sábado, 24 de dezembro de 2011

Desse dia de família e abraços

Natividade, na visão da modernista Anita Malfatti
Chega o dia 24 de dezembro e o ar fica, invariavelmente, carregado daquilo que a emblemática data impõe. Tantas luzes colorindo a noite, tanta gente no comércio enfezada com o natural atropelo de corpos e ansiosa para fugir o mais rápido possível do enxame provocado pelo consumo. Tantas mulheres nos salões de beleza buscando fórmulas e equações químicas para ficarem diferentes e sedutoras. Vai aí uma escova inteligente? Tantos homens fazendo contas para otimizar os salários a reboque de promoções e desejos da família ávida por uma noite feliz. Tantas crianças contando as horas para ver o que aquele tal salário lhes reservou de surpresa, embalada em papéis coloridos com todo o carinho. Impossível ficar alheio diante dessa aura fervilhante que nos invade os poros, a cabeça, a imaginação. É como um arrastão que nos faz rodopiar envolto por essa necessidade de estar bem. Tem horas, contudo, que essa imposição cultural cansa. Faço parte daquele grupo que acha o natal uma data triste, talvez por essa overdose de esperança, de sentimento de felicidade, essa fortuita alegria que nem sempre condiz com a realidade e nos é empurrada goela adentro. Somos como joguetes desse clima de oba oba, travestido de vermelho e luzes brilhantes. O espírito de natal, creio, deveria ter um romantismo, uma suavidade, um senso de compreensão como aquele impresso nos filmes água com açucar de Frank Capra. E isso pode ser resgatado por uma simbiose que está dentro desse fundamental organismo chamado família.


O natal, segundo Cândido Portinari
Não quero ser moderninho, nem ser a voz do contra. Natal é família. Não tem jeito. E família é um universo intrigante e pra lá de importante que alguns burramente não valorizam. Gosto de ficar na praça toda enfeitada com meus parentes vendo aqueles menininhos e menininhas vestidos de papai noel, dançando uma coreografia marcada e cantando a plenos pulmões, um em cada janela, daqueles imponentes prédios antigos aquelas mesmas canções. Ainda que seja uma “ô happy day” com inglês torto e desafinado. Aqui, sinto o espírito do natal lambendo minha pele. E há algo que mexe dentro de mim, quando vejo na cabeça estática voltada para cima os olhos de minha mãe e de minha irmã com um brilho que não é o usual. “Voltei a ser criança, tou aqui na praça ouvindo o coro das crianças”, contou a mãe num celular para uma amiga. E era isso mesmo, pensei comigo olhando divertido para ela. Ela como uma criança. Como aquelas que estavam uma em cada janela. Uma pausa para o desasossego. Uma cena frugal que trazia o desapego do natal, como sempre imaginei, e que só é possível do lado da família.


O natal primitivista de Antônio Poteiro

Meu natal foi sendo construído dias antes do 24 de dezembro em cada encontro que tive com minha  numerosa família. Na praia, olhando o mar, discutindo literatura com minha irmã tão cheia de verbos cheios de significados, tava ali o natal. No bar, eu e os irmãos, abduzidos pelo álcool e uma mesa farta, entoando em coro uma velha canção que marcou nossa infância. Como crianças nas janelas do prédio barroco. Andando de noite no centro da cidade já aliviado da carga frenética do dia, lembrando de dias de paz, tava ali o natal. No colo quente da mãe, vendo fotos de uma viagem repleta de memórias felizes e descobertas. Na visita do sobrinho, com seus filhos bonitos, refazendo as perdas e ganhos do ano sob o olhar atento da esposa zelosa, tava ali meu natal. No apartamento do irmão solteiro, trocando impressões sobre música, vigiados pela Laurinha Toda Pura, o título sacana da foto da moça pelada que está grudada na parede branca. No show da Veronica, um cantor fingindo-se de travesti, junto do sobrinho mais gentil que alguém poderia ter. Em todos esses instantes, sentia um conforto que as relações simples, diretas, cosanguíneas tem o poder de oferecer.

Antônio Gomide e sua visão do natal
Escrevo esse texto horas antes da confraternização oficial da família, com seus fatais perus, chester, farofa, arroz metido a besta, algum choro e abraços calorosos dos parentes. Vou fartar-me da carne, mas quero mesmo é consumir sem restrições, com o que a gula tiver de mais pecaminosa, o abraço efusivo de irmãos, mãe, sobrinhos e primos. E poder retribuir essa ternura com a mesma intensidade e paixão. E quero guardar a memória desse momento por todos os dias do ano que vai entrar, me retroalimentando dessa energia familiar como um urso que se prepara disciplinado para a hibernação, certo de que guardou em si as doses exatas para permanecer forte até o próximo inverno. Quero ser tomado no natal pela família. Sem firulas. E só isso para mim importa: fazer desse dia uma ode interna a ela. Simplesmente fazer parte dela e ser feliz. Simplesmente.

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