poucos anos de idade, adorava a música. Tudo isso me fazia pensar que Nevermind tinha um poder congênito, a magia daquilo que podemos chamar de clássico.

Nevermind é assim, de cabo a rabo, um disco repleto de hits, belezas e magias insuspeitas. Um cara de confusa psiquê que grita como se o mundo fosse acabar no dia seguinte, que chora como que quisesse compartilhar sua dor com o resto da humanidade, com coragem suficiente para entregar tudo isso de bandeja para o ouvinte e que, depois de se tornar ídolo, se matou. Composições trabalhadas com extrema inteligência pelo produtor Butch Vig, o quarto homem da banda e peça importante nessa história toda, que domou a virulência incontida de Bleach(1989), primeiro e anterior fruto do Nirvana, equilibrando em doses democráticas raiva e suavidade. Canções com melodias fáceis, riffs grudentos, tocadas como se numa garagem. Vinte anos depois, o álbum mais tocante do Nirvana nasceu para ser disco de cabeceira. É atemporal em sua franqueza. Um trabalho que ainda vai fazer merecidamente a cabeça de muita gente que tem o rock no coração. Esse eco ainda será ouvido por longas décadas. Há quem ache que depois de Nevermind nenhum grupo lançou uma obra tão significante. Não sou tão radical, mas essa obra-prima tem argumentos suficientes para que se pense assim. Agora, com licença, vou ali colocar meus fones de ouvido e me deixar levar mais uma vez por esse discaço.

Cotação: 5

Comemore com o Nirvana:

http://www.mediafire.com/?ncntmznd4bn