quarta-feira, 18 de maio de 2011

Aquele céu de Brasília

Foi assim naquela semana. Dava umas cinco horas da tardinha e aquele amarelo estapafúrdio cobria as ruas, os arranha-céus, as árvores retorcidas, amansando o dia feroz. Os carros, alheios ao esplendor daquilo que os rodeava, zuniam medonhos ao meu lado, tão insensíveis, espalhando a fuligem que se perdia pra nunca mais no meio da grandeza do céu resoluto, absoluto. E as pessoas também corriam afobadas nem sei atrás de quê, talvez fugindo do fuzuê, procurando algum remanso, a paz esquecida entre papéis de arquivo e contas a serem pagas. Escapando da tranqueira do cotidiano tão sem eira nem beira da cidade grande e confusa. Uma e outra olhavam pra cima, poucas se viam refletidas na mornidão acolhedora das horas moribundas do dia. Eu, estrangeiro, reverenciava mudo e abestalhado aquela santa tarde. O amarelo e o azul conectados como unha e carne, tão casados, desafiando a desembestada marcha dos trabalhadores no asfalto cru. Senti os dois atrevidos na pele, nos poros, aliviando meu cansaço, dançando alegremente em mim.

Estava em Brasília. Às 17. O céu da capital ao entardecer, seu pôr de sol vivificante chacoalhando imperioso com os meus sentidos. Tanto já falaram desse céu brasiliense que se movimenta impávido sobre nossas cabeças, como uma mágica que se repete generosa diante de nossos enfadados olhos. Os anos que vivi lá entre os prédios tímidos do Plano Piloto e as raquíticas árvores do cerrado, tão emprenhado de afazeres, deixaram-me a memória avermelhada e incandescente dos fins das tardes. Ruinzinho de memória que sou, essas, agradeço aos deuses das justas medidas, eu não as perdi, guardadas em um canto encouraçado do meu esgarçado cérebro. O reencontro nesse mês de maio com o céu às 17 da cidade revestiu-se do sagrado. Lembro bem em meu primeiro dia dessa volta, tão castigado pelo vôo insano de Boa Vista pra Brasília madrugada adentro até o romper das primeiras horas, crucificado depois pelo mecanismo cruel dos bancos e suas odiosas filas, ainda assim, tive a benção de uma tarde tão cheia de amarelo e azul que a minha alma descansou na paisagem, untada por aquele pacífico pôr do sol.

Naquele pôr do sol teve o diálogo silencioso do homem louco com o céu, descendo com sua particular elegância e roupas em farrapos o gramado do eixo monumental em direção ao nada. Olhando pra cima, apontando inexistentes nuvens, conversando com seu deus desgovernado. Talvez aquele homem, pensei, visse melhor o céu do que nós, pobres sãos.

Naquela hora, às 17 em Brasília, me dava então uma louca vontade de sair por aí fotografando tudo. Com meu celular se fazendo de câmera. Na Esplanada dos Ministérios, com seus executivos emaranhados nas cordas do futuro, a lente da máquina espelha os vidros tingidos de laranja, como um delicado papel de parede quadriculado, colado naquele azul de cor uniforme e sem nuvens. O concreto pintado de branco dos monumentos arredondados de Niemeyer se oferecia despudorado para os raios insidiosos que pareciam moldar nas construções modernas novas formas e insuspeitados ângulos. A rodoviária apinhada de gente banhada docemente pelo sol ganhava também novos contornos, enriquecida pela fusão do amarelo intenso com as roupas coloridas dos transeuntes. E se você pára pra reparar o que pode aquele céu arrisca até ser surpreendido por instantâneos de beleza. Como a visão da torre de televisão, ilhada pelo gramado, pelo sol e azul, com aquele risco branco, diáfano, deixado pelo jato que come milhas com a voracidade dos amantes matando saudade. Uma reta branca cortando o céu e sublinhando a armação triangular de metal que fura o céu azul. Parêntese na paisagem. É assim o céu de Brasília nessas tardes de maio, um convite irrecusável para nele se perder. Nele me perdi e me achei por alguns minutos. Abençoado, céu.