quarta-feira, 8 de junho de 2011

Cão sem dono

Para ler ouvindo "Freguês da Meia Noite", de Criolo:



O aguaceiro veio sem piedade. Nas primeiras noites de chuvas torrenciais, o rio que passa do lado da casa onde morava começou a mostrar as garras, vindo lenta e insidiosamente em direção a madeira do batente. Aquilo não me incomodou muito nos dias anteriores a tragédia, porque minha memória de cachorro já registrara situações parecidas em outros tempos raivosos como aquele. E parecia também não tirar do sério meus amigos pulguentos da vizinhança e nem, ainda, assustar muito aqueles pobres diabos que cuidavam de nós. Nunca entendi porque meu dono insistia em morar numa casa de madeira a beira de um rio que sempre alagava com chuvaradas que pareciam sem fim. Não sei que tipo de carinho esses humanos tem por suas construções mal-ajambradas e fedorentas, cortiços que sempre tremiam diante de invernos encarniçados. Eu tentava relevar essa franca desgraça, afinal em troca de um pedaço de osso e um pouco de resto de arroz, não arredava por nada desse mundo o pé do alpendre cheio de goteiras que me protegia custosamente dos pingos d’água. Minha pouca, mas aguerrida dignidade, se apegava aquele conforto mesquinho. Não podia negar a raça, vira-lata que era.

Assista a vídeo com o vira-lata na enchente:



Não imaginava que esse ano seria diferente. Muito diferente. Nos outros invernos assistia, quase sempre sonolentamente, o burburinho dos humanos que se inquietavam diante de tamanha enxurrada. Discussões afiadas, a fêmea deles esbravejando na sala, com espuma na boca, como se fosse uma cachorra louca, apontando para o céu, riscando o ar nervosamente com seu dedo em riste. E o macho dela, meu outro dono, normalmente com olhos mareados, injetados de uma cor vermelho sangue, talvez por causa daquele líquido brilhante dentro de um vidro ainda mais brilhante que pendia invariavelmente de sua mão até rolar pelo chão, não ligava muito para o que a fêmea dizia. Mas, depois calavam e a chuva diminuía seu violento ataque fazendo adormecer todas as casas que nos rodeavam. E o chuvisco, como música de ninar, me fazia sonhar com noites de lua cheia. O que aconteceria nesse ano acinzentado me pegou de surpresa, me deixou assim num desamparo e amargor que arrepiou todos os meus parcos pelos, me sentindo terrivelmente como um cão sem dono.

Lá pela quarta noite depois de toda aquela água que caía esmurrando as telhas de amianto das casas, percebi que a história de memórias antigas não se repetiria. No tardar da madrugada, já com a alma intranqüila e a água pelo meio das raquíticas canelas, ouvi os passos acelerados de meus donos que corriam de um lado para o outro. Lati querendo atenção e afago, talvez uma explicação qualquer. Nenhum deles se dignou a olhar para mim. A voz dos humanos confundia-se com a chuva pesada, ribombando em meus ouvidos sensíveis de vira-lata. Tentei repetidos latidos e até ensaiei alguns uivos, exercício vocais aos quais pessoalmente nunca tive muito talento, mas em vão. Assisti, preso pelo pescoço à minha velha conhecida e encardida corda de todo dia, a evolução gradativa do que se tornaria, em rápidos e desesperados minutos, o mais absoluto e cruel esquecimento.

O desfile diante de meus olhos assustados foi ligeiro e caótico, obedecendo, no meu fraco raciocínio, à ordem de importância que os humanos davam a seus objetos, primeiro saiu porta afora aquele aparelho luminoso que repetia as imagens dos humanos, depois o objeto arredondado de cores esquisitas em que eles sentavam, e o outro de aspecto purulento em que dormiam e faziam barulhos altos. E eu ali, molhado até as entranhas, esperando a minha aguardada vez de ser carregado em braços quentinhos e acolhedores. Nada. O desfile continuou. Aquilo com que eles cobriam os corpos veio na seqüência, as tábuas redondas nas quais comiam, depois, e vieram um tanto de objetos que eu desconhecia e, por fim, meus próprios donos subiram em pequenos barcos e foram desaparecendo entre vãos que antes eram ruas, sem nem olhar para trás, sem nem olhar pra mim, já então completamente enregelado. Arregimentei forças e tentei ainda um último e desesperado latido, abafado pela impiedosa chuva. Não ouvi qualquer resposta. Era só eu agora, lutando contra a morte.

A morte se aproximou de mim meio desgovernada como os pedaços de paus e plásticos que a enxurrada trazia nas águas do rio agigantado. Ainda sentia o chão nas pontas de minhas patas úmidas. Restava-me morder, roer aquela corda fétida que pesava em meu pescoço magro de vira-lata. Na primeira tentativa, a maldita não quis ceder à força de meus dentes amarelos. Era preciso tentar mais uma vez. Senti que a corda não folgava, por uns instantes pensei que ela quisesse me apertar, se amarrar mais ainda em mim, como um desmerecido castigo, como uma mão invisível que me empurrasse para baixo, para as profundezas do rio. Lati raivoso e numa terceira e mais vigorosa tentativa, percebi que os fios do cordão se partiam aos poucos, caprichosamente. Anos de exercício roendo pacientemente ossos valeram o esforço. Forcei o rompimento com uma mexida brusca de cabeça, para um lado e para o outro e mais uma vez, outra vez, até que a corda partiu e ficou boiando presa à coluna de madeira da casa. Estava salvo. Agora sem pressa, com uma balsâmica sensação de vitória. Num lento e desolado nado de cachorrinho fui até a margem mais próxima, onde encontrei aliviado a terra firme. Debaixo de uma latada, cansado da guerra, cão sem dono, descansei a cabeça no piso de cimento e sonhei com um dia de sol.

P.S.: Nos dias 2, 3, 4 e 5 de junho de 2011 uma chuva intensa e intermitente caiu sobre o estado de Roraima. A pior dos últimos trinta anos. Virou notícia em rede nacional. Em Boa vista, o nível do Rio Branco subiu mais de 10 metros, alagando ruas e casas de madeira das comunidades ribeirinhas, famílias pobres que só abandonaram seus lares depois que a água chegou na altura do joelho. Os cachorros vira-latas, às dezenas, foram abandonados pelos seus donos. Muitos deles ficaram à beira do rio, perdidos, olhando de longe suas casas alagadas. Um pequeno detalhe dramático numa novela real que tocou a todos nós em Roraima.

P.S 2.: A visão mostrada na narração em primeira pessoa aqui é exclusiva do personagem.