quarta-feira, 20 de julho de 2011

Ele e a planta

Um homem e uma planta. Uma relação radical, entranhada, dessas que geram comentários rumorosos e cuidadosa admiração. Não, não é nenhuma história fantástica envolvendo algum jardineiro ou botânico, muito menos uma moralista fábula de Esopo. Me & the Plant é como se autodenomina uma dupla formada por um músico e um cactus(!). A parceira espinhenta e onipresente, no caso, é ela, a inspiração e porta-voz desse dueto que acaba de lançar um álbum com nome tão estrambótico quanto o relacionamento entre os dois. The Romantic Journeys of Pollen(2011) nasceu à sombra dessa brincadeira. A tal planta aparece em videoclipes e responde à imprensa. O misterioso site do duo (www.meandtheplant.com) reforça esse divertido marketing, algo na linha do que fez Damon Albarn com seu grupo virtual Gorillaz, pouco revelando quem realmente está por trás desse assombroso disco todo cantado, e muito bem cantado, em inglês, uma saborosa mescla de folk e indie que chegou aos meus fascinados ouvidos como uma das mais belas e vigorosas surpresas do ano.

Veja clip de "On my Own":



Quando escutei The Romantic Journeys of Pollen, me veio de cara à mente Belle and Sebastian, Elliott Smith, Wilco, Tim Buckley e outros expoentes da melhor cepa do folk e da indie music. Tão grande era a espontaneidade e inventidade das composições que logo fiz ilações afoitas. Apostei de início que o grupo vinha de algum país nórdico, região européia de onde tem brotado bandas que assumiram com talento aquele gênero musical marcado pela suavidade, intimismo e melodias sinuosas. Comecei a desconfiar da minha apressada aposta quando ouvindo “We Want your Genes”, percebi a pronúncia cristalina de uma curta frase em português. Era um “que será, será”, como na trilha sonora de O Homem que Sabia Demais(1956), de Hitchcock, sem o sotaque histriônico da bela Doris Day. Curiosidade aguçada, fiz uma rápida pesquisa na internet e descobri que o alter ego da planta e mentor do grupo era na verdade um brasileiro, um músico e redator de voz forte chamado Vitor Patalano. Ora ora, pensei, quem achava que o melhor do nosso folk e indie estava em figurinhas etéreas e carimbadas como Mallu Magalhães, deve ter levado um susto ao ouvir esse ótimo candidato a Neil Young brazuca.

Findo as dúvidas e elocubrações me entreguei ao deleite de um disco construído com beleza, sensatez e inteligência. Por trás da poesia concreta e melodias inspiradas do trabalho está ninguém menos que Kassin, um dos melhores e mais cobiçados produtores musicais do Brasil na atualidade. Para engrossar o caldo, Patalano, que assume os vocais ao lado da Planta, se cercou ainda de um refinado time de feras para dar vazão à sua até então, para a grande maioria dos pobres mortais, insuspeitada arte. Convidou Rodrigo Barba (ex-Los Hermanos) para tocar bateria, Gabriel Bubu, da ótima banda Do Amor, para arrepiar no baixo, e Marcos Lobato, no teclado, para criarem juntos todo o climão rocker que impressiona na obra. O resultado é pra lá de convincente. Como um jogo bem jogado do Brasil na Copa de 70. Tudo flui com ritmo e intensidade à serviço de canções que arrebatam e que não deixam nada a dever, arrisco aqui de peito aberto, ao que fazem os bons grupos que nasceram em países mais afeitos ao gênero de rock que Me & The Plant defende com tanta sobriedade e paixão.

Ouça a poderosa "Underdog":



O cardápio folk-indie oferecido em The Romantic Journeys of Pollen é farto e generoso. São treze canções competentes que trazem na alma a beleza melódica e atmosfera típica daquelas duas vertentes do rock and roll. A começar pela forte “Death Cheating Tuna Cowboys”, com introdução que remete a música árabe, mas que logo se transforma em algo próximo do country rock com letra e refrão memoráveis. A ótima e mais animada “Butcher The Savior”, folk de carteirinha, tem levada rítmica mais marcada, com coro atmosférico e arranjo espertíssimo. “Cordillera Girl” é puro Belle and Sebastian, “indie fofinho”, como foi denominada pela crítica cabulosa a música dos escoceses. “And It Goes Like This” segue a mesma trilha da delicadeza, com belo solo de cordas e interpretação sensível do vocalista e letrista. Só perde em beleza para a nostálgica “On my Own” e a melancólica “Seagulls”, de estraçalhar corações com seu piano lentíssimo e melodia com ataques atonais que lembram um pouco a fase mais introspectiva e menos pop de Thom Yorke, visceral líder do Radiohead.

Tão cheio de baladas e canções pra embriagar corações e mentes, o álbum do Me & The Plant surpreende também em seus momentos mais ácidos e buliçosos. Duas das minhas preferidas são “The Core”, outra canção com grande melodia que namora com o country e que traz a marcante voz de Patalano prenhe de seu poder, e “Underdog”. Essa última carrega o espírito do rock desgarrado, daquela fonte onde bebeu sedentamente ícones como Velvet Underground e Leonard Cohen. Por tudo o que mostrou nesse seu disco de estréia, não tem como negar a universalidade e talento da música desse carioca de batismo e sua amada Planta. Raro são os álbuns que se mostram tão equilibrados e coesos. Ainda mais em uma estréia. Isso talvez se explique pela maturidade de seu autor, um músico de 39 anos que só agora resolveu dar a cara a tapa. A clara maturação das composições (parte delas compostas na Patagônia) presentes no CD, que será lançado fisicamente apenas em agosto, rendeu uma obra também madura e superlativa. Sólida como uma poderosa planta depurada e protegida pelo tempo. E isso é só o começo.

P.S.: As fotos de plantas que ilustram esta resenha foram retiradas de um site cujo link está no endereço do Me & The Plant. Conheça: http://www.laurieknight.net/

Cotação: 5

Linke-se agora:

http://www.mediafire.com/?324vme840xavg2b

sexta-feira, 8 de julho de 2011

Tempos de telecoteco

Billy Blanco era uma figuraça. William Blanco vulgo Billy Blanco. Era uma época em que o nome artístico precisava carregar uma sonoridade transnacional, estrangeirada. Tive a honra de, em 2009, ver um show do velhinho, só voz e violão, ao lado de seu filho, este com a enorme responsabilidade de não ser o músico acompanhante, mas o guardião do arsenal reunido ao longo dos 60 anos de carreira do pai. Daqueles tempos de bossa. Novíssima. Arqueado pelo peso da idade e talvez já consumido por doenças que a velhice teima em imputar ao corpo cansado, ele mantinha o bom humor no palco, rindo dos brancos impostos cruelmente pela memória falha. Na platéia, formada, em grande parte, por maiores de 40 anos, o sorriso no rosto era fácil. Ecos de um passado feliz, ensolarado, trazidos a tona por músicas de Billy que falavam de amores e dias coloridos. Muitas delas elegia ao Rio de Janeiro, adotado sem reservas pelo paraense de batismo.

Naquele show intimista em Brasília, a platéia cantava a maliciosa “Teresa da Praia”, a linda “Viva meu Samba”, tadução exata do brasileiríssimo ritmo, e a gaiata “Piston de Gafieira”. Billy Blanco compunha com sentimento popular. Em um Rio dourado, marcado pelas noitadas, foi o síndico da farra, elencando matreiro as regras das pistas da alegria, como em “Estatuto da Gafieira” (“O ambiente exige respeito/Pelos estatutos da nossa gafieira/ Dance a noite inteira, mas dance direito”) e “Estatuto da Boite”(“ O estatuto não prevê, mas eu lhe digo/Traga a sua mulher de casa e deixe em paz a do amigo”). Bom sujeito, ele. A música do cara, pra trilhar romances pianinhos ou pra dançar, tinha mesmo telecoteco. Hoje, a figuraça morreu. Grande pena. Nessas horas, só nos resta dizer, com a alma triste e enlutada: vai com Deus, Billy.

Para lembrar o mestre segue algumas provas de sua grande arte.

O vídeo com Juli Mariano cantando “Estatuto de Boite”:



A bela letra de “Viva meu Samba” e uma versão matadora da mesma com Zé Renato, uma das mais belas vozes masculinas da MPB. Cante junto:



Venho do reino do samba
Brilhar no asfalto
E na forma de samba
Vem o morro também
Faço da minha tristeza
Um carnaval de beleza
Que as outras terras não tem
Toda riqueza do mundo
Não vale um terreiro
Onde eu faço o meu samba
Com simplicidade
Com as pastoras na rua
Com um pedaço de lua
E a palavra saudade
Violão
Pandeiro
Tamborim na marcação
E reco-reco
Meu samba
Viva meu samba verdadeiro
Porque tem
Telecoteco

E olhe aí a incrível Elza cantando “Estatuto da Gafieira”:

quinta-feira, 7 de julho de 2011

A dona da voz e da vez

Tudo gira em torno da voz da moça. As peças bem colocadas, calculadas, como num rico cenário operísticos onde tudo deve funcionar para que graves e agudos ganhem inteiramente o vácuo entre as bocas tonitruantes dos cantores virtuosos e os tímpanos amaciados do público no exercício do êxtase. A candidata a diva, uma britânica de pele branquinha e herança italiana no nome e na alma, parece gostar de trabalhar assim, amparada por equações exatas, orquestradas para que ela impere soberana. A estréia de Anna Calvi, uma bela dica de meu grande amigo e visionário Wagner Marataízes, com disco de estréia homônimo, é assim, esquemático, tramado com sensibilidade para que a novata pudesse expor seus impressionantes dotes vocais. E que vozeirão ela tem. É nela que se fia e é destilada cada canção de um encorpado registro fonográfico para o qual já foram tecidas todas as loas por uma maravilhada crítica. Mas, Anna Calvi(2011) tem realmente inegável encanto e é obra para se ouvir repetidas vezes até que andemos com segurança por todos seus becos e vielas emocionais.

Assista ao clip de "Blackout":



A arte de Calvi já foi comparada, pela voz e estilo único, a de musas eternas do rock, como as fantásticas Patti Smith e PJ Harvey. Comparação ousada, afinal, as duas são cultuadas e fazem inquestionavelmente parte da história de um gênero musical que vive se reinventando. A parte mais criativa e referencial, diga-se de passagem. Mas, a inglesinha é ainda, pela curta experiência de vida e amores, uma estagiária nesse universo povoado por quase deusas. O que se evidencia em seu primeiro álbum é o distanciamento da crueza rocker e radical que tanto marcou os primeiros trabalhos de Smith e Harvey, provocado, no caso da estreante, por uma produção mais cuidadosa e cartesiana. Só para traduzir melhor, pensando na segunda cantora da frase anterior, Anna Calvi está mais para Bring you to my Love(1995) do que para um Dry(1992), este uma peça de artilharia devastadora. Isso, contudo, não tira o brilho e a contundência de um trabalho raro e incandescente. Nossa cara iniciante já nos dá, em sua primeira investida, muito pano pra manga.

Voltemos então à voz de Calvi, cheia, diferenciada, que vai, no álbum de estréia, de registros suaves, líricos, a intervenções mais raivosas, tudo sempre a serviço de um rock and roll engajado e sofisticado, sem grande apelo popular, mas longe de ser intransponível. E ainda, o que mais marca, uma voz com intensidade dramática e convincente carga de verdade que escorre por entre os dedos de cada palavra cantada por essa artista que, sem rodeios, ama o que faz. Espertamente a voz da moça só nos é apresentada depois de uma música introdutória, “Rider to the Sea”, instrumental climático que lembra trilha sonora de western spaghetti, com suas cordas chorosas, naquela clássica hora do esperado duelo ao entardecer. Calvi surge então sussurrante na linda “No More Words”, composição que remete a PJ Harvey, poderosa e prenhe de angústia, fluido veículo para as injeções de sensualidade aplicadas sem parcimônia pela cantora. Aí de nós, “obrigados” a ouvir essa garota cantando apaixonadamente e sem compaixão no pezinho de nossos ouvidos “oh,oh my Love”.

Escute a ótima "I'll be your Man":



Quem prefere uma paixão mais radical, Anna Calvi oferece, logo a seguir, argumentos fortes e suficientes para conquistar também esse segmento menos romântico. “Desire” é uma das canções mais rasgadas e rockers do disco, na qual a talentosa artista solta de vez a afinada voz, inapelavelmente, mostrando todo o seu alcance. Ou seja, três músicas depois e a munição está posta sobre a mesa. E a gente, do lado de cá, com as mãos para o alto, ficamos pasmos diante da deliciosa descoberta. A partir daí, entre composições digeríveis e outras nem tanto, a britânica vai cada vez mais conquistando nosso respeito com seu vozeirão. E, como se isso não bastasse, a loirinha conta, a seu favor, com músicas inspiradas e que contribuem para seduzir de vez os inebriados ouvintes. Nesse quesito, o álbum chega a fazer algumas concessões, mesmo que não tão fáceis, ao pop, caminho com o qual ela não se sente muito à vontade. É o caso das mais comportadas “Blackout”, a mais fraca do CD, e de “Suzanne and I” , com guitarra, a cargo da própria Calvi – outra boa surpresa desse trabalho –, mais apática do que normalmente do que se vê sendo executada no trabalho.

Melhor mesmo é ficar com a vertente mais gótica e entranhada do disco. Momentos em que Anna Calvi se entrega a um rock profundo, com sonoridade próxima do experimental, possuída por demônios próprios que dançam em torno de suas próprias dores e mistérios. Amparada por arranjos suntuosos, a artista provoca nossos instintos. É épica e caudalosa em belas melodias, como “Firts we Kiss”, uma das minhas preferidas, cuja dramaticidade da canção é ampliada pela voz potente da inglesa, e “Desire”, de refrão contagiante. A magia continua com “The Devil”, de tom fabulístico, e o suingue da ótima “I’will be your Man”, onde o vocal da cantora dialoga instigantemente com uma guitarra pontual. Anna Calvi encerra com “Love W’ont be Leaving”, com percussão marcada e cordas atmosféricas, uma das mais ousadas desse grande álbum. No fim dessa aventura sonora, fica a impressão de que nos deparamos com uma artista inventiva, pronta para encarar o mundo com uma música inteligente, sem devaneios, rock de gente grande com definida pretensão de fazer história.

Cotação: 5

Vai encarar?:

http://www.mediafire.com/?8q8a7ukkgdod6sd

ou

http://www.mediafire.com/?7uxly7y2l6re7df

terça-feira, 5 de julho de 2011

Sobre cachaça, fuscas e sacanagem

Itamar Franco pegou o elevador e desceu na cobertura onde os mortais não colocam os pés. O topetudo se foi deixando aquela profunda impressão de perda nos conterrâneos mineiros, que se despediram dele ao som da emblemática “Ó, Minas Gerais, quem te conhece, não esquece jamais”, hino usado de praxe nos enterros de autoridades que deixaram alguma herança para um povo. Perda ligada à memória de um homem que teria sido honesto na política, daqueles que fogem do lugar comum e têm na ética uma escola com lições a serem divididas com todos e por todos. Lembro de Itamar em momentos estanques, em situações ligadas, contudo, menos aos seus esteios morais, que os colegas de profissão gostam de citar no velório com falsa consternação, e mais a atitudes tão sofregamente humanas e cotidianas, que provavelmente, são as que vem a tona na cabeça de quem viu o ex-presidente em ação.

Uma delas era o seu apego pela pinga. A branquinha. Era a “maldade” que, de vez em quando, escorria venenosamente da boca daqueles que gostavam de detratá-lo. Mentira ou verdade, esse gosto particular nunca chegou a pesar nas costas daquele homem com topete vistoso, a la Elvis. Além do que, como todo bom mineiro, o amor pela pinguinha, que tem em Minas forte tradição e os melhores e mais qualificados produtores, é mais um sentimento cultural do que exatamente um pecado mortal. Para quem não lembra, Itamar, em reconhecimento radical à popular bebida, instituiu o 21 de maio como Dia Nacional da Cachaça. Minha pobre e castigada memória não alcança notícias sobre qualquer escândalo envolvendo o topetudo que tenha sido provocado pelos eflúvios da “marvada”. Até porque é prática dos nascidos nas Minas Gerais fazer tudo caladinho, como muita discrição, ou como prefere nosso rico léxico, mineiramente. Mais uma prova, respeitosamente falando, de como Itamar era um representante legítimo de sua gente.

A única lembrança de algo próximo a um escândalo e outros dos parcos registros do passado que me levam a Itamar Franco. Esse foi rumoroso e fez a fama, vejam só, de uma colega minha de faculdade. Antes de ser achincalhada pelo Brasil inteiro, Lilian Ramos foi estudante de comunicação, daquelas mais apetitosas e provocadoras de fantasias sexuais entre os meus amigos de classe. Era espevitada a moça, alegrinha mesmo, mas não me recordo de tê-la vista sem calcinha em uma aula teórica qualquer de jornalismo. Despojada que só e ao lado de um festivo Itamar, foi assim que ela foi flagrada super animada no carnaval de 1994. Ora, ora, machismo de lado, a danada só podia estar com más intenções ao postar-se daquele jeito desenvoltinho, bem colada ao presidente da república. O marketing pessoal funcionou na época. Durante alguns dias a moça, definida pela jornalista Thaisa Galvão como “modelo de segunda categoria, atriz de terceira e oportunista de primeira”, foi caçada pelos flashes e imprensa afoita. Durante alguns dias, Itamar, até então mineirinho a toda prova, teve que viver a vergonha da quebra de padrão de comportamento. De qualquer forma, foi uma página deliciosa e francamente humana de nossa história no capítulo dedicado à malícia.

Por último, Itamar provocou em mim e em milhares de brasileiros que tem no carro um irresistível ícone o fim momentâneo de uma dolorosa saudade. Em 1993, uma época em que já havia sido decretada a morte do fusca, o fusqueta, o fusquinha, o presidente provocou a fabricação do último modelo fabricado no Brasil do veículo mais popular e simpático que tivemos. Prateado e garboso, 13 mil besourinhos reluzentes, apelidados carinhosamente de “Fusca Itamar”, voltaram a circular em ruas e avenidas. Era outra paixão nacional que o presidente homenageava e uma resposta nacionalista a invasão de carros importados, liberada pelo seu defenestrado antecessor, o extravagante Collor de Mello. Por uns instantes, em meio a um Brasil economicamente instável, tivemos a sensação da volta de tempos felizes, nostálgicos, nos quais o fusquinha era um dos símbolos mais exatos. Itamar deve estar andando de fusquinha agora onde estiver, talvez ao lado de uma bela e fogosa morena. Que ele fique sempre assim, mineiramente, bem feliz na memória de todos nós.