quinta-feira, 25 de agosto de 2011

Allen à antiga

O texto em preto e branco xerocado, tímido, grudado ao lado da porta do cinema desmerecia aquela oportunidade rara. Era o anúncio do último do Woody Allen. Uma única sessão noturna, citada num papelzinho escondido no meio da vibração colorida dos cartazes vendendo Capitão América, Lanterna Verde, Dylan Dog, heróis dos quadrinhos que ganharam versões estufadas de efeitos especiais nas telonas. E um de meus heróis da adolescência, o workaholic Allen, estava ali perdendo feio a luta no ringue do marketing. Quase passou despercebida aquela xerox com a sinopse quadrada e vazia de informações de Meia Noite em Paris(2011). Não iria me perdoar se a passagem do icônico diretor no único cinema da cidade passasse em branco, afinal exibição de filme de arte em Boa Vista é artigo de luxo, especialmente no Super K, único complexo cinematográfico de Roraima, com 8 salas de cinemas, todas tomadas normalmente pelas produções populares, regadas a muita pipoca, refrigerante e gritaria da molecada, visão do inferno para quem gosta de se concentrar no clima e luzes mágicas da sétima arte.

Trailler de Meia Noite em Paris:



Tive sorte assim de me deparar com o longa-metragem de Woody Allen. E, o que é melhor, numa privilegiada e silenciosa sessão exclusiva para esta pessoinha que escreve agora e um colega. Dois na fita. Senti-me como a solitária Cecília, personagem de A Rosa Púrpura do Cairo(1985), um dos clássicos daquele mesmo diretor, em meio às suas ritualísticas incursões em salas de exibições quase sempre vazias. Cinema pra mim é religião, lugar sagrado de interação radical com a arte, de preferência refinada, ou pelo menos sincera, de diretores, atores, fotógrafos, cenógrafos, enfim todos esses trabalhadores que suam a camisa para fazer você se sentir especial naquela poltrona dominada pela tela. Como Cecília. Ou seja, tive espaço e concentração para mergulhar em mais uma aventura elegante e mágica de Allen, que com Meia Noite em Paris, retornou ao humor inteligente e cheio de referências que marcou uma das melhores e mais palatáveis fases de sua longa e pródiga carreira.

O filme em questão se contrapõe a algumas obras marcadas pelo intelectualismo e marra psicológica, talvez uma tentativa ainda de Allen de se aproximar do universo do sueco Ingmar Begman, um dos seus maiores ídolos e influência confessa. Com Meia Noite em Paris, o diretor parece se distanciar cada vez mais de filmes severos e com conteúdo denso, bons para discussões de cineclubistas (esses seres ainda existem?), amantes empedernidos do cinema indiano e alunos de faculdade, como, em menor grau, Ponto Final – Match Point(2005) e, em maior grau, O Sonho de Cassandra(2007). É a volta a leveza, não destituída de fisiologia intelectual, presentes em antigas e charmosas produções do diretor, a exemplo da obra-prima Manhattan(1979) e no já citado A Rosa Púrpura do Cairo. O que há em comum entre essas duas e a fita atual é que Allen valoriza, com mesma intensidade, os personagens principais do filme assim como o cenário onde ele se desenrola. Paris, a cidade luz, é filmada com toda exuberância e beleza, assim como o diretor fez com boa parte dos longas rodados em sua amada Nova York.

Paris é uma personagem que dialoga febrilmente com os atores do filme. Aquele que foi e permanece como um dos centros culturais mais efervescentes do planeta é um sedutor pano de fundo e leit motiv da inteligente trama, uma deliciosa e fantástica comédia. No roteiro, Allen se aproxima de filmes como A Rosa Púrpura e Simplesmente Alice(1990), nos quais os condutores da história misturam magicamente o real à fantasia. Nela, Gil (Owen Wilson, de Marley e Eu e Uma Noite no Museu) é um roteirista de Hollywood de passagem em Paris com sua noiva Inez(Rachel Adams, de Te Amarei para Sempre e Sherlock Holmes, numa interpretação burocrática) prestes a casar. Alimenta ali dois sonhos, um possível, o de escrever um romance sério, em contraponto aos seus roteiros risíveis, e outro utópico, o de reviver pessoalmente um dos auges da cena cultural parisiense, os anos 20 do século XX. Por um desses gatilhos sem explicação, e nem precisamos dela, ele, perdido na cidade à meia noite, pega uma carona num velho Peugeot e vai parar numa festa de arromba na década na qual sempre quis viver.

As viagens de Gil ao século passado são os pontos altos do filme. Allen aproveita para resgatar alguns de seus maiores ídolos. E aqui o telespectador tem que ficar bem atento e esperto para não perder todas as referências históricas e, especialmente, as sutis piadas que gravitam em torno dos personagens ilustres. O escritor entra em contato com seus maiores mestres, ninguém menos que os romancistas norte-americanos Scott Fitzgerald, Ernest Hemingway, representantes da literatura moderna norte-americana, e dos poetas T.S Eliot e Gertrud Stein, esta responsável na trama por avaliar criticamente o livro com o qual Gil pretende debutar no mercado. E a plêiade não para por aqui, o roteirista dá de cara espantado com pintores do naipe de Pablo Picasso, de quem quase rouba a amante Adriana(Marion Cottilard, de Piaf e Contágio, em atuação digna de nota, talvez a melhor do filme), Manet, Degas, Toulosse-Lautrec, Gauguin. É impagável o encontro de Gil com Salvador Dali e os cineastas Luis Buñuel e Man Ray, numa conversa, claro, surreal e divertida. Dali, egocêntrico, só fala, por exemplo, em rinocerontes, animal que fez parte de seu cardápio pictórico. Belíssima homenagem de Woody Allen a esses monstros da arte.

Nos encontros e diálogos do escritor com seus ídolos não há condescendência, obviedades ou discrepâncias culturais entre passado e presente, entre amadores e profissionais. Inteligentes e ferinos, como nos melhores textos de Allen, o tête-à-tête de Gil com aqueles geniais artista é nivelado por cima, bem humorado e surpreendente. A visão da louca Zelda Fitzgerald, esposa de Scott, de um compulsivo Picasso e de um estranhíssimo e lacônico Man Ray, só como exemplo, contribui para enriquecer o imaginário coletivo em torno desses inquietos mestres. O diretor faz assim um divertido inventário daqueles que admira usando como alterego um jovem escritor, vivido com correção por Owen Wilson, que repete trejeitos e a personalidade afobada e neurótica de antigos personagens vividos pelo próprio diretor. Gil é auto-referencial, o porta-voz de Allen fazendo muito bem, e com inspiração, aquilo que mais gosta: cinema inteligente para agradar antigos fãs e, de quebra, conquistar novas gerações.

Meia Noite em Paris pode não ser o melhor filme desse diretor veterano e prolixo, mas é com certeza um longa-metragem para se ver e rever com prazer. Uma pequena grande obra, concisa e perene. Um Allen à moda antiga.

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