terça-feira, 14 de maio de 2013

Depois daquele acidente


O baque surdo, feroz misturado a uma sensação de vertigem me tirou do cochilo instantâneo. O vidro do carro a minha frente tremeu e por alguns segundos me vi chacoalhado, como se estivesse dentro uma coqueteleira gigante agitada por mãos firmes, até que a poeira baixou e o que era som de fúria e estardalhaço entranhou-se num completo silêncio, quase etéreo, estéril. E logo depois, no átimo do atordoamento, uma visão dolorida fisgou ainda mais o coração intranquilo. Aquele braço, a carne inerte, como um quadro parado, pendurada na janela do automóvel, como se quisesse sublinhar a dimensão do acidente. O braço do meu amigo pendido pro lado de dentro do veículo como um estranho adorno, me acordou de vez.  A voz chamando o companheiro saiu agoniada, assustada, mas não baixa o suficiente para que a resposta tranquilizadora viesse urgente. Estava tudo bem com nós dois, dois homens cobertos de poeira, banhados de medo e alivio, no transe daquilo que aos poucos começamos a entender.

Antes do acidente havia um céu de anil, entrecortado por poucas nuvens, e o sol manso de fevereiro. Sol frio de início de dia na contradança do som baixo que tocava no rádio do carro como uma besta e traiçoeira cantiga de ninar. O cansaço acumulado dos dias anteriores, reféns do imperioso desgaste de que somos vítimas quando assumimos contrato com mestre de obras e pedreiros naquelas reformas que parecem não ter fim nem piedade. A débil ressaca da desmilinguida noite anterior, na qual cumpri um roteiro rápido de algumas cervejas bebidas em bares compromissados com a rotina interiorana da população de se levantar pro dia seguinte com o canto dos galos. As poucas horas descuidadas de sono que não ajudaram a restaurar a dívida que eu tinha com meu corpo e mente. Esse histórico comprometedor e aquele sol frio e aquela música baixa e aquele sono que me rondava e ao meu amigo feito um sorrateiro soldado pronto e acordado pra vencer a batalha... e aquela hora em que perdi o contato com a realidade naquela estrada de finos pedregulhos que cortava o extenso canavial de paisagem modorrenta e que parecia sem fim.

De surpresa o sono trouxe o avassalador. O carro que deslizou sem rumo, na coreografia clássica da cambalhota, perdendo o atrito com o chão, dançando no meio das partículas de terra em suspensão e o baque surdo, repentino. Imagino que foi isso que aconteceu enquanto nos entregávamos, rendidos, eu e meu amigo, ao fatal cochilo. Quando nos demos por inteiro, atônitos e cobertos de poeira, fora do carro que parecia esses objetos esquecidos, aos frangalhos, como um sobrevivente inútil de um bombardeio, nos olhamos na ânsia de escanear a saúde de cada um, na procura do consenso de que estávamos realmente bem. Estranho sentimento esse que nos assalta imediatamente após uma acidente perturbador, essa nossa vontade irremediável de estarmos vivos, sãos e salvos. Nessa hora o sol que bate na gente, nos nossos músculos ainda retesados, essa claridade que divisa ainda mais claramente a poeira que tinge os cabelos desalinhados, reflui dentro da gente como um inefável e poderoso sopro de alegria, ressuscitador. O alento de estar vivo nessa hora é como um bálsamo que injeta energia e que nos faz reativo para tudo mais que vem a seguir. Deu a força que eu precisava para pontuar aquela história e sobreviver, mais uma vez, dessa vez às agruras de quem, mesmo aturdido, precisa acionar o seguro e seus mecanismos cruéis de burocracia.

Depois de se sentir vivo, a gente consegue ver com mais clareza o tamanho do tombo. O raciocínio volta com mais firmeza e você se pega a analisar, como se procurasse significados para aquilo tudo que aconteceu. Como se sustos daqueles tipos tivessem que carregar necessariamente lições de moral, espiritualizada a alma por ainda fazer parte deste insano mundo. E quando a gente sai ileso dessas quedas, construímos couraças, nos fortalecemos, amadurecemos um pouco mais e se não choramos é porque não há motivos para tanto. Aquele monte de metais retorcidos, aquela equação de entranhas ferruginosas formando uma escultura esquisita torna-se de repente um coadjuvante desprezível de algo maior, desse ardor inenarrável que é respirar fundo e sentir o gosto do sal da terra, o perfume do verde da cana, é pensar que existem muitos anos pela frente para terminar de construir aquilo que queremos ser e doar. Sabia que tinha um compromisso inadiável com a vida e meu amigo ainda mais, por ainda ter uma longa estrada por esquadrinhar e percorrer. Os dois, banhados de poeira e estupor, comemoramos a vida.

E depois daquele breve instante de terror, a razão foi moldando o porvir, encarcerando o tremor. Os carros que passavam e paravam e as pessoas que saíam do carro e paravam e se espantavam e faziam varredura sobre nossos corpos para contar as cicatrizes, para soprar as feridas. Os conhecidos da vila onde moramos que nos entupiam de perguntas, que queriam se solidarizar com nossa dor, que ofereciam a mão, o ombro, o carro que funcionava, o tempo que seguia já em seu curso normal cobrando a evolução natural dos segundos, das coisas, das coisas a cada segundo. E o que se seguiu foi uma briga lenta, cansativa, pressionada para que o acidente fosse registrado nos anais da seguradora, nas cadernetas da polícia de trânsito, no diário das coisas perdidas que um dia desapareceria, como tem que ser, no porão das coisas esquecidas. Porque o que vale nesses instantes é o que há de acontecer. E se um dia resolvi contar isso tudo é porque meu coração, já passado o trauma e redivivo, pedia para que o passado fosse expurgado e que um véu fosse jogado sobre o carro retorcido. Hoje o carro virou ferro velho como essa memória tão recente parece agora quinquilharia. Há tanto o que se fazer, há tantos a quem se amar, há tanto mar a se mergulhar e essa vida, que parece tão infinda, tão ávida para fazer a gente mais inteiro, que depois daquilo tudo, hoje posso contar as horas com a esperteza da vida ganha. Tá contado, meu coração pediu, e agora é seguir em frente.