terça-feira, 30 de junho de 2009

À sombra do Rio Branco

Dona Maria dos Remédios tinha sempre um sorriso guardado na manga. Uma simpatia desinteressada, de quem vive longe, muito longe mesmo, do cotidiano vociferante da cidade grande. Ela pôs oito filhos no mundo e a todos eles deu a incumbência divina de cuidar cada um de uma planta curadeira. Conhecimento e cura. Maria acredita de coração. Não tem quem não conheça ali aquela mulher de gestos largos, a embaixadora da natureza num local onde ser amigo da natureza é um mistério e uma obrigação. Dona Maria dos Remédios é uma mulher de Santa Maria de Boiaçú.

Santa Maria do Boiaçú é um pedaço perdido de civilização entre árvores gigantescas que formam o paredão amazônico em Roraima. Uma vila com pouco mais de 300 habitantes a 300 km de Boa Vista. O Rio Branco é o caminho que leva até lá. O barco e voadeira, os transportes mais comuns. O avião riscando e se arriscando no céu quase sempre carregado de nuvens negras a outra opção. As duas opções valem o encontro com aquela natureza arredia, valem o contato com a cidade e seus habitantes de olhos e dentes abrasivos. Estive lá e me perdi no encantamento daquele Brasil redescoberto.

Um povo à sombra do Rio Branco, as poucas centenas de moradores da cidade têm sangue índio, sangue denso e verde correndo nas veias. Os olhos são generosos, infinitos, quase sempre repousando em bolsas emoldurantes de carne, como se espragatados em redes preçuiçosas. Olhos que acompanham o Rio Branco soberano e as pessoas que passam na rua. Gente que vive sem sobressalto, que vive com pouco, sobrevivendo da agricultura parca e da pesca normalmente refém das intempéries do tempo. E que tempo rei aquele.

A água é companheira saliente, insubmissa. Corre incansável no rio que nunca se cala. Encharca o chão, os quintais e jardins que circundam casas de madeira ribeirinhas em tempestades imprevisíveis que transformam dia em noite. Vi uma manhã assim ameaçadora, mas antes vivi uma inesquecível tarde de sol, um sol luxuriante, ao lado de pessoas que não mendigavam sorrisos, que entregavam-se inocentes às lentes da câmera fotográfica do meu celular fajuto, iluminando tudo ao meu redor. Fotos sem muito contraste, que reproduzo aqui, mas que afagam meu coração selvagem sempre que as olho.

Tão longe de tudo, aquele povo passava as horas e os dias à mercê do que a natureza podia oferecer. Talvez não esperasse tanto dos homens. Talvez nem de Deus. Talvez esperasse um dia em que tivesse mais riqueza, aquela tilintante que a natureza não poderia oferecer para eles. Enquanto isso não acontecia, eles giravam a manivela do tempo a seu favor. Sem carros nas ruas, sem medo de assaltantes, sem grifes sobre a pele, sem a agonia dominadora dos computadores.

Talvez aquele povo quisesse até um pouco mais de adrenalina ou as benesses do mundo moderno que acompanhavam na televisão. Imagens de modernidade vertidas pela parabólica até a hora em que os geradores roubavam o último pingo de energia elétrica. Depois afogado no silêncio do verde amazônico com a trilha sonora de sapos barítonos, de grilos esfuziantes e a água que sempre lembrava sua pujança naquela região, talvez aquele povo pensasse em sair dali, seguindo o Rio Branco que apontava sua seta para a civilização.

Mas, se isso acontecesse, ou a civilização rompesse distancias e florestas, meu coração selvagem ficaria – mesmo entendendo tudo – entristecido. E eu perderia – talvez – o sorriso descompromissado de dona Maria dos Remédios. Mas, ficaria para sempre com a memória daqueles olhos e dentes sem fim.

sexta-feira, 26 de junho de 2009

Rock chá das cinco

A bela e invernosa ilustração da capa do disco nem de longe antecipa o conteúdo de Bandages for the Heart, segundo álbum dos suecos do Lacrosse. Não há choro nem vela neste trabalho alegre e sem firulas. Os seis integrantes do grupo abriram a janela de seu som e deixaram o sol entrar reforçando ainda mais, com composições “fofinhas”, a identidade com os indies de plantão.

Lacrosse
é assim mesmo, gracioso e pop. Estão mais enérgicos do que em This New Year Will Be for You and Me(2007), a estréia. Impossível não bater o pé no compasso, acompanhando a alegrinha “We Are Kids”, a música de trabalho do álbum e a mais bacana desse recente repertório do grupo. Tem leveza e levada rítmica. O grupo adiciona outras doses de açúcar e afeto, como em “All the Little Things That you Do”, com seu teclado envolvente e coro tribal. E também com a climática música que dá nome ao CD, que tenta pegar o ouvinte com sua arquitetura mântrica.

“I See a Brightness” vai na mesma toada indie ensolarada, lembrando Belle and Sebastian, com seus sininhos, utilizados, aliás, cansativamente em todo o álbum, e guitarras açucaradas. Feliz em sua caravana da alegria, o sexteto ainda chama para o clima de festa dominical na sugestiva “It’s Always Sunday Around Here”, com toda a delicadeza, no arranjo, que a título sugere. Haja mel na boca.

Ao final da audição, mesmo com toda boa vontade, Bandages for the Heart, a sensação que fica é que o Lacrosse pouco ou nada acrescenta ao indie pop que os amantes do estilo estão acostumados a consumir. A banda tem músicos competentes e uma boa cantora, Nina Wähä, com sua voz de menina tinhosa. Mas, não vão além daquela fronteira do rock chá das cinco, espertinho e feliz, mas sem grande “aproach”, sem grande pegada.

Lacrosse é sim legalzinho, como na já citada “We Are Kids” ou na pseudo punk “You are Blind”, mas desconfie quando alguém usa de muitos diminuitivos para traduzir o som de uma banda. Ainda mais quando a humanidade está precisando mesmo é de um rock mais superlativo.

Cotação: 3

Sua colherada de açuçar na boquinha:

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quinta-feira, 11 de junho de 2009

Reciclagem mal feita

Gostinho requentado dos anos 80. Na receita, um rock misturado à eletrônica kitsh com um quê da guitarra displicente do Talking Heads e da alegria do Devo. Essa salada, algo estragada, é o Datarock, queridinhos da cena new rave. Os noruegueses Fredrick Saroea (vocal, guitarra, bateria e teclados), e Ketil Moses(baixo, teclados,programação eletrônica e backing vocal) lançaram recentemente o segundo álbum da carreira, o cansativo Red(2009).

Teve muita gente que elogiou o debut da banda, Datarock Datarock(2005). E foi mesmo legal ver a performática dupla fazendo um mix dançante de rock debochado com eletrônica e um teclado de churrascaria. Mas, o que era um revivalismo saudável se perdeu na repetição vazia de seu sucessor. E o disco já abre mal com “The Blog”, em um clima space rock, com aplausos, vocoder e tecladinho safado.

O teclado estilo anos 80, com uma pendência para o dance chinfrim do Erasure, o texto falado e o corinho, numa elogiável referência a Mr. David Byrne, se repetem durante todo o disco. Às vezes vão buscar inspiração nas texturas oitentistas criadas pelo mago Brian Eno, como em “Molly”. Essas fusões estão condensadas debilmente em “True Stories”, não à toa o título de um disco e filme dos Talking Heads. A dupla peca ainda pelos refrões fáceis, como em “Dance”, mas o eco logo desaparece de nossa memória.

E como se não bastasse esse claro mergulho de barriga naquela saudosa década, ainda tem a referência ao Style Council, na elegante “New Days Dawn”, umas das raras boas canções desse álbum que apenas ratifica a voz grave e bonita de Saroea. Com esse Red, o Datado rock, desculpe, Datarock com sua new raiva, quer dizer, new rave, aproveitou mal a tentativa de reciclar os embalos dos anos 80.

Cotação: 2

Veja se dá pé no controlCcontrolV:

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domingo, 7 de junho de 2009

Enfim, o disco prometido

A capa do disco é uma referência explícita a Their Satanic Majesties Request, disco buliçoso do Rolling Stones. O que talvez denote, subliminarmente(?), o propósito dos britânicos do Kasabian de fazer um álbum que os coloque na linha de frente do rock da terra da vovó Elizabeth. E eles dão um passo certeiro nessa direção com o excelente The West Rider Pauper Lunatic Asylum(2009), no qual finalmente acertam a mão, após alguns rascunhos musicais e muita expectativa.

Logo de cara que você percebe a intensidade da obra que tem em mãos. A primeira do disco que chega aos ouvidos, “Underdog”, é rockão dos bons com guitarras soltas e melodia redonda. Aí a coisa dá uma desandada com “Where Did All The Love Go?”, na qual a primeira parte da composição chama irresistivelmente o refrão do clássico rock baba “Sweet Child O'Mine”, do Guns N' Roses. Essa sensação se esvai depois, mas a música não convence, com seu arranjo de corda encorpado que, em certo momento, pega o caminho pra Índia, com uma citação escancarada à música tradicional daquele país.

A coisa piora com “Swarfiga”, uma canção curta – ainda bem – que desaba numa enjoativa cama eletrônica. Completamente dispensável. Um CD que começa, enfim, algo descompensado – como quem desperta de uma letargia momentânea – para ir se aprumando com firmeza logo depois. Os bons acertos vão acontecendo a partir da quarta música, a ótima “Fast Fuse”, que abre com um riff de guitarra poderoso e segue elétrica, arredondada por um coro que só reforça o clima dançante.

Já orientado em sua busca de fazer um álbum realmente vigoroso, Kasabian navega em músicas de melodias sedutoras. Caso de “Take Aim”, que flerta novamente com o oriente em sua introdução e belisca a eletrônica num bela e bem construída balada roqueira, e de “Thick as Thieves” música, que lembra o rock setentista de Beatles com seu apelo pop. Nesse ponto de disco não tem mais jeito: o ouvinte já está convencido do talento do grupo.

A maturidade de Kasabian, estabelecida em seu terceiro disco de estúdio, configura-se em cada detalhe. A levada progressiva e psicodélica se faz presentes em “West Rider Silver Bullet”, com sua texturas suaves, percussão marcial e interferência precisa dos teclados. E também na utilização pragmática da eletrônica – elemento que insistem em usar - na pegadora “Vlad the Impaler”, está última com refrão pegajoso e um vídeo meio trash rolando no You Tube. Ou ainda na lenta e reconfortante “Hapiness”, boa pra adoçar qualquer dia.

O fato é que, para nossa felicidade, depois da decepção que foi Empire(2006), o segundo disco da banda, os ingleses do Kasabian parecem ter se achado. The West Rider Pauper Lunatic Asylum é um disco para figurar fácil fácil entre os melhores do rock internacional. Ouça de com força.

Cotação: 5

Caia na rede:

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sexta-feira, 5 de junho de 2009

Música de peito aberto

É interessante como a honestidade sempre ganha corações. Ser sincero num mundo tão cheio de falácias e abarrotado de tantas informações contraditórias é uma virtude extremamente louvável. Na música acontece o mesmo. Dois dos discos de MPB mais interessantes do ano têm aquele elemento como seu melhor e mais saboroso tempero. O primeiro, Sweet Jardim, da paulistana Tiê, foi comentado aqui neste blog. O segundo, São Mateus não é um lugar Assim Tão Longe(2009), de Rodrigo Campos, passo a comentar agora.

Assim como Tiê, o também paulistano Rodrigo Campos investe na criação de sensações e emoções cotidianas para elaborar o seu álbum de estréia. Bacana a entrega descompromissada desse rapaz que nasceu no interior e, aos 3 anos, mudou-se para São Mateus, bairro de periferia da Zona Leste da megalópole São Paulo. Tudo o que isso significou, e o posterior crescimento que o afastou de lá, estão lá vestido incisivamente de poesia no CD.

É incisivo o discurso musical de Rodrigo quando passeia nas memórias de infância e traz à tona velhos amigos ou conhecidos do bairro. Sua poesia despojada e elíptica, feita de frases curtas como nos contos do curitibano Dalton Trevisan, chega a ser tocante. Como na linda "Mangue e Fogo" em que lembra de duas crianças perdidas na cidade suja. Uma delas Marina: "A vida de Marina era no mangue atrás da escola militar/ Cresceu nos arredores do colégio catando caranguejo/ Vendendo no farol/ Chupando oficial por dez real". Mais cru, impossível.

O compositor passeia pelo seu antigo bairro de peito aberto e com uma linguagem poética que não mascara, mas também não escancara o mundo cão da periferia. Usa inteligente da sutileza para falar da violência, como em "Cavaquinho", onde pergunta pelos velhos amigos, que desapareceram. Fica a sugestão no ar de como estes deram um chá de sumiço. E puxa pela nostalgia como em “Rua Três”, onde conta a história de um velho morador que volta a São Mateus e, de repente, se vê emocionado com trinta anos, depois de rodar o filme de toda a sua vivência ali.

Essas crônicas poéticas do cotidiano, quase todas assinadas por Rodrigo, estão muito bem acompanhadas das melodias. Essas contaram com parceiros de fé do paulistano, gente competente de sua geração, como Beto Villares, João Taubkin e Curumim, que emprestaram ótimas texturas às composições. O baixo potente de João Taubkin esquenta a funkeada “Brother José”.

Metais e um violão melancólico emprestam beleza a "Califórnia Azul", num disco com vários batuques que ora vão em direção ao samba de quintal – escola pelo qual Rodrigo passou como cavaquinista - como em "Fim da Cidade" e em "Isac", ou rende-se ao sambinha mais leve, como na boa "Sem Estrela". Vale citar, ainda, a voz marcante e rouca de Luisa Maita, na foto acima com Rodrigo, intérprete de quatro canções do álbum, que logo deve estar despontando como uma boa surpresa.

Mas, São Mateus não é um Lugar Assim tão Longe, como seus arranjos corretos, não pode ser visto como um disco de samba, no sentido mais tradicional da palavra. É uma declaração de amor à vida feita com delicadeza e talento. Seja bem vindo, Rodrigo, ao mundo dos bons. Seja muito bem vindo.

Cotação: 4

Vá até São Mateus:

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quarta-feira, 3 de junho de 2009

Excesso de maquiagem

Quem viveu com vontade os anos 90 e mergulhou no rock visceral de bandas como Nirvana, Smashing Pumpkins e Sonic Youth, só para citar algumas das mais inquietas daquela década, sabe que havia uma entrega apaixonada naquilo que os músicos faziam. Quando o Silversun Pickups lançou Carnavas em 2006, muita gente viu respingos da honestidade e da energia daquelas ótimas bandas na bem intencionada turma californiana.

Meio shoegazer, na levada instrumental, e meio dream pop, na construção inteligente das texturas melódicas, o grupo norte-americano fez um promissor disco, atiçando a crítica e o público indie. O vocalista e guitarrista Brian Aubert, o baterista Chistopher Guanlao, a baixista Nikki Monninger e o tecladista Joe Lester acabaram criando uma grande expectativa para o definidor segundo trabalho. Swoon(2009), o dito cujo, apareceu mas... o ouro antevisto com a estréia se mostrou de tolo.

Talvez o grande pecado de Swoon seja o excesso de produção. Provavelmente, os elogios advindos com o primeiro trabalho devem ter mexido com a cabeça dos californianos. O que é muito normal. Quem, tomado pela bajulação e pelos louros de um bom trabalho não arriscaria um segundo passo estrategicamente cerebral para ratificar as expectativas? E é assim que soa o disco: racional em demasia na compreensível busca da banda em abocanhar uma maior parcela de fãs.

Aí então, aquilo que parece bacana e refrescante soa superficial. Você tenta até gostar de músicas como “There's No Secrets This Year”, que carrega a influência tão assumida pelo grupo do Smashing Pumpkins, mas não enxerga nela uma alma própria. É como se fosse um decalque incolor. Um revivalismo que se esconde atrás de uma produção impecável. Mas, todos sabemos, não é apenas o apuro técnico, amparado pelos botões mágicos de um estúdio de gravação, que faz um bom disco.

E olhe que há uns respiros criativos no álbum, a exemplo da intensa “Growing Old is Getting Old”, com um quê de U2 no uso das guitarras, e na esperta “Panic Switch”, a dançante música de trabalho de Swoon. A pesada carga de maquiagem termina por atrapalhar o produto final, como uma puta naturalmente bela que resolve exagerar no visual para chamar a atenção. Ainda acho que os Silversun Pickups podem fazer melhor. E, tenho certeza, ainda vão fazer mais lá pra frente.

Cotação: 3

Arrisque:

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ou:

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Se quiser tentar o primeiro, Carnavas, vá de:

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