domingo, 16 de outubro de 2011

Armadilhas do amor

O quanto de nitroglicerina pode conter uma paixão? E o quanto de segredos não revelados, ocultos na profundeza das retinas? Muitas das histórias, das pequenas rusgas, de compleições e incompatibilidades que um relacionamento amoroso carrega e que, muitas vezes, descarregam em um buliçoso fim, cabem em uma canção. Pélico, um paulistano de peito aberto, experimentou contar casos de amor, romances, com um desprendimento à flor da pele. O resultado é Que Isso Fique entre Nós(2011), uma espécie de delicado diário de amores perdidos. Essa complexa trama que une duas pessoas é o objeto de dezesseis composições intimistas que deságuam em um álbum em que palavras diretas e sem rodeios são acompanhadas por arranjos que as vestem em trajes mínimos, desvelando por completo o coração do autor. Trespassado, fudido, rendido ao inevitável. Um coração à mostra. É um álbum sobre a dor de cotovelo, disse o cara em uma entrevista. Mais do que isso: é o retrato de um sentimento que, repleto de delícias e armadilhas, ajuda a mover uma humanidade inteira.

Veja vídeo de “Recado”:



Pélico é paulistano de dois discos. O primeiro, “O Último Dia de um Homem sem Juízo”, foi gravado em 2008. Mais rocker, mais gritado, mais irônico, revela quem o criou. Depois, confidencia o mesmo, resolveu escarafunchar as coisas ditas, escritas e cantadas por Lupicínio Rodrigues, Ataulfo Alves, Orlando Silva(terá sido deste os “erres” cúmplices e bem pronunciados pelo artista no álbum em questão?), mestres dos imbroglios do amor. Contaminou-se. E o vírus dos amores mal resolvidos, dos casos afogados em copos de cachaça, revelados com letras firmes por aqueles ilustres antepassados, foi inoculado nele. Resolveu inspirar-se em sua própria trajetória de vida e a de amigos próximos para enfileirar mágoas e lições de sucumbidos relacionamentos em Que isso Fique entre Nós. O título/expressão é a melhor tradução deste segundo trabalho de Pélico. Assim como aquilo pronunciado e encerrado em um caso de amor, transmitido com zelo para um único ouvido, com endereço certo, somente para quem interessar possa. Aquilo que o resto do mundo, por favor, não precisa saber.

Esses diálogos da paixão são destilados em canções que parecer soar lineares em todo o disco, assim como o amor, plural que é, provoca coincidências. Como capítulos de um mesmo caso amoroso alinhavado por uma humana pulsão. Pelo desejo de entender o que sepultou o relacionamento. Que redunda no medonho julgamento que busca culpas e afunda tanta gente naquele mergulho dolorido popularmente conhecido como “dor de cotovelo”. Daí a definição sugerida por Pélico. Como em “Sem Medida”, de linda melodia e arranjo delicadíssimo, sobre um homem que tenta esquecer a amada: “Quem me dera ter a coragem de te negar/Mas, não se mede sensatez com você”, sublinha o cantor de voz grave, de canto sem a mesma personalidade dos versos. Na tocante música que dá titulo ao CD, a visão exata do relacionamento depois do vendaval, num longo desfile de adjetivos que definia o casal: “Não éramos tão tolerantes assim, não éramos tão perigosos assim, não éramos tão fiéis assim”, e por aí vai. Em “Tenha Fé meu Bem”, o amor virou saudade dos dias em Mongaguá. “Lembra da gente sentado olhando o mar?”. Cena de cinema com trilha de Henry Mancini.

Escute “Não Corra, não Mate, não Morra”:



Todos esses romances comuns, cotidianos são expostos com letras diretas e encantadas. Essa coisa de abrir o peito e encantar não é pra qualquer um. E Pélico tem esse dom. Talvez também um fruto da simbiose ocorrida entre ele e os mestres da MPB que o impulsionou a ser assim tão intimista. Alimentado também é claro por seu talento nato. O paulistano sabe misturar letras, provocar o ouvinte. Nessa obra sobre o amor, brinca com os contraditórios como os versos da quase brega “Levarei”: “De todas as tristezas que tive na vida/Nenhuma me deu tanta alegria como essa”. Incorporando Lupicínio, solta o dramático e teatral que há nele, caprichando no português, na ótima “Recado”, uma das melhores do disco: “Da liberdade que sucumbe as leis/Nem anjos e santos de pura bondade pra te perdoar”. A palavra é bem tratada ainda na sensível “O Menino”, uma das poucos em que o amor não é verbo recorrente: “O menino fugiu, se perdeu nessas ruas que sabia de cor/ As palavras ardiam, soavam mais duras do que seu pai lhe ensinou”.

Mas não é só do cuidado com as letras e seus verbos que brilha Que Isso fique entre Nós. Existe toda uma bem tramada costura de instrumentos que soa, num primeiro momento, minimalista, mas que vai ganhando peso e sentimento a cada audição do disco. A arte do produtor Jesus Sanchez, integrante da bacana Los Piratas, e os arranjos de sopros e violinos, assinados pelo próprio Pélico e por Bruno Bonaventure, responsável também pelo piano e sintetizadores, ajudam a fazer a diferença. E ainda é preciso fazer justiça com João Erbetta e Regis Damasceno (guitarra), Tony Berchmans(Wurlitzer) e Richard Ribeiro(bateria), músicos mais constantes no trabalho. A inteligência dos arranjos fica evidente, por exemplo, na hora em que os sopros são usados na construção do clima das músicas, como em “Vamo Tentá” e “Sete Minutos de Solidão”, as duas com leve e adorável acento brega, ou ainda na mistura do som típico do western spaghetti com o tango da muito boa “Não Corra, não mate, não morra”, que encerra o álbum com chave de ouro. Pélico e suas confidências amorosas são uma grata surpresa, um disco para nenhum apaixonado, e não só eles, botar defeito.

Cotação: 4

Sinta o amor de Pélico:

http://www.mediafire.com/?o7cdidp7i6c2up7

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