sexta-feira, 19 de fevereiro de 2010

Fúria na agulha

A pernambucaninha de coração, de rosto delicado, jeito de menina desamparada, é um furacão. Nasceu na Bahia sim senhor, mas carrega nos ombros e dentro da cabeça as multiinfluências de uma parabólica Recife onde desenvolveu a arte de cantar e compor. E todo esse fogo e uma vontade intempestiva de fazer diferente ela vomitou de uma tacada só no instigante trabalho de estréia, Eu Menti pra Você(2010). Moça cheia de atitude, Karina Buhr, se apresenta como uma deliciosa e consistente novidade no interessante e pouco conhecido mercado de música alternativa. “Minha fúria odiosa já está na agulha”, canta a danada em “Esperança Cansa”. Fúria bem vinda. Do bem. Na agulha, uma revelação pronta e acabada para ser descoberta e digerida sem reservas.

Karina Buhr já tem algum tempo de estrada. Passou por maracatus, sorvendo influências e batuques, participou de CDs e fez shows com grande parte dos nomes mais marcantes da cena de Pernambuco, como Nacão Zumbi, Eddie, DJ Dolores, Mundo Livre e companhia ilimitada. Ganhou, contudo, mais visibilidade quando se reuniu a outras meninas endiabradas botando pra ferver e destilando cultura no radical Comadre Florzinha, banda moleque que revisitava e modernizava o cancioneiro folclórico nordestino. Foi pra São Paulo e deixou o santo baixar, cantando e atuando, com Zé Celso Martinez, dono do terreiro no seminal Teatro Oficina. Tudo em tão pouco tempo. De tantos volteios Brasil e mundo afora (esteve na Europa em várias apresentações musicais), de bicada em bicada na nossa arte de chão, a moça acabou criando seu tempero próprio e que pode ser sentido em Eu Menti pra Você.

O que se pode perceber no disco é uma Karina Buhr aberta pro mundo, fazendo uma música viril, mais cheia de força e personalidade do que aquilo se vê na maioria do rock machudo feito no Brasil e que chega até nós pelas grandes gravadoras. Porque no disco de estréia da pernambucana há um misto de candura e fúria, aquela de que ela falou na música que citei no início da resenha, que se complementam com harmonia ao discurso direto e pontiagudo das letras que compõe. No rock brando com suspiros de improviso instrumental, que dá nome ao trabalho, ela já de cara provoca o ouvinte: "Eu sou uma pessoa má. Eu menti pra você. Você não podia esperar ouvir outra mentira de mim, que pena eu não sou o que você quer de mim.

A faquinha da cantora corta amolada a carne tanto no verbo quanto na melodia. Em "Avião Aeroporto", um electo rock com guitarra mântrica, canta e fala em harmonia estrangeira a nossos ouvidos, moderna sem ser empertigada, propondo uma viagem concretista, seca: "Pelo avesso, vamos pro fundo. Arame farpado na cabeça, vento, catavento, vulcão, pâncreas, fígado, coração". A fúria se faz sentir ainda na ótima “Nassira e Najaf”, onde fala de uma guerra sem fim em Bagdá ou sei lá que vemos diariamente na televisão, cuspindo fogo no refrão assombroso: “Dorme logo antes que você morra”. Intensa como uma espécie de PJ Harvey dos tempos do vociferante Dry.

Mas, não é difícil que tenha em Karina Buhr um pouco de PJ Harvey ou também da experimental Laurie Anderson. Há semelhanças com a sonoridade cáustica desta última no diálogo claríssimo com a modernidade alinhavado em "Telekphonen", cantada em alemão. Há boas lembranças de um som eterno como o da banda paulistana Patife Band, na alucinada “Soldat”. Enfim, há ecos do mundo todo na moça. E para fazê-los ainda mais audíveis, Buhr conta com o apoio de músicos de primeira que ajudam a dar asas ao vanguardismo e as suas rupturas poéticas. Nomes como Guizado (e seu incrível trompete), Edgard Scandurra e Catatau, comandando as guitarras, Bruno Buarque(bateria), Mau (baixo), Dustan Gallas (teclado, piano), Otávio Ortega (bases eletrônicas), Marcelo Jeneci (acordeon e piano), sem falar na canja do percurssionista cubano Pedro Bandera e da atriz alemã Juliane Elting.

Essa intrépida trupe funciona também que é uma beleza no lado mais doce de Eu Menti pra Você. O rock azeitado e cheio de idéias da artista dá espaço para baladas agridoces que reforçam uma convincente veia poética. É o caso da elíptica "O Pé", uma quase ciranda em que sobressai mais uma vez o lirismo da letra: “O céu embaixo das nuvens, a terra por baixo do asfalto, o centro da terra que puxa a gente, a gente pula contra a vontade do chão”. Na mesma linha, salta aos sentidos a ainda mais lenta e linda "Mira Ira", na qual repete dengosa e sedutora: “Não miro a ira, não miro mas te acerto no peito, quando mudo meu amor de endereço”. E surpreende ainda quando larga de mão da poesia e parte para a informalidade, reta e ligeira, no ska reggae “Plástico Bolha”, em que decreta que não está a fim de corre corre: "Eu quero passar a tarde estourando plástico bolha". De um jeito ou de outro, a pernambucaninha fez um álbum bacanudo, honesto e que tem tudo para marcar o ano de 2010. Gostei muito e recomendo de peito aberto, pedindo desculpa, por fim, pelo longo, longuíssimo texto.

Cotação: 5

O caminho das pedras:

http://www.4shared.com/file/219179707/3c7e0ec2/Karina_Buhr__2010_-_Eu_Menti_P.html

Escute “Avião Aeroporto”:




E também “Telekphonen”:



Veja Karina Buhr cantando “Vira Pó”: