terça-feira, 15 de novembro de 2011

Ah, se meu apartamento falasse

Cícero em seu apartamento: momentos de solidão e reflexão
Antes havia Alice e esse era um tempo de planos e sonhos, como só uma paixão cultivada com apreço e zelo pode gerar. Era como a gravidez de uma felicidade futura. Alice e seus três cuidadores, um quadrilátero amoroso. E tinha naquela época uns tantos outros que tendiam a se multiplicar na comunhão do mesmo interesse e que viam Alice com olhos admirados tanto quanto podia uma admiração gerar, seduzidos talvez por uma proposta de casamento duradouro, daqueles sérios que prometem se perpetuar no altar, e que ela, sem pudor, provavelmente inspirava. Dizem testemunhas que, quem a viu, fez juras eternas e rezava fervorosamente para que ela amadurecesse com o mesmo vigor com que aparecia nas noites fluminenses. Mas, Alice, dois filhos depois, despediu-se melancolicamente. Partiu sem dizer se voltaria. Dos três orfãos que fizeram de Alice uma banda cultuada na segunda metade da década passada, um voltou tentando reprisar a intensidade que a precoce desaparecida produziu. Cícero Lins é o nome dele. E o primeiro trabalho solo,  Canções de Apartamento(2011), um exercício confessional de precisa beleza. Alice não mora mais naquele apartamento e nem vaga mais pelos bares e palcos. Cícero, esse, ficou no ap. escrevendo canções tão melancólicas quanto a sua sensibilidade podia gerar. E o resultado da viagem interior adentro foi esse disco de apego à poesia e a solidão.

Assista ao clipe de “Tempo de Pipa”:



Não ouvi os dois filhos da Alice, Anteluz(2005) e Ruído(2007). Deles, dizem que muita guitarra havia, um pendor para o rock que não mascarava no reboco das construções melódicas o flerte com a MPB. Canções de Apartamento é, nessa perspectiva, o namoro enfim consumado com o gênero. E uma assunção explícita, com nome aos bois e tudo. Pipocam as influências descaradas e escancaradas de alguns ídolos de Cícero, que aparecem marcados nas letras instáveis e nas melodias inspiradas. Está lá o Caetano tropicalista de “Baby”, tomando emprestado o violão do baiano na abertura daquele clássico para a concretista “Vagalumes Certos”, que também é citado na letra: “Vamos ver um filme, ter dois filhos, ir ao parque, discutir Caetano”. Tom Jobim aparece, por sua vez, nos passeios de Cícero de mãos dadas com a Bossa Nova em uma, duas canções. Na mais direta delas, “Pelo Interfone”, o compositor carioca reencontra Dindi, um dos personagens mais ilustres daquela requintada MPB, para fazer um lamento sentido: “Ai, Dindi, se tu soubesses como machuca, não amaria mais ninguém”. O genial pai de Dindi ressuscita objetivamente na canção de Cícero, ao lembrar do “disco de Jobim” que embalou um inesquecível romance. 

Capa de "Canções de Apartamento"
E como todo autor que desconhece fronteiras e se pluga nesse mundo veloz que come e regurgita com a mesma dinâmica desde lampejos geniais, como a música de Tom Jobim e Tom Waits, a baboseiras como Justin Bieber e Lady Gaga, Cícero permite-se beber em fontes estrangeiras. As mais consistentes, é claro. É possível sentir, de raspão, a presença de poucos e bons grupos de rock que fazem a história do gênero. Do agora previsível Coldplay, há a guitarra climática e o tom menor no meio da tristíssima “Eu não tenho um barco, disse a árvore” coroando uma letra sobre o fim de uma relação amorosa. “A gente sempre deixar de cuidar o que se tem na mão. Mas, é sem querer. É sempre sem querer”, justifica os versos desencantados. Há ecos do cultuado Radiohead nas entranhas de “João e o Pé de Feijão”, talvez a mais bela construção melódica desse Canções de Apartamento. Barulhinhos eletrônicos e um violão acústico minimalista e soturno reforçam essa sensação. Quem se dispor a fazer uma decupagem melhor do disco, verá outras referências musicais, pops ou não, que fazem do trabalho do carioca uma instigante obra em aberto nessa bacana junção de rock, em menor grau, e MPB.

Ouça "Ensaio sobre ela":

Cícero destila em sua estréia canções que, além das referências citadas, trazem uma assinatura própria. A maioria delas marcadas por uma poética low-profile, orgânica, prenhe de intimismo. Esse diário pessoal do artista define uma identidade única a músicas sobre amores perdidos, casas desarrumadas e solidão. Esse universo é desenhado por uma poesia ora seca e enxuta ora mais discursiva. Em “Vagalumes Cegos”, a letra é cheia de pontos e imagens estanques, como num mapa todo segmentado, concretista. “Nem sei, desses dias cheios/Meio-dias gastos/Elefantes brancos/Vagalumes cegos, meio emperrados”. Meio umbigo dele, na verdade. Cícero acerta o alvo quando mais explícito, como na bela “Açucar ou Adoçante”. “Entra para ver como você deixou o lugar/Mas tira o sapato pra entrar/Cuidado, que eu mudei de lugar algumas certezas pra não te magoar”. Nos dois casos, ansioso ou mais barroco, há um poeta que busca se mostrar por inteiro, sem medo do revés da crítica. E olhe que a parte mais enfezada dela chegou a questionar a qualidade dos versos do autor. O que é lícito, afinal Cícero é apenas um jovem, um promissor jovem, em busca de um lugar ao sol tentando, com coragem e paixão, com erros e acertos, qualificar seus versos. 

Poeta sensível, Cicero tenta impor sua escrita
Letras a parte, Cícero mostra-se mais consistente nas melodias. Delicadas e passionais, as canções amparam-se em arranjos quase todos atmosféricos, emotivos, com o uso equilibrado de pianos, violões, acordeão e percussão marcada. “Tempo de Pipa”, que abre o disco, é o exemplo mais acabado dessa sonoridade apascentada, serena que cumpre bem o papel de ser, sem arroubos, parceira, amiga das valorizadas letras das músicas. Sem arroubo também é a interpretação do artista. De voz comum, o cantor e compositor leva suas criações num tom menor, lembrando o Los Hermanos do disco Ventura (2003). Cícero arrisca soltar a quase sempre represada voz numa rápida passagem de “João e o Pé de Feijão” e em “Ponta Cego”, esta última próxima do choro sentido para cantar, contraditoriamente, a chegada da sexta-feira. Coisas de poetas sensíveis. E é a sensibilidade tão exposta em Canções de Apartamento que fazem do CD um trabalho meio fora do tom no cenário nacional, mas que, ao lado de outras revelações do gênero como Marcelo Jeneci, Tiê e Pélico (leia resenha aqui), mostra uma tendência dentro de uma nova e estimulante MPB. Deixe-se levar.

Cotação: 4

Ouça com atenção:

ou

sábado, 5 de novembro de 2011

Riso nostálgico

Selton Melo faz um filme onde a nostalgia dá o tom
Era mambembe daqueles de dar pena. Não havia lona, nem leão, nem sequer um mágico de araque que fosse. O espetáculo era emoldurado por lençóis, chitas coloridas que o vento mais forte empurrava de um lado para o outro desafiando aquela estrutura de frágil e temerosa trama. Velhas cadeiras mal ajambradas faziam as vezes das arquibancadas, ocupadas naquele dia franzino de verão por trinta pessoas contadas nas pontas dos dedos. Anônimo, o circo era a única opção de diversão naquele vilarejo praiano mal povoado de turistas. Acho que de turistas mesmo só eu e uma amiga que, embalada pelas férias, topava todo tipo de programa, de tomar picolés de suco ensacados em plásticos transparentes até enfrentar pesadas trilhas nas dunas escaldantes que mais parecia, para algum observador incauto, o pagamento de uma preciosa promessa. Naquele dia fomos ao circo. Dois momentos tornaram-se perenes em minha memória, o equilibrista Juvenal e os palhaços Pinguelim e Manguaça. O primeiro trabalhou contando com a torcida contra de uma criançada inquieta e barulhenta e o próprio peso, gordinho que estava. “Arriou, Juvenal”, gritava atrás de mim um capeta em forma de guri. Graças a deus, Juvenal não arriou. Pinguelim e Manguaça eram excepcionais, donos de um carisma, delicadeza e humor hoje raros de se ver debaixo de algum teto de circo, já tão poucos, do Brasil. Ri feito criança do alto, na época, de meus vinte e poucos anos, Puro Sangue e Pangaré me fez lembrar carinhosamente daqueles dois sujeitos daquelas feéricas férias.

Assista ao trailer de O Palhaço:




Paulo José e Selton Melo em química impecável: pura emoção
Puro Sangue e Pangaré são os personagens principais de O Palhaço(2011), segundo trabalho do também ator Selton Melo na direção de um longa-metragem (o primeiro é Feliz Natal, de 2008). Fui ver o filme envolto em curiosidade. Afinal, crítica e público tinham reverenciado este ano a obra no estreante Festival de Paulínea, centro de produção cinematográfica que está virando nossa Hollywood. Mas, também porque o tema me era caro. Sempre fui fascinado por circo, principalmente por aquela figura em tons exagerados que inspira gargalhadas e inspirou a fita de Melo. Nos dez primeiros minutos dentro da sala iluminada pelo projetor senti que muitos poderiam sair dali decepcionados. Quem estava esperando pelo humor escrachado ou o riso solto prometido pelo título singelo, tinha tudo para ficar inconformado. O que se via no transcorrer da história era um sorriso represado, tímido, produzido por uma narrativa que privilegia principalmente a reflexão e a sensibilidade. O argumento é simples, direto: Pangaré é o palhaço encarnado por Benjamim(Selton Melo) em crise existencial que resolve abandonar o Circo para encontrar uma personalidade que ele acredita estar perdida. Para isso, conta com a concordância do pai, que interpreta o outro palhaço da dupla, vivido com intensidade por um grande, enorme, Paulo José.

A trupe chega em uma nova cidade, dose felliniana de alegria
Com essa história doce e sem grandes arestas, O Palhaço torna-se a cada minuto passado uma agradável surpresa. É um pequeno grande filme insuflado de delicadeza. Selton Melo apostou num tom ingênuo de um país rural num momento em que éramos um pouco mais românticos mesmo, os anos 70 do século passado, período em que se desenrola esse quase conto de fadas. Assim como numa fita da Atlântida de Oscarito e Grande Otelo. Sem o histrionismo típico dos diretores daquele estúdio que pesavam a mão para ganhar a platéia e justificar elevados orçamentos. Melo não quer jogar tão escancaradamente para a galera. E essa é uma das grandes virtudes do longa-metragem. O cineasta, com a ajuda de sua econômica e precisa interpretação, evita o exagero, a farsa, o que seria uma tendência já que explora a vida circense. Há muito não via personagens tão humanos e sinceros habitando sem sobressaltos uma tela tingida, nos últimos anos, por uma desumanizadora espetacularização. O Circo de Pangaré e Puro Sangue está mais para o universo felliniano, que mistura com equilíbrio o real e o non-sense, do que para uma rasa trama global. E é assim, revelando o mundo interno de artistas mambembes, uma família pra lá de especial, que o diretor nos emociona.

Essa emoção tem a ver com o poder puro das imagens e da beleza de sentimentos que move os personagens. Assim como num filme mudo. E O Palhaço também é nostálgico nesse quesito. Não há verborragia. Quase não há virgulas, apostos nos curtos e poucos diálogos. Há muitos pontos, desenhados por um pincel invisível e que cala fundo no espectador. A relação silenciosa entre pai e filho palhaços, construída com vigor na esplêndida química entre Paulo José e Selton Melo, que tem a apoteose na despedida dos dois personagens, o ponto de virada do filme. A visão repentina em Pangaré do romance, exercício enevoado pela dedicação extrema ao ofício de fazer rir, que o deixa tartamudo, perplexo diante da moça bonita. Sensações extremas pontuadas por gestos e olhares. Tem a menina do Circo, que tudo observa com a fome do conhecimento. E há ainda o cheio de significados ventilador, objeto mudo de desejo do jovem palhaço. Tudo nos leva a contemplação mansa, à compreensão da vida sem novidades ou grandes emoções daqueles personagens. Nos leva à mergulhar na tristeza do palhaço angustiado de Melo, um homem sem identidade e sem comprovante de residência, que precisou fugir para entender que seu destino sempre esteve ali na sua cara.

Na caravana enfileirada por carros que mais parecem calhambeques, o Circo Esperança segue mambembe de cidade em cidade. O Circo de Selton Melo transporta artistas, artífices de ilusões que dispensam um vida luxuosa para dar ao carente espectador o luxo de uma arte caseira e redentora. O ator e diretor homenageia um tempo de delicadeza mostrando maturidade e uma invejável coragem e raro desprendimento, acertando com louvor o alvo pretendido. E de quebra, ainda resgata mestres do riso, em participações impagáveis, casos de Moacir Franco, maravilhoso e hilário como o delegado Justo, e Jorge Loredo (intérprete do clássico “Zé Bunitim”), no papel não menos engraçado de um canastrão chefe de escritório. O Palhaço é uma bela e envolvente lição de vida, um desses filmes que nos fazem sair do cinema com o coração cheio de ternura. E nesses tempos de palhaços que ocupam vagas no Congresso Nacional para virarem homens pretensamente sérios, de humor preconceituoso e chulo nos programas de televisão que tira da risada sua função mais sublime, rir de mansinho e com cumplicidade com uma história terna e bem contada é um verdadeiro presente. E aí, me dá vontade de ir para um circo mambembe qualquer, no interior profundo do Brasil, para rever algum Pinguelim e Manguaça em sua missão sagrada de fazer da gente um pouco mais criança.

Cotação: 4