quinta-feira, 27 de outubro de 2011

De costas para o sistema

Quando me vi de repente tomado pela maré de notícias sobre as revoltas protagonizadas por uma jovem população européia parei, diante da minha antiquada TV de 21 polegadas, num estúpido átimo de aturdimento. Como se tudo o mais em minha volta também se visse suspenso. Talvez porque envolvido pelo silêncio das horas que satelizam aqueles jornais de televisão da madrugada feitos para insones e viciados em informações. Ou talvez por aquela típica leseira de quem começa a perder a batalha contra o sono. Foi assim um dia desses. Manifestações pipocando no velho mundo contra a crise econômica, a falta de emprego, a truculência de políticos arrogantes. Em todas elas havia uma boa parcela de irritados jovens, cheios de vigor e caras e bocas na defesa de suas bandeiras. Não como no Maio de 1968 em Paris, até porque parte daquele romantismo sucumbiu diante de uma certa lógica e frieza de como a maioria passou a encarar o mundo. Mas, eles estavam lá, belos, se posicionando, agrupados em massa, como um corpo vivo. E fiquei feliz, depois do espanto, por aquela demonstração de proatividade com o que os incomodava. O velho continente costuma dar lições mais fortes e impactantes de insatisfação, de como se colocar diante da perda da inocência corrompida pelo capital. Os europeus têm cultura, estofo, para isso. Pensando nisso, voltava a uma recorrente elocubração: viria de lá a revolução musical, aquele inesperado movimento a esquerda para sacudir os alicerces da estagnação musical que parece ter tomado conta da humanidade. Tem quem ache que o WU LYF seja isso. E aqui, após tantos desvãos, chegamos ao foco desta resenha.

Assista ao clip de “Dirt”:



Isso que parece um erro de grafia é uma sigla. Das mais canhestras e propositadamente cabulosa. World Unite Lucifer Youth Foundation, o WU LYF. Uma banda inglesa, da mesma Manchester das icônicas Stone Roses e The Smiths, que anda assombrando vários críticos pelo rompante radical de fazer música e por suas letras ácidas e com forte acento político. “Revolucionária”, arriscou um desses resenhistas puxando um coro, para mim, um tanto precipitado. Não sinto que seja tudo isso. O que o quarteto britânico faz é captar aquele sentimento de inconformismo que preenche os jovens, o mesmo que os fazem sair para a rua para reclamar os temas mais caros a um mundo em crise. Capturam o zeitgeist, aquele senso coletivo que se torna quase concreto e imanta toda uma sociedade. O crítico Alex Ross escreveu em seu livro Escuta Só, do Clássico ao Pop: “Em qualquer momento da história, existem alguns compositores e músicos criativos que parecem deter os segredos da época”. É por aí. O que se ouve em Go Tell Fire to the Mountain(2011), título do primeiro trabalho desse grupo, não é revolução, nem é exatamente novo. É uma música raivosa, incômoda, difícil de ser consumida. Há aqui um paredão sonoro composto de um vocalista gutural, Ellery Roberts, responsável também pelo órgão, instrumento barroco em diálogos estranhos com o baixo de Tom McClung, a guitarra de Evans Kati e a bateria tribal de Joseph Manning, sugerindo um som anárquico, algumas vezes claustrofóbico, mas quase sempre e provocador.

Em meio às vociferações de Roberts, gritos que se tornam uma das marcas registradas de Go Tell Fire to the Mountain, existe ecos do krautrock, do post rock e do post punk ou seja, tudo aquilo que de moderno e pouco traduzível tem o rock em suas mais radicais tentativas de renovação do gênero. Em panos limpos: muita barulheira e o uso de elementos antigos com uma roupagem contemporânea numa tentativa de se criar o novo. Em “Dirt”, que considero a melhor composição do disco, há um batuque introdutório, uma percussão com tintas africanas que reforça uma melodia nervosa, guerrilheira, como as imagens do clip oficial(acima) da banda que traduz muito bem o espírito da canção. Como uma granada explodindo próximo de nossa epiderme e de nossos agoniados tímpanos, essa música convoca o ouvinte para uma batalha, para uma franca resistência aquilo que entorpece a alma. E isso é, claramente, um fazer político. Saída da boca do vocalista do WU LYF, essa convocação tem compreensivelmente um vigor quase panfletário. Soa como o retrato de uma juventude desencantada que usa o rock e o verbo para se comunicar com o mundo. E a escolha por essa “poética”, por um repertório mais politizado é outra das características marcantes desse álbum sem apelo popular e que tem tudo para virar cult.

Esse veio político é centrado, nas letras, numa crítica mais genérica à humanidade, não a temas conjunturais específicos das terras britânicas ou qualquer outro continente do planeta terra. Como o ímpeto capitalista, e a força da grana, resgatando aqui Caetano Veloso, que constrói e destrói coisas belas. “Tem crianças nas ruas, vendo o concreto se transformar em ouro/Você é tão jovem, mas essas cidades o fazem envelhecer”, canta Roberts em "Summas Bliss". No início do disco, a banda já entregava a senha dessa crítica engajada ao sistema econômico que atropela tantos interesses comuns e fragiliza uma já castigada e pouco valorizada espiritualidade. “Quantos dos seus garotos temem a morte?”, questiona a banda em “LYF”. É o discurso hippie reformado, adaptado aos quentes dias de hoje. Os gritos de guerras repetem-se durante toda a barulhenta trajetória desse estranho, mas conseqüente álbum. A ponto mesmo de se tornarem diretos e impactantes. Papo reto. “Coloquem suas armas e cantem conosco essa canção”, sugere a letra da bacana “We Bros”. E para isso, complementa o quarteto na já citada “Dirt”, resumindo de vez essa batalha contra um declarado inimigo, “não importa o que eles dizem, o dollar não é seu amigo”. Enfim, um bando de jovens resolvem deixar de lado canções açucaradas sobre boys and girls apaixonados para botar pra fora essa revolta adquirida e alimentada em tantos anos de desconcerto e de falência de um sistema(olha ele aqui de novo) que esqueceu, em suas contas, de contabilizar o que há de mais humano em nós.

Ouça “Cave Song”:



Mas, claro, são apenas gritos de revolta que fazem um grande disco. Musicalmente, as composições são, numa comparação meio absurda, como aquelas engenhocas de transmissão de mensagens dos filmes da série Missão Impossível: parecem querer se autodestruir em poucos segundos. Soam quase toscas, mas têm poder em sua urgência. Mesmo quando tentam ser mais comportadas, como nas mais lentas “Such a Sad Puppy Dog” e “14 Crowns for me and your Friends”, na qual o órgão cria uma atmosfera glacial, perturbadora, pecam por uma ansiedade desenfreada. Essa música rende-se algumas vezes à anarquia, chegando a um paroxismo que lembra o combo Mano Negra, a exemplo de “Cave Song”. Dito tudo isso, você pode perguntar: “E aí, o disco é bom?”. É mesmo, lembrando de um ótimo jargão publicitário, toda essa Brastemp? Tive uma primeira impressão negativa do dito cujo. Não gosto de bandas que se escondem atrás de siglas maneiristas, de muito barulho e gritaria para impor uma idéia. A melhor idéia musical, sempre acreditei nisso, é ser claro nas intenções mesmo que ela esteja amparada numa contundente parede sonora. WU LYF é como um rascunho de uma arte que tenta se desenhar ideologicamente, que busca identidade própria. É um projeto em andamento, aquilo que os americanos chamam inteligentemente de work in progress. No que todo aquele barulho vai se tornar, só o futuro dirá. Mas, até lá vale ouvir os caras, até porque é sempre bom dar atenção a quem foge da obviedade. Afinal, é assim que caminha a humanidade.

Cotação: 4

Na base da brodagem, vá lá antes que o sistema destrua o link:

http://www.mediafire.com/?b5xxi7d2vn8qrkf

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