quinta-feira, 5 de maio de 2011

A foto do morto

O homem morto, ilhado por estilhaços e o sangue tingindo infame a parede, a cama, o lençol branco, testemunhas passivas de uma cinematográfica ação militar. Talvez isso. Talvez nada. Antes havia um fantasma de um homem vivo. Hoje paira o fantasma do homem morto maior do que era antes, fazendo sombra sobre nós. E surge imperioso o fantasma da dúvida se esse homem, com sua barba longa e passado entrincheirado, repousa mesmo debaixo de alguma terra em algum lugar desse mundo. Todos querem ver a foto do homem morto num mórbido e inquietante desejo de enterrar finalmente um capítulo sombrio da história da humanidade. Essa vontade coletiva, raivosa e tão loucamente humana de ver o terror selado dentro de um caixão imaginário, construído por milhões de pessoas que tremeram incrédulas diante de aviões suicidas jogados contra arranha-céus naquele fatídico dia em que o mundo também ruiu um pouco.

O homem sem o registro da morte estampado nas TVs, foi noticiado, teria sido jogado ao mar, desaparecido de vez de nossas vistas. Uma cerimônia fúnebre também sem registro, sem olhares curiosos. Sem choro nem vela à luz de holofotes. Insatisfação geral. Num planeta rendido à força intransigente das imagens, não bastava o anúncio verbalizado do assassinato por um presidente negro e poderoso, era necessária a visão ensangüentada da vítima perseguida por longos nove anos. Porque o mesmo mundo das imagens é o mundo do simulacro. A foto, o filme passou a ser cobrado aos brados, a parte perdida de um quebra-cabeças. A fotografia reclusa virou personagem, a estrela do noticiário depois da morte. Talvez guardada a sete chaves em um cofre. Talvez apenas arquivada na cabeça do estrategista que montou uma possível trama de grosso calibre. Estranha ironia. O homem barbudo e de turbante, até então coberto pela poeira do tempo, redivivo pela morte.

A morte sem foto e sem vela agora é também fantasma. Mais um fantasma do homem morto que assombrava os sonhos dos homens de bem. É o terror anguloso, cheio de surpresas, pregando, podem pensar alguns, uma piada de mau gosto em todos os que queriam cuspir em sua cara. Quem quer ver o rosto do homem morto? Prefiro pensá-lo longe de nosso mundo sofrido pelas guerras e atitudes insanas. Não quero ver a foto do homem morto e nem saber da notícia dela. Não quero me apegar a um papel com um rosto hirto estampado nele, uma face pálida endurecida pelo pó e enegrecida pelo sangue coagulado. Só quero um planeta melhor, sem violência e pânico, sem o preconceito que embrutece a alma, sem o terror que provoca choro em nome de ideais, quaisquer que sejam esses ideais. Sem nacionalismos extremados que produzem festas em cima de corpos sem vida no chão. Quero que a foto do homem morto permaneça enterrada junto com toda a tenebrosa história que se esconde por trás dela. Meu álbum de fotografias só admite fotos cheias de esperança de vida, de cliques de amizade ou de alguém que, mesmo que tenha partido definitivamente, só me faça lembrar a vida. Inteira e intensa como ela deve ser.

2 comentários:

Júlio Paiva disse...

Parabéns.

DR.TÍMPANO - BSB/DF disse...

Caro Júlio,

Valeu pela leitura de minha resenha. Aceito contribuições de texto em meu blog. Fique a vontade. A casa é sua!

Dr. Tímpano