quarta-feira, 16 de maio de 2012

Groove pra curar a alma


Depois de 9 anos, B Negão retorna com a mesma inspiração
B Negão conseguiu de novo. Há nove anos, um som pesado e com invejável groove veio encartado em forma de CD em uma revista atrevida. Em 2003, o louco Lobão estremecia as bancas de revistas com uma publicação metida a independente e cheia de promessas de sonoridades alternativas, a falecida precocemente Outracoisa. E o debut não poderia vir melhor acompanhado. Trouxe grudadinho na capa meio sem graça o álbum Enxugando o Gelo. O primeiro solo do parceiro de Marcelo D2 no explosivo Planet Hemp mostrou suas armas: uma mistura iluminada de rap, rock, funk e outros esquentados ritmos de gênese negra que marcou toda uma geração. Um inegável clássico que em 2012 ganhou um irmão, tão robusto e instigante quanto o primogênito. Sintoniza Lá (2012) é o álbum que B Negão devia a ansiosos fãs, que de tão cansados de esperar o sucessor de Enxugando, já até haviam aposentado as expectativas. Mas, que nada. Repleto de metais acachapantes e energia pra lá de positiva eis que o cara retorna com os sensacionais instrumentistas do grupo Seletores de Freqüência para mais uma vez fazer história. Esse, não tenha dúvida, é pra tocar no baile.

Vídeo alternativo de “Reação(Panela II)”:



Difícil não fazer comparação com o álbum de 2003. O rapper/sambista/roqueiro/funkeiro carioca volta inspirado na mesma freqüência e com as referências musicais, e até algumas novas, ainda mais lapidadas e que moldaram sua trajetória nos palcos. Ex-Planet Hemp, ex-Funk Fuckers, ex-Turbo Trio e figurinha fácil nos discos de amigos em louváveis participações especiais, o cara passou esse tempo todo afiando ainda mais seu talento de misturar gêneros musicais prá lá de dançantes. Com seu segundo trabalho solo, conseguiu chegar mais próximo da batida perfeita do que havia tentado o parceiro D2. Foi, na verdade, além disso. Estimulado por uma vontade incontrolável de dar toques, de gerar informações que ajudem as pessoas a crescer, a encarar o mundo de frente, foi atrás da “cura pelo som”. De uma música que reconfortasse almas açodadas por esse mundo “panela de pressão”, esse império que é “artigo perecível”. Tá tudo lá nas linhas e entrelinhas de letras com mensagens politizadas ou naquelas que são simplesmente elegias ao poder exorcizante do groove e da música negra.


B Negão e os seletores: sintonizados com a black music
Sintoniza Lá e B Negão acima de tudo doido para fazer você dançar. Sintonize então logo na primeira música, “ÉA. Alteração”, em que os metais “em brasa, faiscando”, como ele mesmo sugere numa das letras do disco, introduz um rap/funk estralando de bom. “Música gerada para causar alteração”, conceitua de cara, convidando o ouvinte, provavelmente já afoito nessa hora, a aproveitar aquela “energia de primeira qualidade em movimento”. Fácil de embarcar na metaleira dos Seletores de Frequência, tinindo na vontade acesa de fazer você mexer o corpo, sem nunca deixar de lado o discurso político e cheio de pequenos achados de B Negão. De quebra, a música ainda conta, no coro, com a indefectível voz miúda e agradável da cantora Céu, parceira de todas as horas do rapper. Sorte dele. E aí, já com o cara do outro lado sintonizado e alterado, os seletores atacam com um samba rock de primeira, suingado e de refrão pegajoso. “O Mundo(Panela de Pressão)” é a seqüência perfeita pra música de abertura do CD, abrindo espaço definitivamente para aquele mundo de possibilidades e sons que os cariocas sabem ocupar muito bem.

Escute o dub “Sintoniza Lá”:


E se você espera aqueles dubs e raggas e reggaes espertos que B Negão engendra para viagens mais espertas ainda do ouvinte, o cara oferece duas ótimas pedradas. “Reação(Panela II)” é um dub traqüilinho, remédio certo para aqueles que estão com o “HD cheio” e precisam dar uma relaxada de leve, alinhados, é claro, com a mensagem esfumaçada e crítica: “O recado já foi dado, mas o nego não está ligado. É que o barraco está muito zoado”. Letra direta, sem qualquer apelo poético ou literário. Estilo B Negão e Seletores de Freqüência. Pra comunidade se tocar, é só sintonizar lá. Melhor e ainda mais viajante é a superbacana música que dá nome ao álbum. “Em qualquer parte do universo, em qualquer parte do planeta, é tudo uma questão de sintonia. A freqüência de energia de alta qualidade. Sintoniza lá”, canta o rapper nessa composição que convida inexoravelmente para a pista e para algumas cositas mais. “Isso é barulhinho bom, saindo de seu estéreo”, complementa o cara. E é verdade. É só surfar na onda desse som delicioso e bem executado.

Enfim, em Sintoniza Lá, tudo é uma questão de groove. Tem que encontrar o beat e a batida exata para que o som flua e flutue na medida certa. B Negão canta em “Chega pra Somar no Groove”: “Todo som se resolve quando chega no groove”. O carioca sabe bem o que fala e o que faz, para a alegria de nossos pés e coração que batem e se movimentam na sintonia do tambor e da música dançante, exposta feito ferida que não para de sangrar, deste disco. Sangue negro. Do melhor e mais admirável. Nesse belo CD, B Negão e os Seletores de Freqüência afinam seu lado pop com canções feitas com esmerilhamento para agradar gregos e baianos. Ponto para a produção do brother Pedro Garcia. Até quando atacam de hardcore em “Subconsciente”, a faixa mais fora de tom, uma lembrança dos tempos de Planet Hemp, a banda acerta. Até quando tocam com competência o refinamento do jazz, na boa “Vamo”, os caras ganham respeito e falam à epiderme. Sintoniza Lá é, enfim, uma seqüência sublime e bem acabada – que beleza – de Enxugando o Gelo. Discaço para levantar muita festa e fazer a cabeça de novas gerações. Vai lá. Sintoniza nele.

Cotação: 5

Sintoniza, brodim:

segunda-feira, 14 de maio de 2012

O sentimento das canções


Os ingleses do iLiKETRAiNS fazem a farra dos sentidos
Tem nomes e sabores e cores e objetos que chamam a atenção da gente de testa. E pegam-nos assim num átimo forçando de jeito avassalador a nos aproximar deles, atiçando nossa sempre ávida curiosidade. São armadilhas da vida. Ávida vida. Foi dessa forma com o iLiKETRAiNS, com esse nome de banda grafado assim como um espirro, todas as letras juntinhas, cheias de altos e baixos, coladas como casais de festa junina bem ensaiados na hora da grande roda. E eu também gosto de trens, os da infância, em seus trilhos com a mesma trilha musical sonolenta e a mansidão de resguardo para chegar ao destino. Quando ouvi Progress Reform(2006), o primeiro disco desse grupo inglês, o sonoro e delicioso nome de batismo não bateu com o que ouvi. A música não me disse muita coisa, nem mesmo com o incentivo da crítica que elogiou o trabalho, mas o nome da banda permaneceu. Veio o segundo CD, Elegies to Lessons Learnt (2007), que também passou batido, talvez por um momento açoitado de minha vida, e por fim, The Shallows (2012), o terceiro. E é desse que quero falar.

Assista ao vídeo de “Deception”:


The Shallows é uma farra para os sentidos. Como uma caminha almofadada, king size, tamanho real, com caros travesseiros de penas de ganso, onde você se deita como se abraçado por nuvens de algodão. Bom de sentir. Mas, calma, nem tudo é assim terno. Como no conto da princesa hipersensível de Andersen, há também uma ervilha embaixo do colchão. Essa farra proposta pela banda ao mesmo tempo em que amansa, deixa os sentidos tesos, acordados para os próximos estímulos. A fruição sonora se dá exatamente por uma equação rara na qual as batidas eletrônicas misturadas às cordas de uma leveza ensolarada e insidiosa dão o tom desse trabalho, desse belo acerto do iLiKETRAiNS. Os rapazes inauguram uma nova e surpreendente fase que, enfim, proporcionou o casamento do nome que me prendeu à música que hoje me prende.

Ouça a ótima “ Mnemosyne”:



O álbum começa bem, numa mesma e hipnotizante toada. As tonitruantes “Beacons” e “Mnemosyne” são eletrorocks bem elaborados, inspirados, principalmente a segunda, que trazem de carona uma leve melancólica em conflito com os bpms e a guitarra sinuosa, a cargo de Guy Bannister, esta provavelmente um dos pontos mais fortes do disco inteiro ao lado do vozeirão respeitável de David Martin. Essas duas canções trazem a tona ecos de duas grandes bandas, New Order, pelo uso equilibrado da eletrônica, e Tindersticks, pela engenhosidade das melodias e pela já citada voz de barítono do vocalista da formação. Introdução perfeita para “The Shallows”, um pouco mais rocker, com sua bateria (Alistair Bowis) marcada e baixo(Simon Fogal) sutil, uma das melhores composições. Um trio de canções pujantes e densas que revelam a maturidade do iLiKETRAiNS, que fazem aqui aquele que é seu melhor e mais bem  produzido trabalho.

Quando desacelera, mesmo não sendo os melhores momentos do álbum, o grupo mostra-se coeso em sua intenção de deixar o ouvinte em transe. Como mágicos e seus misteriosos chapelões, o iLiKETRAiNS nos guia por caminhos esfumaçados, paisagens saídas da cabeça de Tim Burton em seus filmes mais fabulísticos, nas composições lentas, climáticas, que também contam com a mesma hipnótica e grudenta guitarra. É este instrumento emaranhado à bela voz de Martin que criam um rastro onírico, sedutor por onde passam músicas como “Water Sand”, com suas cordas que remetem à matemática e envolvente atmosfera criada por bandas oitentistas, como Cocteau Twins e The Call, e a encantadora “The Hive”. Estão na mesma curva de sentimento de “We Used to Call”, a balada mais linda do álbum.

iLiKETRAiNS em ação:vocal chapante
The Shallows não é um trabalho fácil. Para gostar do disco, para entendê-lo é preciso que entremos na mesma sintonia do grupo. A sonoridade do álbum pode parecer preguiçosa para alguns e até mesmo, em certos momentos, as músicas sugerem movimentos diferentes de uma mesma sinfonia. É como se os rapazes do iLiKETRAiNS de forma compulsiva e obsessiva voltassem todo instante a um mesmo ponto, a uma mesma linha melódica. Como se saindo de uma BR por vias transversas, eles voltassem lá na frente à mesma e confortável rodovia. Mas, aquilo que sugere repetição é, para mim, o grande achado da obra. Pense: uma maçã nunca é igual à outras: por trás do formato arredondado, do mesmo sabor adocicado há sensações diferentes que as papilas bem desenvolvidas conseguem apreender. É o mesmo com The Shallows. Há apenas que saber desfrutá-lo com paciência e sabedoria.

Cotação: 4

Vá lá, os ingleses merecem:


ou:

sexta-feira, 4 de maio de 2012

Cordeiro no ponto


Cordeiro posando de brega kitsch: novidade pulsante
Felipe Cordeiro é um nome que tem freqüentado rodinhas bacanas, ecoando em ouvidos de quem vive a incansável busca da nova batida. Um nome com verniz e com raiz. Sobrenome que faz todo o sentido no voluptuoso Pará, onde fez a caminha. E o mais importante, um cordeiro com substância, tenro, cevado com a consistente fusão de ritmos que fazem de Belém hoje um dos mais instigantes laboratórios musicais brasileiros. A gente sabe, o Pará está na moda, pelo menos nas vitrolas. Tem a impagável Gaby Amarantos, aquela multicolorida da abertura da novela da Globo. Teve antes disso a excelente galera do La Pupuña, que fundiu rock e guitarrada, aproveitando-se da infindável eletricidade do instrumento que é base e alma daquelas duas invenções. E tem esse menino, esse Felipe Cordeiro que explora como Gaby, o pop, e como La Pupuña, a energia da guitarra, para fazer de Kitschpopcult(2012) o que este título vende tão claramente, um mix de sonoridades ambientado com esperteza e talento. Um disco metido a popular com um bafo de inteligência que o transformou numa das bons lançamentos de 2012.

Veja Felipe no Altas Horas:


A raiz de Felipe Cordeiro é sua relação umbilical com os sons que marcam profusamente o estado em que nasceu. Carimbó, guitarrada, o brega e as fusões que a proximidade do Pará com o mar do Caribe proporcionam, tudo isso como uma esfuziante escola, como uma inesgotável fábrica de alegria pura e de sensibilidade a flor da pele. Mais do que respirar esse provocante ambiente musical, Felipe vivenciou diretamente o exercício de todos aqueles ritmos numa relação quase que osmótica. Seu pai, Manoel Cordeiro foi o maior produtor musical da região Norte brasileira de discos de carimbó e guitarrada, de artistas populares que ainda arranham a memória das novas gerações. Um homem com os pés fincados no barro paraense. Esse espírito herdado pelo pai e muito bem absorvido pelo filho é o ouro bruto de Kitschpopcult. Não a toa o álbum é dedicado muito justamente ao velho Manoel das muitas lidas. Tá lá os sons balouçantes que moldaram o gosto de milhares de paraenses devidamente lapidados por uma refinada e experiente produção, o toque de Midas desse delicioso e dançante álbum.

O cantor na capa do disco: composição brega
Por trás das canções criadas por Felipe Cordeiro está André Abujamra, paulistano raro, acostumado ao trato das sonoridades do mundo, como ficou evidenciado na época em que capitaneou o inesquecível grupo Karnak. A verve multicultural de Abujamra deu-lhe tranqüilidade para trabalhar a proposta de Cordeiro. Este paraense, competente guitarrista, era um nome conhecido da cena local. Como Chico Science e o maracatu atômico, enxergou na guitarrada, no carimbó e no brega a potencialidade e apelo pop que esses ritmos carregavam. Agregou a eles um toque moderno, uma moldura contemporânea que os aproximou da galera esperta. Abujamra aparou arestas e, no frigir dos ovos, ganhamos um álbum em que mergulhamos, sem ranços folclóricos, numa música envolvente e cheia de energia. A alta voltagem e a planejada modernidade já se mostram na primeira música do CD, “Legal e Ilegal”, uma síntese dos ritmos paraenses, azeitados por metais e guitarras sinuosas. A letra entrega um compositor inventivo, antenado com os sons e doideiras do planetas: “Aguardente no bom samba canção/Caspa do diabo no rock and roll/ Erva do amor no reggae and night/Cultura sintética no drum’n’bass/Cuba libre na salsa peruana”. Aditivos que estão no justo compasso dessa composição suingada e dançante.

Escute a delicada “Historinha”:


Suingue e tradição misturada à contemporaneidade, aliás, é o que de melhor nos apresenta o álbum. Felipe Cordeiro convence, por exemplo, quando investe sem restrições na guitarrada, ritmo construído com guitarras nervosas, como na pulsante “Lambada com Farinha”, que traz uma inesperada introdução metida à erudita, com orquestração tensa. Um toque diferente para quem busca, claramente, diferenciais na mistura a que se propõe. Lambada com Farinha... já pensou?. Pode ser estranho, mas funciona. Assim como pega bem a cabeçuda “Conversa Fora”, na qual viaja, sem pudor, no tecnobrega – sem aquelas repetições sonoras enervantes de certos grupelhos, vide Dejavu – e de quebra oferece um mantra pegajoso: “Não ponha rancor pra dentro/só jogue conversa fora”. Um bom conselho dado de graça, como diria o velho Chico Buarque. Nessa linha mais pop, Cordeiro nos presenteia com duas ótimas músicas, duas das minhas preferidas “Fogo de Morena”, um irresistível carimbó com todos os elementos que o fizeram conhecido, incluindo o coro feminino malicioso, e o brega “Fim de Festa”, desses instrumentais feitos para dançar agarradinho, de preferência com algumas doses de cachaças a requentar o sangue.

Mistura do som tem boas talagadas de tradição
Apesar de toda a influência que assimilou dos ritmos regionais típicos do Pará, Felipe Cordeiro não é um Pinduca. Debaixo da ponte de sua formação musical muita água rolou. E Kitschpopcult traz também outros sons que fizeram sua cabeça. É aqui, na minha opinião, que o disco perde um pouco de sua força, mas, diga-se de passagem, sem perder a graça. Se a levada pop rock de “Fanzine Kitsch”, que lembra absurdamente o diálogo bem humorado da clássica “Você não soube me Amar”, do teatral Blitz, cai apenas no terreno do curioso, o paraense mostra-se mais afiado e sedutor em outras batidas. São os casos da boa “Dias Quentes”, com um tom circense e letra bacana, e da linda “Historinha”, que começa lentinha, ensaiando, juntamente com a poesia bem elaboradinha, um crescente que descamba na apoteose sublinhada por um ótimo solo de guitarra com equilibrada carga regional. Um instigante final de disco, um ponto final de uma história de amor a tradição, refogada pelo moderno, que pode render outros bons achados, espero com sinceridade, da estirpe desse garoto chamado Felipe Cordeiro, um artista com nome e sobrenome. Que o Pará baixe sobre nós com toda essa sua desapegada alegria.

Cotação: 4

Bandeie-se pro Pará:

http://www.4shared.com/zip/T-P3t4I5/felipe_cordeiro_-_kitsch_pop_c.html