quinta-feira, 4 de agosto de 2011

Homem com "H"

Era uma figura gigante no palco, cara pintada, seminu, como um fauno, um exu, exuberante exu, destilando energia, inventando trejeitos. Contorcionista, exercitava as possibilidades infindáveis do corpo magro. Os outros dois ao seu lado, também vestidos estramboticamente, pareciam meros figurantes, molduras para a arte provocadora do astro principal. Era fevereiro de 1974. Um maracanãzinho lotado assistia extasiado ao espetáculo, trinta mil pessoas surfando no sucesso de “O Vira”, canção afoita que misturava um velho ritmo folclore português ao rock e a uma letra cheia de fantasia e figuras assombrosas. As crianças adoravam. Eu, no meio de meus sete irmãos, grudado na TV preto e branco assistia fascinado aquilo tudo. Nas linhas mal resolvidas da telinha, que nem sonhava em ser HD, um grupo revolucionava a seu jeito a música careta brasileira. “O Vira”, a mais bobinha das músicas do álbum que vendeu milhões de cópias, nem de longe representava o vigor da obra de Secos e Molhados, que não resistiu, com sua formação original, a dois discos, mas deixou magicamente para o Brasil aquele cara de corpo franzino, elétrico. Ney Matogrosso completa 70 anos esta semana e, em todas essas décadas, manteve-se o brilho de alguém que desafiou comportamentos, cantou a MPB como ninguém e foi sempre fiel ao bom gosto.

Ney cantando “Rosa de Hiroxima”, no antológico show do Maracanãzinho:



Aos 70, Ney é nossa Madonna, resistindo orgulhoso e incólume, como um alquimista, às mazelas do tempo que tudo erode. Em sete dignas décadas, foi mudando devargarzinho ao sabor de sua inquieta e inventiva personalidade. O cara tinha como prática comum surpreender o atônito público. Na época da televisão preto e branco, colorizada na periferia por uma película colorida grudada ao vidro, Ney surpreendia com seu corpo atlético, em uma coreografia só sua, homem elástico que era, e um figurino mínimo, minimalista, mas abrangente em sua tradução cultural. Cocares, queixadas, máscaras platinadas, penas de pavão, tudo se enquadrando no rosto fino do artista, tapa sexo, bugigangas, pulseiras e tornozeleiras extravagantes,tudo se equilibrava elegante, sobrevivendo à dança frenética, aos rodopios, pulos, braços que giravam ininterruptos em todas as direções. E eu conseguia ver tudo colorido em minha descolorida TV de baixa, rasteira definição, querendo entender que figura era aquela, tão diferente de tudo que vira até então. Na época da televisão colorida, Ney foi perdendo as cores e encarnou um certo tipo, um cara sóbrio, sem pintura no rosto, mas sem perder a ternura jamais nem o rebolado, cantando como ninguém pérolas do MPB com sua voz única, inconfundível, perene.

O cantor ao lado do grande Raphael Rabello em “Negue”:



Ney resistiu ao tempo como resistia aos achincalhes dos militares que tentaram proibi-lo de aparecer em público daquele seu jeito econômico, estilo hai-kai, de se vestir. Enfrentou homofóbicos e outras espécimes burras de preconceituosos assumindo sua natural bissexualidade. Transou com mulheres. Transou com homens fascinantes, como Cazuza. Transou com a liberdade. Transou corajosamente com a vida, expondo sua sexualidade numa época em que os tabus, mais do que hoje, eram monstros a assustar os moralistas enfileirados atrás de carapaças quase intransponíveis. Falsa moral tão bem revelada nos textos ferozes de Nélson Rodrigues. Provocava os carrancudos conservadores algumas vezes com jogadas de marketing geniais e divertidas, como quando resgatou “Homem com H”, de Antônio Barros, um forró do cancioneiro popular em que assumia uma irônica masculinidade: “Com H sou muito homem”, dizia a letra. Ou quando, vestido com paletó branco e elegância sem par, seduzia homens e mulheres, sem distinção: “Me diz que sou seu tipo”, sussurrava entre uma e outra reboladinha sensual. Tipo homem da melhor estirpe, pleno de cidadania e boas intenções, daqueles que fazem o mundo melhor.

Veja vídeo num show mais recente de Ney cantando “Homem com H”:



Aos 70 anos muito bem vividos, Ney não precisa provar mais nada, nem brigar com os moralistas de plantão, já que escancarou com sua arte as portas para que os mais novos sigam com a batalha, munidos de muita argumentação e um exemplo magnífico. Aos 70, muito bem cuidados, o cara continua fazendo álbuns prenhes de beleza que marcaram uma vasta discografia de 31 discos, contando só a sua fase solo. Como, só para citar alguns, Pescador de Pérolas (1986), À Flor da Pele(1990), Olhos de Farol(1999), Vagabundo(2004), Canto em Qualquer Canto(2005) e o recente Beijo Bandido(2009). Ney manda bem com sua invejável juventude e uma fórmula sábia de encarar o mundo. Aos 70, muito bem engendrados, fica a certeza de que mais 70 não lhe fariam mal. Se se fizesse uma improvável justiça divina , só faria bem, com toda certeza, a todos nós. Parabéns, Ney. E para finalizar, fica um bela poesia, que traduz um pouco a alma generosa desse baita artista: “Se canto sou ave, se choro sou homem. Se planto me basto, valho mais que dois. Quando a água corre, a vida multiplica. O que ninguém explica é o que vem depois”.

2 comentários:

Unknown disse...

Texto perfeito sobre um dos artistas mais intensos e verdadeiros que há. assisti recentemente o "roda viva" com o ney matogrosso e confesso que diante de tanta dignidade e clareza de pensar, senti orgulho de ter sempre reconhecido nele algo muito além do infindável talento artístico.Ney Matogrosso é,desde sempre, a verdadeira vanguarda.Humano com H.

DR.TÍMPANO - BSB/DF disse...

Lindo comentário. Humano com H é uma bela tradução para Ney. Como diria outra lenda, Itamar Assumpção, "como não pensei nisso antes",

Valeu pelo comentário,

Dr. Tímpano