sexta-feira, 7 de outubro de 2011

Verbo soberano

Desse eu de cara com Chico caminhando no calçadão do Leblon, e ele, por um motivo qualquer, me chamasse a atenção, devolveria ao seu azul e manso olhar o meu melhor sorriso, cheio de verbos nos entredentes (palavra que não há), costurando em silêncio, na respiração breve e suspensa, as entrelinhas do não dito. E seguiria feliz com o encontro assim mesmo, sem dizer nada, com medo talvez de dizer a palavra errada, ele que é tão cheio das mais certas delas. Penso sempre em Chico vagando na beira mar carioca e na minha memória, entre um e outro susto diante da poesia construída por ele, como imensos e sólidos castelos que visito de quando em vez no som provocado pela nostálgica agulha de diamante riscando a bolacha preta em seus volteios mágicos. E quando me deparo com o ídolo num novo disco, depois de toda aquela intimidade que criou em meu coração, fico com medo de que ele tenha errado a mão das palavras. Fico amuado sem querer ouvi-lo, ao mesmo tempo em que a vontade, maior do que a gente, leva-me em direção ao aparelhinho digital para dessa forma revisitá-lo e quem sabe conversar com ele, como antigamente, deslizando no mar de palavras e poesias.

Veja vídeo de “Sinhá” com Chico e João Bosco:



A gente que viveu uma vida mais demorada e tem algum tempo e histórias para contá-la fica assim meio perdido diante de quem é autor de parte da trilha sonora que embalou tantas horas vividas. E aí, estamos num outro momento, mais maduros, provavelmente menos românticos, com os antigos sentimentos dilapidados pela rudeza da humanidade, pelas torres gêmeas implodidas, pelos amores naufragados, pelos tsunamis devastadores, mas, mesmo com toda Brahma e toda lama, ainda vivos e esperançosos. Já passado o pesar da ditadura, os suspiros das alcovas, o drama de Genis, a intempestividade de Anas e Bárbaras, consumado o tempo da gente, Chico Buarque retorna com Chico(2011). Não sendo os mesmo admiradores e apaixonados de antes, não tendo a mesma condescendência, teríamos a mesma reação diante da nova obra? Se já perdemos a noção da hora, será que aqueles belos seios ainda estão em nossas mãos? Difícil responder. Difícil comentar o trabalho de quem parece ter se doado tanto a um universo musical sem comparações e que está tatuado em nossa alma, como aqueles barrocos dragões coloridos que envolvem os braços e seguem por toda a gravada epiderme como um manto a nos proteger. Chico é grande. Seu repertório tão grande quanto ele. Por isso, o cara não me surpreende mais e também não exijo mais, justiça seja feita, do que ele me deu.

Tudo parece, assim, déjavù nesse novo Chico. Tudo parece Chico, o bom e velho Chico. Tudo parece datado, deitado na cama das velhas notas musicais cansadas, mas bem acomodadas, bem casadas, como num bom e velho Chico, senhor soberano de rimas e poéticas completamente assentadas, como equações ricamente elaboradas e cheias de si. E leia isso, por favor, como um elogio. O que se vê em seu mais recente álbum não é um artista renovado, mais um cantor e compositor que se renomeia, que brinca com um novo vocabulário tirado de páginas da internet e do cotidiano corriqueiro dos jovens, e também que se vê no espelho, apaixonado, fazendo declarações de amor ao cotidiano. Em “Tipo Baião”, faz troça com a linguagem dos mais moços, repetindo a expressão “tipo” para cantar um romance “tipo festa sem fim” prometido por uma jovem cheia de vida e amor pra dar, numa canção vestida como um baião moderno. Na belíssima valsa “Nina”. A moça da vez namora o homem da poesia pela internet, explicando que ele pode ver, em um mapa na tela, “a cidade, o bairro, a chaminé da casa dela”. Toque novo numa poesia que nunca perde o lastro de desmedido encantamento como em seu fecho espetacular: “Nina anseia por me conhecer em breve, me levar pra noite de Moscou. Sempre que essa valsa toca, fecho os olhos, bebo alguma vodka e vou”.

Escute a valsa “Nina”:



O Chico que não mede as palavras passeia pelas ruas do Rio, como eu sempre o vejo. E eu o vejo assim passeando e observando o mundo e as pessoas para fazer registros em seu “Querido Diário”. Nessa música, que inicia o disco, Chico Buarque, como fez em suas últimas obras, destila sua apurada poesia num exercício musical e estético que prescinde até de refrão. A música, cuja melodia parece que já ouvi em algum outro momento de Chico, e isso nem importa muito, traz frases enigmáticas como a do cão recolhido na rua e que de “hora em hora me arranca um pedaço” ou impactantes como na passagem em que ele, falando em religião, pensa em “amar uma mulher sem orifício”. Esse artista que faz as palavras crescerem faz crescer também a memória, exibindo filmes passados entranhados nas novas composições. O Chico jazzístico da lúdica “Essa Pequena” já mostrava os mesmos dentes em “A História de Lily Braun”, música de O Grande Circo Místico(1983). O sambinha “Barafunda”, por sua vez, reprisa em um certo momento o amor de Chico pela escola de samba Mangueira, numa levada que lembra, sem tanta inspiração, a verde e rosa “Chão de Esmeralda”, do disco As Cidades(1988).

Esse Chico, com certeza, não vai ser mais um grande disco de Chico de minha vida, ainda que num ou noutro momento, como nas vigorosas “Se eu Soubesse”, em dueto com a namorada Thais Gulin(ainda é ou estou desatualizado?), e “Sinhá”, bela parceria com João Bosco, incite minha paixão. Não vai embalar memórias, como aquelas de outros tempos, que ainda se arrastam solenes diante de mim sempre que meu coração pede arrego. Mas, é um Chico autêntico em toda sua carga poética, com o DNA, a identidade de quem faz música como quem risca mapas de orientação. Ele sabe dos caminhos e, mesmo que não tão iluminados, vale sempre enveredar por eles. Todos nós devemos esse passeio por suas sendas. Sempre vai existir algo a aprender.

Cotação: 3

Não fique vendo a banda passar, linke-se:

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P.S.: Texto dedicado ao meu sobrinho Marcelo, que sempre gostou de música boa

2 comentários:

Sobrinho Marcelo disse...

Ainda não escutei o novo álbum do Chico e este ótimo texto aumentou a minha vontade. Irei prontamente ouví-lo. Agradeço a dedicatória e deixo registrado que parte da "culpa" do meu bom gosto musical é sua!

Zé Doidim disse...

Você também me ajudou a conhecer boas bandas, Marcelo. Conhecimento é isso: uma troca constante de aprendizados, né? Valeu, sobrinho!