terça-feira, 4 de setembro de 2012

Terreiro em festa

Curumin fez fusão esperta do som black e tecno

Curumim, onde moro, é menino. Daqueles mais novos. Na raiz mesmo do universo macuxi onde estamos inseridos em Roraima, é filho de índio, palavra tupi sonora usada, destarte a origem, para generalizar qualquer pequeno montado na traquinagem, quer seja branco, negro, pardo, vermelho. Não importa a cor da pele e sim a delicadeza da criança, aquela ainda inocente das maledicências desse mundo. É substantivo comum, de acento forte, nas conversas beira rio, vindo das gargantas mais simples, desentronizadas, daqueles que assumem a aura amazônica que nos encobre inapelavelmente. Tem um outro Curumin, esse com "n", paulista, com olhos puxados de japonês. Luciano Nakata é o nome dele. Engraçado essa coisa da globalização. Apelido índio para um nascido brasileiro com ascendência japonesa e espanhola. Esse Curumin já é grande, mas de criança, de curuminzinho amazônida, tem esse gosto pelo colorido sonoro que dá vida às suas composições. Um jeito lúdico de criar que se apropria da cultura enraizada em malocas, sobrevivente dos açoites, transformada em suingue moleque de cara brasileiríssima. Esse é o Curumin de Arrocha(2012), terceiro disco do artista, que retorna com um trabalho com a mesma energia que o tornou super requisitado por músicos que fazem hoje música consistente no Brasil.

Veja o clip do reggae "Doce":



Quem esteve no show gratuito do titânico Arnaldo Antunes, presenteado pela Universidade Federal de Roraima, viu o Curumin batera. É na cozinha percussiva que Nakata esquenta o caldo na maioria de suas inúmeras participações em disco de artistas mais notados pela mídia do que ele. O cara já fez parceria com Céu, Vanessa da Matta, Paula Lima e a revelação musical de 2011, Criolo, só para ficar em alguns dos nomes mais conhecidos da cena musical brazuca. Entre uma e outra participação competente, Curumin cuida de sua carreira solo. Antes de Arrocha, ele já havia lançado no mercado dos discos injustamente pouco ouvidos, Achados e Perdidos(2005) e Japan Pop Show(2008). Este último foi o que me abriu olhos e orelhas para a música moderna e inspirada desse japanhol demolidor. Com uma cadência pop e suingada, o penúltimo álbum do artista tinha algumas pérolas de raro valor, como a maliciosa "Magrela Fever" e a benjorgiana "Compacto" que definiram, de alguma forma, o caminho musical seguido pelo artista e que tem em seu trabalho de 2012 uma espécie de respeitável e esperada, pelo talento reconhecido, coroação.

A sonoridade calcada no batuque e na eletrônica, na black music, a do samba rock, funk e do hip hop, se faz presente em Arrocha com maior refinamento e ludicidade que é, no frigir dos ovos, a cara e alma de Curumin. A produção cuidadosa, assinada pelo próprio artista, por Lucas Martins e Zé Nigro, buscam na mixagem de batidas percussivas, grooves e tectronices a cama perfeita e dão um toque de modernidade - na medida certa - para as composições brasileiras, de cara e alma lavadas, que animam a obra. Para afunilar ainda mais a vibração das composições, foi convidado um time de colegas antenadíssimos com a boa música, gente do calibre de Gui Amabis, Marcelo Jeneci, Céu, Otto, MC Russo Passapusso e a ótima banda paulistana Guizado. É dessa maçaroca inventiva que saem por exemplo gemas dançantes como "Afoxoque", com eletrônica e batuque em franca harmonia. Daí talvez a participação do mestre pernambucano Otto na música, que encerra tribal, com tambor minimalista e silvos de pássaros. Curuminzice de Curumin. Um som que gera sentimento positivo, como ele propõe na letra direta: "E o que me dá força é a palavra do bem, que sai da boca/Palavra de quem tem língua solta e que faz valer nesse canto cada gota de sangue".

Veja clip da ótima "Afoxoque":



"Treme Terra"parece ser uma continuação de "Afoxoque" com sua poesia telúrica e forte tom ancestral em uma bela melodia que usa magnificamente tambor, metais e beats eletrônicos. Talvez essa seja uma das canções mais difíceis do CD, ao lado da tecnoinstrumental "Tupãnzinho Guerreiro", essa toda cheia de sombras e uma gravidade que destoa totalmente do trabalho. É moderninha e bem arranjada, mas não é nem de longe, realmente, a linha do disco que envereda com alegria por um som mais acessível. Essa é a sua vocação. O espírito do curumim que bate bola com o peito cheio de vida nos campos de sua aldeia aparece na maioria das faixas. Um dos melhores exemplos é "Passarinho" que chega a assustar de tão simples e melódica. A letra que tem a graça das declarações de amor fortuitas ("Quando o meu amor me disse venha, que eu sou a senha, o cofre é o coração") se encaixa numa saborosa melodia com levada típica da jovem guarda, aquele roquezinho marcado e assoviável, com direito à citação, é claro, do rei mor daquele movimento, sua alteza Roberto, o Carlos.

No novo trabalho, Curumin mostra maturidade
A popice de um Curumin aberto pro mundo está presente em "Selvage", com teclados e reverbs que chamam para a pista. De boa lavra do autor, bem que poderia entrar no tracklist de nossas emissoras de rádios mais populares para melhorar o nível do sofrível repertório do qual são vítimas rendidas. Se tá difícil, então, bota pra rolar em sua festa particular. A galera vai agradecer. Tem ainda ludicidade a solta, como brincadeiras de ruas, nas ligeirinhas "Sapo Garimpeiro" e "Blimblim" e no adorável reggae praiano "Doce", outras que cabem no sacundim sacundum de nossos piseiros dançantes. Nakata ainda repagina e levanta a bola de uma antiga canção, de 1982, "Vestido de Prata", do ex-Novos Baianos Paulinho Boca de Cantor, uma das mais bacanas do disco. Em pouco mais de 40 minutos de Arrocha, que não devemos confundir pelamordedeus com o novo sertanejo que está se alastrando pelo país com a mesma denominação, Curumin rebobina a inventividade que marcou a sua ainda curta, mais pulsante carreira. É álbum de quem tem apito na boca e a clarividência de que uma mistura de sons radicais, quando feita com personalidade, fisga cabeça e coração. Tem curumim em nosso terreiro. Tem Curumin fazendo braseiro. Deixa o fogo queimar, pode deixar.

Cotação: 4

Arroche:

http://www.sendspace.com/file/k6j2e4

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