sexta-feira, 5 de junho de 2009

Música de peito aberto

É interessante como a honestidade sempre ganha corações. Ser sincero num mundo tão cheio de falácias e abarrotado de tantas informações contraditórias é uma virtude extremamente louvável. Na música acontece o mesmo. Dois dos discos de MPB mais interessantes do ano têm aquele elemento como seu melhor e mais saboroso tempero. O primeiro, Sweet Jardim, da paulistana Tiê, foi comentado aqui neste blog. O segundo, São Mateus não é um lugar Assim Tão Longe(2009), de Rodrigo Campos, passo a comentar agora.

Assim como Tiê, o também paulistano Rodrigo Campos investe na criação de sensações e emoções cotidianas para elaborar o seu álbum de estréia. Bacana a entrega descompromissada desse rapaz que nasceu no interior e, aos 3 anos, mudou-se para São Mateus, bairro de periferia da Zona Leste da megalópole São Paulo. Tudo o que isso significou, e o posterior crescimento que o afastou de lá, estão lá vestido incisivamente de poesia no CD.

É incisivo o discurso musical de Rodrigo quando passeia nas memórias de infância e traz à tona velhos amigos ou conhecidos do bairro. Sua poesia despojada e elíptica, feita de frases curtas como nos contos do curitibano Dalton Trevisan, chega a ser tocante. Como na linda "Mangue e Fogo" em que lembra de duas crianças perdidas na cidade suja. Uma delas Marina: "A vida de Marina era no mangue atrás da escola militar/ Cresceu nos arredores do colégio catando caranguejo/ Vendendo no farol/ Chupando oficial por dez real". Mais cru, impossível.

O compositor passeia pelo seu antigo bairro de peito aberto e com uma linguagem poética que não mascara, mas também não escancara o mundo cão da periferia. Usa inteligente da sutileza para falar da violência, como em "Cavaquinho", onde pergunta pelos velhos amigos, que desapareceram. Fica a sugestão no ar de como estes deram um chá de sumiço. E puxa pela nostalgia como em “Rua Três”, onde conta a história de um velho morador que volta a São Mateus e, de repente, se vê emocionado com trinta anos, depois de rodar o filme de toda a sua vivência ali.

Essas crônicas poéticas do cotidiano, quase todas assinadas por Rodrigo, estão muito bem acompanhadas das melodias. Essas contaram com parceiros de fé do paulistano, gente competente de sua geração, como Beto Villares, João Taubkin e Curumim, que emprestaram ótimas texturas às composições. O baixo potente de João Taubkin esquenta a funkeada “Brother José”.

Metais e um violão melancólico emprestam beleza a "Califórnia Azul", num disco com vários batuques que ora vão em direção ao samba de quintal – escola pelo qual Rodrigo passou como cavaquinista - como em "Fim da Cidade" e em "Isac", ou rende-se ao sambinha mais leve, como na boa "Sem Estrela". Vale citar, ainda, a voz marcante e rouca de Luisa Maita, na foto acima com Rodrigo, intérprete de quatro canções do álbum, que logo deve estar despontando como uma boa surpresa.

Mas, São Mateus não é um Lugar Assim tão Longe, como seus arranjos corretos, não pode ser visto como um disco de samba, no sentido mais tradicional da palavra. É uma declaração de amor à vida feita com delicadeza e talento. Seja bem vindo, Rodrigo, ao mundo dos bons. Seja muito bem vindo.

Cotação: 4

Vá até São Mateus:

http://lix.in/-44f412