segunda-feira, 14 de dezembro de 2009

Cabeça é pra isso mesmo

Abri o sorriso diante da tela luzidia do computador escangalhado. Com puta satisfação e enorme curiosidade vi circulando livre pela internet dois álbuns, o segundo de bandas autorais que me impressionaram num passado recente e que agora voltaram a dar o ar da graça em bacanas registros fonográficos. Uma paulista, de nome arcaico, Numismata (essa que taí na foto acima), que chega com Chorume (2009). A outra baiana, de nome extenso e engraçado, Ronei Jorge e os Ladrões de Bicicleta, despejando seu Frascos Comprimidos Compressas (2009). A boa notícia é que esses grupos, que causaram algum frisson no meio da galera mais antenada na época da estréia, retornaram com o mesmo pique criativo, experimentando seu som próprio e agudo, exemplar raro de quem faz rock e samba com o cérebro em ebulição.

Vou começar a fazer a festa falando do Numismata (na próxima postagem, entro cauteloso no universo alucinado dos baianos do Ronei Jorge), sexteto paulista cultuado desde que colocou no mercado alternativo o excelente Brazilians on the Moon (2003). Naquele ano, os caras foram incensados pela crítica especializada. E com justiça. O disco era um mergulho corajoso em nossas raízes sambísticas e emepebísticas, mas com injeções renovadoras de rock, psicodelia e afins. O que é melhor, com conhecimento de causa e boa levada instrumental dos músicos. Em Chorume, seis anos depois, a galera de Sampa amadureceu ainda mais essa linha musical. A bem definida opção estética, que mistura pesquisa e experimentos, aparece agora vestida de gala, num trabalho onde produção esmerada e refinamento andam de mãos dadas.

A psicodelia de “Todo Céu e Essas Pequenas Coisas”, que abre Chorume, mostra o cuidado do Numismata com os arranjos e instrumentos, que se repete em cada uma das canções do disco, nessa música de melodia forte e cinematográfica. A letra escancara com poesia e respeito uma São Paulo mundana, onde “cai a chuva fina misturada ao odor de urina velha e gasolina”. Dentro da proposta de casamento, não assumida pelo grupo, do rock, samba e MPB há ainda pérolas como “Prejuízo”, com a participação luxuosa do grande Luiz Melodia, que empresta vitalidade a essa composição que parece ter saído da própria lavra do negro gato, e que conta, reparem, com a guitarra solta e vibrante de André Vilela. Grande música, assim como a sacana “A Vida como Ela é”, uma marchinha carnavalesca apimentanda ainda mais pelo instrumental rocker do grupo e a alegria contagiante de Maria Alcina, outra fina participação.

Ver o respeito e a participação de ícones da MPB como Maria Alcina e Luiz Melodia no trabalho do Numismata só credibiliza ainda mais o som de uma banda que faz referências claras ao passado em sua música, mas mantém uma postura aguerrida ao acrescentar sem medo matrizes e influências estrangeiras. Ao mesmo tempo em que mostra reverência ao samba tradicional, como na bonita “Anhanguera”, ou brinca com competência de fazer valsa, com direito a orquestração de violinos, como na doce “A Passos Largos”, rende-se ao rock e a psicodelia, como nas bacanas “Tanta Saudade” e “Naif”, cuja intensa melodia lembra os também referenciais Los Hermanos em seus melhores momentos. E beliscam até o jazz, exemplo da ótima “Vira Latas”, onde o vocalista e tecladista Piero Damiani, em dueto com o ótimo Carlos Fernando (ex-Nouvelle Cuisine), uma das melhores vozes masculinas da MPB, arrisca o francês.

Essa permissividade criativa que junta rock, samba e MPB, acha-se afiadíssima em Chorume. E o mais legal ainda é perceber que a essa experiência bem realizada é acrescentada letras bem escritas e bem desenhadas. Bons e escaldados poetas do grupo revelam sua matiz urbana e sensível. Gente capaz de citar paulistas ilustres, reveladores da alma de São Paulo e seus cidadãos, como os compositores Geraldo Filme e Paulo Vanzolini, na pungente “Todo Céu e Essas Pequenas Coisas”. Capaz de versos acres como “Não vou mais me curvar ante a vastidão do mundo/não vou mais aceitar o beijo vil da morte” ou de serem diretos como na coalhada de antíteses “O Inferno e um Pouco Mais”, na qual provocam: “Eu não canto mais vitórias para não ser derrotado/ Eu não penso no futuro pra não virar passado/ Não faço o bem pra não sofrer o mal/ Não pulo mais o carnaval”. Sem dúvida, um dos grandes discos do ano. Que seja um sinal de que 2010 possa ser muuuito melhor.

P.S.: Numismata é Piero Damiani (voz e teclado), Adalberto Rabelo (guitarra e voz de apoio), André Vilela (guitarra e voz de apoio), Carlos H. (baixo), Carlos Russo (voz de apoio e percussão) e Felipe Veiga (bateria e percussão). Ah, para quem não sabe e tem aquela preguiça de correr até um dicionário e enriquecer o vocabulário, Numismata é o especialista na numismática, ciência que estuda e decifra moedas e medalhas, revelando origens, detalhes e material usado. Arqueólogos do passado e de pequenos tesouros. É, nossos amigos paulistas bem que podem ser enquadrados nessa categoria.

Cotação: 5

Todo o chorume do Numismata:

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Veja a engraçada "Das Tripas, Coração" com o Numismata: