domingo, 26 de agosto de 2012

Som pra viciar

Jana Hunter em meio aos pupilos: densidade nua
Um quase disco. Quase canções impecáveis. Organismo em formação, com formato e intenção nebulosos. De uma densidade quase palpável, como aquelas brumas que se formam de manhãzinha, quando o sol preguiçoso engrena banhar o dia, na estrada que serpenteia em direção a singela Brumado (quem conhece?), no interior da Bahia. Como um sentimento revolto, enlaçado por camadas e mais camadas de sensações tão múltiplas quanto uma alma intenta criar. Logo, a gente se embrenha em paisagens musicais etéreas, cósmicas, em terrenos por onde já pisaram grupos como Kraftwerk, Can e Joy Division. Uma arena criativa, difícil de cruzar, mas que traz recompensas para quem insistir em enfrentá-la. Por trás de toda essa barroca arquitetura musical tem uma moça que talvez esteja buscando expurgar seus fantasmas: Jana Hunter, uma norte-americana de Baltimore. Brinca de esconde-esconde propondo que a encontremos num emaranhado sonoro onírico que insiste, às vezes dark, em abocanhar nossos sentidos. Ela é esperta, tem talento e nesse jogo proposto de forma inteligente nos surpreende com facilidade. Uma surpresa que responde pelo nome de Nootropics(2012), segundo álbum da banda Lower Dens, que chega candente como um meteoro, como um competente arrastão em nossos tímpanos.

Veja clip oficial da joydivisiana "Propagation"



Jana Hunter, a moça do Lower Dens, teve formação clássica. Foi violinista. Carrega nas costas uma carga cultural e referências que provavelmente contribuíram para a criação dessa música densa que se ouve clara, condensada nas linhas e entrelinhas de Nootropics. Esse nome estranho de tantos e abusados  "os" é o que se usa para drogas sintéticas que estimulam nosso poder de conhecimento. Antes de tentar nos drogar com esse novo trabalho, Hunter mergulhou, e quase lá ficou, no mar da melancolia com o álbum de estréia do grupo, Twin-Hand Movement(2010), uma espécie de rascunho do que viria a ser a deliciosa viagem com partida iniciada este ano.  A virada sonora da turma de Baltimore, sob a batuta da vocalista e guitarrista citada no início deste parágrafo,  é intensa e se ampara em sons repetitivos, hipnóticos, que beliscam sim, em muitos momentos, uma certa dose de tristeza, de estranha sobriedade, mas sem perder a linha da vivacidade, da energia que nos deixa ligado com o mundo. A gente pode até se abandonar a essa massa musical transcendente, formada por muitas camadas instrumentais, mas seguimos instigados, acompanhando os reverbs, os teclados ora perdidos no passado ora linkados com o futuro, e a voz soberba da moça que tem boa parte da reponsabilidade, no final das contas, por tudo isso.

Coerência musical marca trabalho da banda
Um exercício de transcendência que encontra o belo pela frente, a primeira faixa de Nootropics encanta pelo que de simplicidade aparenta ter. “Alfhabet Song” é mesmo assim meio Radiohead, aquele da fase das músicas cabeças, desregradas e irrequietas. Etérea e viajandona, uma das mais bacanas do álbum, ela prepara o ouvinte para uma riqueza sonora que nos incita inapelavelmente a desvendá-la. Porque Hunter e sua trupe não estão muito a fim de nos agradar e sim de fazer aquilo que gostam, sem medo de parecerem complexos. Mas, calma, Lower Dens não é exatamente uma banda experimental, inatingível, longe de ser chata. A música de abertura é uma prova disso. E o que se vê daqui pra frente é uma coerência musical que tangencia sons de vanguarda e bandas de atitude, mas que mantém o pezinho no chão. Enfim, nada pra nos fazer bocejar, pelo contrário, o que se ouve tende a nos deixar boquiabertos. Em "Brains", batidas monocórdicas introduzem uma das canções mais alegrinhas do disco, uma espécie de trilha sonora para um passeio de carro na paisagem tremeluzente de Tóquio, daquele jeitinho que os filmes de arte contemporâneos nos apresentam aquela cosmopolita cidade.

Ouça a linda "Lamb":


E o Lower Dens segue o disco num mesmo compasso, as vezes enganosamente caótico e próximo do rock progressivo, como na instrumental "Stem". Outras vezes desacelara pegando o sujeito pelo coração, como na linda “Propagation”, com uma acachapante melodia e refrão marcante. Repare aqui na bateria marcada e baixo repetitivo que lembram a cultuada banda Joy Division. E aí chegamos na climática e emocionada “Lamb”, que traz Hunter em uma grande e doída interpretação nessa música para se ouvir em dias nublados com a alma beijando a zenitude. Até este momento do CD, começamos a nos acostumar com o universo musical tão cheio de entrelinhas e sobreposições sonoras da banda que até podemos achar estranho a mais pop e palatável "Candy"com seu bonito solo de guitarra. O disco quase derrapa em "Lion in Winter Part 1 e 2", com dissonâncias cruas e andar lento, quase irritante. Mas, a recuperação vem a galope com as superbacanas "Nova Anthem", que resgata o vigor de "Lamb" e seduz com uma variação melódica que começa lenta e chega eficiente ao climax no final. Para fechar o trabalho, o grupo ataca com a esquisita “In the End is the Beggining”. Soturna, moldada por batidas secas e guitarras  viajantes, talvez seja esta composição, com seus sete minutos, a de mais difícil acesso da obra.

Ao fim da primeira audição de Nootropics, sentimos a vontade de retomar o álbum, como se ele tivesse deixado para trás um sem número de indagações e lacunas a serem preenchidas. E esse é o grande barato desse trabalho vigoroso: a vontade de revisitá-lo quantas vezes forem necessárias até que possamos compreendê-lo por completo. Porque vai sempre ficar alguma coisa para trás, algo a se pescar, como num rio para o qual o pescador paciente viaja todo dia para saciar uma sede de peixe que nunca estanca. É legal ouvir um grupo com texto e contexto, com transpiração e inspiração. Lower Dens nos apresenta um álbum que incorpora, com entrega plena, essa tensão ansiosa dessa segunda década de milênio, onde o homem busca deixar algo consistente para o futuro, algo que toque a humanidade. Com uma obra sincera e cheia de maturidade, Jana Hunter e seu grupo estão no caminho certo. Ouça com carinho.

Cotação: 4

Inspire-se:

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